Parte 1 - Historia da riqueza do homem. Cap. I ao VII, p.1 a 92

Capitulos de I a VII
Paginas de 01 a 92


Leo huberman
história da
Riqueza do homem

Tradução de
WALTENSIR DUTRA








Digitalização: cerejinha




Í N D I C E
Prefácio .................................................................................................     7
Parte 1 — DO FEUDALISMO AO CAPITALISMO
CAPÍTULO I — Sacerdotes. Guerreiros e Trabalhadores ..................      1l
O trabalho na Idade Média — O sistema agrícola — O servo
e o senhor — A situação da nobreza, da realeza e do clero.
CAPÍTUlO II — Entra em Cena o Comerciante .................................     25
O investimento da riqueza na Idade Média — O Intercâm-
bio de mercadorias — As Cruzadas e o comércio — Mer-                
cados e feiras.
CAPÍTULO III   Rumo À Cidade ..................................................     35
O comércio e as cidades   Surgem as corporações — Cho-
que  entre  a  cidade  e  o  senhor feudal   Cresce a influên-
cia dos mercadores.
CAPÍTULO 1V — Surgem Novas Idéias ............................................   45
Usura  e  juro  na  Idade  Média     A posição da Igreja   
Os  velhos  conceitos  prejudicam  as  transações.
CAPÍTULO V — O Camponês Rompe Amarras ................................    51
Modifica-se a situação do camponês que começa a ser dono da
terra —  Novo regime de trabalho  — As revoltas camponesas.
CAPÍTULO VI — “E Nenhum Estrangeiro Trabalhará...” .................     62
Modifica-se  também  a  Indústria   Surge o artesanato pro-
fissional   O  regime  das corporações —  O  justo preço —
O  burguês  começa  a  substituir  o  senhor  feudal.
CAPÍTULO VII — Aí Vem o Rei! ......................................................   78
Universalismo  e  nacionalismo :  desponta  o sentimento na-
cional      A  burguesia sustenta o  rei    Decadência das
grandes  corporações   A  Igreja  e  a  Reforma.
CAPÍTULO VIII — “Homem Rico...”  ...............................................    93
A desvalorização da  moeda  pelos reis    Acumulação  de
ouro e prata    As grandes viagens e descobertas —  A Re-
volução  Comercial   Os grandes banqueiros.
CAPÍTULO IX — .”...Homem Pobre, Mendigo, Ladrão” .................   107
A influência prejudicial das guerras — Influxo da metais pre-
ciosos e elevação dos preços   Lucram os mercadores, per-
dem  os  governos  e  os  trabalhadores   Conseqüências na
agricultura.
CAPÍTULO X — Precisam-se Trabalhadores — Crianças de Dois
Anos Podem Candidatar-se .................................................................   119
Expansão  do  mercado —   O intermediário  e  o  industrial
Incipiente —  Reação das corporações   Os três sistemas
de produção.
CAPÍTULO XI — “Ouro, Grandeza e Glória” ..................................    129
O  que  faz  a  riqueza de um país? —  Acumulação de tesou-
ros   Estímulos à indústria   Migração de trabalhadores
 Riqueza pelo transporte marítimo   Colônias — A po-
lítica mercantilista.
CAPÍTULO XII — Deixem-nos em Paz! ........................................      143
Revolta contra o mercantilismo — A doutrina  do  lasseiz-
faire   Os  fisiocratas — O  conceito  de renda nacional
— O comércio livre.
CAPITULO XIII — “A Velha Ordem Mudou...” ...........................      155
Só os pobres pagavam Impostos   O  progresso abre os
olhos do camponês   A   Revolução Francesa — A bur-
guesia: quem era? — A  burguesia lidera, camponesa e traba-
Ihadores lutam — O Código Napoleônico, vitória burguesa.
Parte II — DO CAPITALISMO AO... ?
CAPÍTULO XIV — De Onde Vem o Dinheiro? .............................     167
Dinheiro que é capital e dinheiro  que  não é   O capital
e os meios de produção    Como os Impérios acumulam
capital para a indústria moderna   Novas formas de pro-
dução, nova religião.
CAPÍTULO XV — Revolução — Na Indústria, Agricultura, Trans-
porte.....................................................................................................   183
A máquina a vapor — O crescimento demográfico   O
novo tipo de vida no século XVIII.
CAPITULO XVI — “A Semente Que Semeais, Outro Colhe... “          187
A situação dos trabalhadores durante  e  depois da Revo-
lução Industrial do  século XIX    O  regime fabril  
O trabalho das crianças  — A revolta contra as máquinas
— Os sindicatos e o voto.
CAPÍTULO XVII — “Lei Naturais” de Quem? ..............................      207
As leis naturais da Economia clássica — A economia indi-
vidual e a economia da sociedade — O malthusianismo —
Ricardo e o valor do trabalho.
CAPÍTULO XVIII — “Trabalhadores de Todos os Países, Uni-vos!” 225
Os sonhadores de utopias — O socialismo idealista ou utó-
pico — Surge Marx: o socialismo sem utopia — Porque
o socialismo é Inevitável —  Marx e o trabalho: a mais-
-valia — As contradições do sistema capitalista.
CAPÍTULO XIX —  “Eu  Anexaria os Planeta,  se  Pudesse...”            246
Uma nova teoria do valor — A teoria marginal da utili-
dade — As tarifas protetores — O crescimento da grande
indústria — Trustes, cartéis, combinações — Os exceden-
tes de mercadorias e de capital — Solução: as colônias.
CAPÍTULO XX — O Elo Mais Fraco ............................................      271
As crises capitalistas — Suas explicações — A tendência
decrescente do lucro — Capital variável e capital cons-
tante ou fixo.
CAPÍTULO XXI — A Rússia Tem um Plano ................................      285
A Revolução Russa — Lênin e a arte da revolução — Co-
letivo, ao invés de Individual — Os grandes problemas eco-
nômicos da Rússia — Planejamento nacional socialista —
O comércio externo e o monopólio estatal.
CAPÍTULO XXII — Desistirão eles do Açúcar? ...........................       306
Pobreza em meio à abundância — O planejamento capitalis-
ta. suas características — O obstáculo: a propriedade privada
— Oposição à economia nacionalmente planificada — A coor-
denação central capitalista: fascismo — Fascismo e guerra.


P R E F Á C I O
ESTE livro tem um duplo objetivo. É uma tentativa de explicar a história pela teoria econômica, e a teoria econômica pela história. Essa inter-relação é importante — é necessária, O ensino da história se ressente quando pouca atenção se dispensa ao seu aspecto econômico; e a teoria econômica se torna monótona, quando divorciada de seu fundo histórico. A “Ciência triste” continuará trine, enquanto ensinada e estudada num vácuo histórico. A lei da renda de Ricardo é, em si, difícil e insípida. Mas situada em seu contexto histórico, vista como uma batalha na luta entre proprietários de terras e industriais, na Inglaterra do início do século XIX, ela se tornará animada e significativa.
Este livro não pretende ser exaustivo. Não é uma história econômica nem uma história do pensamento econômico — mas um pouco de ambas. Tenta explicar, em termos de desenvolvimento das instituições econômicas, por que certas doutrinas surgiram em determinado momento, como se originaram na própria estrutura da vida social, e como se desenvolveram, modificaram e foram ultrapassadas, ao mudarem os padrões daquela estrutura.
Desejo expressar meu profundo agradecimento às seguintes pessoas: minha esposa, que me auxiliou de inúmeras formas, muitas para serem mencionadas; o Dr. Meyer Schapiro, por sua crítica do original e sugestões incentivadoras; a Srta. Sybil May e o Sr. Michael Ross por suas opiniões firmes e crítica construtivas que me evitaram muitos erros de julgamento e fatos. Devo um agradecimento especial à Srta. Jane Trabiskj, uma vez que suas pesquisas cuidadosas, e vasto conhecimento, no campo da História e Economia, foram de ajuda incalculável. Sem sua assistência, este livro não poderia ter sido escrito.
LEO HUBERMAN

Nova York, julho de 1936.














PARTE 1
DO FEUDALISMO AO CAPITALISMO




C A P Í T U L O   I
Sacerdotes, Guerreiros e Trabalhadores
OS DIRETORES dos filmes antigos costumavam fazer coisas estranhas. Uma das mais curiosas era o seu hábito de mostrar as pessoas andando de carro, depois descerem atabalhoadamente e se afastarem sem pagar ao motorista. Rodavam por toda a cidade, divertiam-se, ou se dirigiam a seus negócios, e isso era tudo. Sem ser preciso pagar nada. Assemelhavam-se em muito à maioria dos livros da Idade Média, que, por páginas e páginas, falavam de cavaleiros e damas, engalanados em suas armaduras brilhantes e vestidos alegres, em torneios e jogos. Sempre viviam em castelos esplêndidos, com fartura de comida e bebida, Poucos indícios há de que alguém devia produzir todas essas coisas, que armaduras não crescem em árvores, e que os alimentos, que realmente crescem, têm que ser plantados e cuidados. Mas assim é. E, tal como é necessário pagar por uma corrida de táxi, assim alguém, nos séculos X a XII, tinha que pagar pelas diversões e coisas boas que os cavaleiros e damas desfrutavam. Também alguém tinha que fornecer alimentação e vestuário para os clérigos e padres que pregavam, enquanto os cavaleiros lutavam. Além desses pregadores e lutadores existia, na Idade Média, um outro grupo: os trabalhadores. A sociedade feudal consistia dessas três classes — sacerdotes, guerreiros e trabalhadores, sendo que o homem que trabalhava produzia para ambas as outras classes, eclesiástica e militar. Isto era muito claro, pelo menos para uma pessoa que viveu naquela época, e que assim comentou o fato:
“For the knight and eke the clerk
Live by him who does the work.”[1]
Qual era a espécie de trabalho? Nas fábricas ou usinas? Não, simplesmente porque ainda não existiam. Era o trabalho na terra, cultivando o grão ou guardando o rebanho para utilizar a lã no vestuário. Era o trabalho agrícola, mas tão diferente de hoje que dificilmente o reconheceríamos,
A maioria das terras agrícolas da Europa ocidental e central estava dividida em áreas conhecidas como “feudos”. Um feudo consistia apenas de uma aldeia e as várias centenas de acres de terra arável que a circundavam, e nas quais o povo da aldeia trabalhava. Na orla da terra arável havia, geralmente, uma extensão de prados, terrenos ermos, bosques e pasto. Nas diversas localidades, os feudos variavam de tamanho, organiza. ção e relações entre os que os habitavam, mas suas características principais se assemelhavam, de certa forma.
Cada propriedade feudal tinha um senhor. Dizia.se co mumente do período feudal que não havia “senhor sem terra, nem terra sem um senhor”, O leitor já viu, com certeza, fo. tografias dos solares medievais. É sempre fácil reconhecê-los porque, fosse um castelo ou apenas uma casa grande de fazenda, eram sempre fortificados. Nessa moradia fortificada, o senhor feudal vivia (ou o visitava, já que freqüentes vezes possuía vários feudos; alguns senhores chegavam mesmo a possuir centenas) com sua família, empregadas e funcionários que administravam sua propriedade.
Pastos, prados, bosques e ermos eram usados em comum, mas a terra arável se dividia cm duas partes. Uma, de modo geral a terça parte do todo, pertencia ao senhor e era chamada seus “domínios”; a outra ficava em poder dos arrendatários que, então, trabalhavam a terra. Uma característica curiosa do sis tema feudal é que as terras não eram contínuas, mas dispersas em faixas, mais ou menos assim como na Fig. 1:







Figura 1
A terra arrendada por A se espalha por três campos e está dividida em faixas, nenhuma das quais vizinha da outra. Da mesma forma, o arrendatário B, e assim sucessivamente. Nos primórdios do sistema feudal, o mesmo se dava com as propriedades senhoriais; também eram dividida em faixas esparsas, entremeando-se a outras, mas nos últimos anos a tendência foi de formar um só bloco.
A cultura em faixas foi típica do período feudal. É claro que era muito dispendiosa e, passadas algumas centenas de anos, foi totalmente posta de lado. Hoje, sabemos muito mais sobre as plantações alternadas, fertilizantes, e mil e uma formas de conseguir maior produção do solo, do que os camponeses feudais. O grande progresso, na época, foi a substituição do sistema de dois por três campos. Embora os camponeses feudais não soubessem ainda quais as colheitas que melhor se sucederiam, a fim de não esgotar o solo, na verdade sabiam que o cultivo do mesmo tipo, todos os anos, no mesmo local, era ruim, e assim mudavam o plantio, de campo para campo, todo ano. Num ano, a colheita para a alimentação, trigo ou centeio, seria feita no campo I, paralelo à colheita para o fabrico de bebida, a cevada, no campo II enquanto o campo III permanecia de pousio, “posto de ludo”, para um descanso de um ano. Eis o esquema aproximado de uma cultura em três campos:

1º ano
2º ano
3º  ano
Campo I
Trigo
Cevada
Em descanso
Campo II
Cevada
Em descanso
Trigo
Campo III
Em descanso
Trigo
Cevada

Eram essas, portanto, as duas características importantes do sistema feudal. Primeiro, a terra arável era dividida em duas partes, uma pertencente ao senhor e cultivada apenas para ele, enquanto a outra era dividida entre muitos arrendatários; segundo, a terra era cultivada não em campos contínuos, tal como hoje, mas pelo sistema de faixas espalhadas. Havia uma terceira característica marcante — o fato de que os arrendatários trabalhavam não só as terras que arrendavam, mas também a propriedade do senhor.
O camponês vivia numa choça do tipo mais miserável. Trabalhando longa e arduamente em suas faixas de terra espalhadas (todas juntas tinham, em média, uma extensão de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e 15 a 20, na França), conseguia arrancar do solo apenas o suficiente para uma vida miserável. Teria vivido melhor, não fora o fato de que, dois ou três dias por semana, tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento. Tampouco era esse o único trabalho a que estava obrigado. Quando havia pressa, como em época de colheita, tinha primeiro que segar o grão nas terras do senhor. Esses “dias de dádiva” não faziam parte do trabalho normal, Mas isso ainda não era tudo. Jamais houve dúvida quanto à terra mais importante. A propriedade do senhor tinha que ser arada primeiro, semeada primeiro e ceifada primeiro. Uma tempestade ameaçava fazer perder a colheita? Então, era a plantação do senhor a primeira que deveria ser salva. Chegava o tempo da colheita, quando a ceifa tinha que ser rapidamente concluída? Então, o camponês deveria deixar seus campas e segar o campo do senhor. Havia qualquer produto posto de lado para ser vendido no pequeno mercado local? Então, deveriam ser o grão e vinho do senhor os que o camponês conduzia ao mercado e vendia — primeiro. Uma estrada ou uma ponte necessitavam reparos? Então, o camponês deveria deixar seu trabalho e atender à nova tarefa. O camponês desejava que seu trigo fosse moído ou suas uvas esmagadas na prensa de lagar? Poderia fazê-lo — mas tratava-se do moinho ou prensa do senhor e exigia-se pagamento para sua utilização- Eram quase ilimitadas as imposições do senhor feudal ao camponês. De acordo com um observador do século XII o camponês “nunca bebe o produto de suas vinhas, nem prova uma migalha do bom alimento; muito feliz será se puder ter seu pão preto e um pouco de sua manteiga e queijo...”
“If he have fat goose or hen,
Calce of white flour in his bin,
‘Tis his lord who all must win.”[2]
O camponês era, então, um escravo? Na verdade, chamava-se de “servos” a maioria dos arrendatários, da palavra latina “servus” que significa “escravo”. Mas eles não eram escravos, no sentido que atribuímos à palavra, quando a empregamos. Mesmo se tivesse havido jornais na Idade Média, nenhum “anúncio? como o seguinte, que apareceu no Charleston Courier em 12 de abril de 1828, teria sido encontrado em suas páginas: “Uma família valiosa... como jamais se ofereceu para venda, consistindo de uma cozinheira de cerca de 35 anos, sua filha com cerca de 14 e seu filho, cerca de 8. Serão vendidos juntos ou apenas em parte,  conforme interessar ao comprador.”
Esse desmembramento de uma família de escravos negros, segundo a vontade do dono, não aconteceria numa família unida, sem depender do desejo do senhor feudal. Se o escravo era parte da propriedade e podia ser comprado ou vendido em qualquer parte, a qualquer tempo, o servo, ao contrário, não podia ser vendido fora de sua terra. Seu senhor deveria transferir a posse do feudo a outro, mas isso significava, apenas, que o servo teria novo senhor; ele próprio permanecia em seu pedaço de terra. Esta era uma diferença fundamental, pois concedia ao servo uma espécie de segurança que o escravo nunca teve. Por pior que fosse o seu tratamento, o servo possuía família e lar e a utilização de alguma terra. Como tinham, realmente, segurança, acontecia por vezes que uma pessoa livre, mas que por um motivo ou outro se encontrava arruinada, sem lar, terra ou comida, “oferecer-se-ia [a algum senhor, como servo], uma corda no pescoço e uma moeda na cabeça.”3
Havia vários graus de servidão, mas foi difícil aos historiadores delinear todos os matizes das diferenças entre os diversos tipos. Havia os “servos dos domínios”, que viviam permanente- mente ligados à casa do senhor e trabalhavam em seus campos durante todo o tempo, não apenas por dois ou três dias na semana. Havia camponeses muito pobres, chamados “fronteiriços”, que mantinham pequenos arrendamentos de um hectare, mais ou menos, à orla da aldeia, e os “aldeões”, que nem mesmo possuíam um pequeno arrendamento, mas apenas uma cabana, e deveriam trabalhar para o senhor como braços contratados, em troca de comida.
Havia os “vilãos” que, ao que parece, eram servos com maiores privilégios pessoais e econômicos. Distanciavam-se muito dos servos, na estrada que conduz à liberdade, gozavam de maiores privilégios e menores deveres para com o senhor. Uma diferença importante, também, está no fato de que os deveres que realmente assumiam eram mais precisos que os dos servos. Isso constituía grande vantagem, porque então os vilãos sabiam qual a sua exata situação O senhor não podia fazer-lhes novas exigências, a seu bel-prazer. Alguns vilãos estavam dispensados dos “dias de dádiva” e realizavam apenas as tarefas normais de cultivo. Outros simplesmente não desempenhavam qualquer tarefa, mas pagavam ao senhor uma parcela de sua produção, de forma muito semelhante ao que fazem, hoje, os nossos meeiros. Ainda outros não trabalhavam, mas faziam seu pagamento em dinheiro. Esse costume se desenvolveu com o passar do, anos e, posteriormente, tornou-se muito importante.
Alguns vilãos eram quase tão abastados como homens livres, e podiam alugar parte da propriedade do senhor, além de seus próprios arrendamentos. Assim, havia alguns cidadãos que eram proprietários independentes e nunca se viram obrigados às tarefas do cultivo, mas pura e simplesmente pagavam uma taxa a seu senhorio. A situação dos cidadãos, aldeões e servos confunde-se através de muitas fases. É difícil estabelecer, exatamente, quais eram e determinar a posição real de cada classe.
Nenhuma descrição do sistema feudal pode ser rigorosa- mente precisa, porque as condições variavam muito, de lugar para lugar. Não obstante, há certeza sobre alguns pontos fundamentais, em relação a praticamente todo o trabalho escravo do período feudal.
Os camponeses eram mais ou menos dependentes. Acreditavam os senhores que existiam para servi-los. Jamais se pensou em termos de igualdade entre senhor e servo, O servo trabalhava a terra e o senhor manejava o servo. E no que se relacionava ao senhor, este pouca diferença fazia entre o servo e qualquer cabeça de gado de sua propriedade. Na verdade, no século XI, um camponês francês estava avaliado em 38 soldos, enquanto um cavalo valia 100 soldos! Da mesma forma que o senhor ficaria aborrecido com a perda de um boi, pois dele necessitava para o trabalho da terra, também o aborrecia a perda de qualquer de seus servos — gado humano necessário ao trabalho na terra. Por conseguinte, se o servo não podia ser vendido sem a terra, tampouco poderia deixá-la. “Seu arrendamento era chamado ‘título de posse’ mas, pela lei, o. título de posse mantinha o servo, não o servo ao título.”4 Se o servo tentava fugir e era capturado, podia ser punido severamente — mas não havia dúvida de que tinha de voltar. Nos anais do Tribunal do Feudo de Bradford, para o período de 1349-1358, há o seguinte sumário: “Ficou provado que Alice, filha de William Childyong, serva do senhor, reside em York; por conseguinte que seja levada [presa]”5
Além disso, como o senhor não queria perder qualquer de seus trabalhadores, havia regras estipulando que os servos ou seus filhos não poderiam casar-se fora dos domínios, exceto com permissão especial. Quando um servo morria, seu herdeiro direto podia herdar o arrendamento, em pagamento de uma taxa. Eis um exemplo, tal como consta nos mesmos anais do Tribunal: “Robert, filho de Roger, filho de Richard, que possuía um terreno e 3 hectares de terra arrendada, está morto. E logo John, seu irmão e herdeiro, tomou posse das terras [arrendamento], para si e seus herdeiro; de acordo com o costume do feudo... e paga ao senhor 3 s. [shilings] de multa por entrada,”6
Na  citação acima, são importantes as palavras “de acordo com o costume do feudo”. Constituem a chave para a com-
preensão do sistema feudal, O “costume do feudo” significava, então, o que a legislação do governo de uma cidade ou condado significa hoje. Costume, no período feudal, tinha a força das leis no século XX. Não havia um governo forte na Idade Média capaz de se encarregar de tudo. A organização, no todo, baseava-se num sistema de deveres e obrigações do princípio ao fim. A posse da terra não, significava que pudéssemos fazer dela o que nos agradasse, como hoje. A posse implicava deveres que tinham que ser cumpridos. Caso contrário, a terra seria tomada. As obrigações que os servos tinham para com os senhores, e as que o senhor devia ao servo — por exemplo, proteção em caso de guerra — eram todas estabelecidas e praticadas de acordo com o costume. Acontecia, sem dúvida, que às vezes o costume era transgredido, tal como, hoje em dia, as leis. Uma briga entre dois servos seria resolvida no tribunal do senhor — de acordo com o costume. Uma briga entre servo e senhor tendia sempre a ser solucionada favoravelmente ao senhor, já que este podia ser o juiz da disputa. Não obstante, houve casos em que um senhor, que freqüentemente violava os costumes, era chamado a se explicar, por sua vez, a seu senhor imediato. Esse fato se verificava particularmente na Inglaterra, onde os camponeses podiam ser ouvidos no tribunal real.
O que aconteceria em caso de disputa entre os senhores de dois feudos? A resposta a essa pergunta nos leva a um outro fato interessante sobre a organização feudal. O senhor do feudo, como o servo, não possuía a terra, mas era, ele próprio, arrendatário de outro senhor, mais acima na escala, O servo, aldeão ou cidadão “arrendava” sua terra do senhor do feudo que, por sua vez, “arrendava” a terra de um conde, que já a “arrendara” de um duque, que, por seu lado, a “arrendara” do rei. E, às vezes, ia ainda mais além, e um rei “arrendava” a terra a um outro rei! Essa estruturação do poder está bem patenteada no seguinte excerto dos arquivos de um tribunal de justiça da Inglaterra em 1279: “Roger de St. Germain arrenda uma casa e suas dependências [faixa de terra] de Robert de Bedford, obrigado ao pagamento de 3 d. ao já mencionado Robert de quem ele arrenda, e ao pagamento de 6 d a Richard Hylchester, em lugar do citado Robert que deste arrenda. E o mencionado Robert arrenda de Alan de Chartres, pagando-lhe 2 d. por ano, e Alan, de William, o Mordomo, e o mesmo William de lord Gilbert de Neville, e o mesmo Gilbert, de lady Devorguilla de Baliol, e Devorguilla, do rei da Escócia, e o mesmo rei, do rei da Inglaterra.” 7
Isso não significa, é claro, que essa faixa de terra era tudo quanto Alan, ou William, ou Gilbert etc, “arrendavam”. De forma alguma. O feudo em si podia ser a única propriedade de um cavaleiro, ou uma pequena parcela de um grande domínio que constituía parte de um feudo, ou uma imensa concessão de terra. Alguns nobres possuíam vários feudos, outros alguns domínios, e outros um número de feudos espalhados por lugares diferentes. Na Inglaterra, por exemplo, um barão rico tinha propriedades formadas de cerca de 790 arrendamentos. Na Itália, vários grandes senhores possuíam cerca de 10 mil feudos. Sem dúvida, o rei, que nominalmente era o dono de toda a terra, possuía várias propriedades espalhadas por todo o país. As pessoas que arrendavam diretamente ao rei, fossem nobres ou cidadãos comuns, eram chamadas “principais arrendatários”.
À medida que o tempo corria, as propriedades maiores tendiam a ser divididas em arrendamentos menores, mantidos por um número cada vez maior de nobres de uma linhagem ou de outra. Por que? Simplesmente porque os senhores descobriram a necessidade de ter tantos vassalos quantos pudessem, e a única forma de o conseguir era cedendo parte de sua terra.
Hoje em dia, terras, fábricas, usinas, minas, rodovias, barcos e maquinaria de todo tipo são necessários à produção das mercadorias que utilizamos, e chamamos um homem de rico pelos bens desse tipo que possui. Mas no período feudal, a terra produzia praticamente todas as mercadorias de que se necessitava e, assim, a terra e apenas a terra era a chave da fortuna de um homem. A medida de riqueza era determinada por um único fator — a quantidade de terra. Esta era, portanto, disputa da continuamente, não sendo por isso de surpreender que o período feudal tenha sido um período de guerra. Para vencer as guerras, era preciso aliciar tanta gente quanto possível, e a forma de fazê-lo era contratar guerreiros, concedendo-lhes terra em troca de certos pagamentos e promessa de auxílio, quando necessário. Assim, por um antigo documento francês do ano 1200, soubemos que “Eu, Thiebault, conde palatino de Troyes,
dou a conhecer para o presente e futuro que concedi em honorários a Jocelyn d’Avalon e seus herdeiros o feudo que se denomina Gillencourt... O mesmo Jocelyn, além disso, por esse motivo, tomou-se meu vassalo.” 8
Como “vassalo” do conde, provavelmente esperava-se de Jocelyn, entre outras coisas, que prestasse serviços militares a seu senhor. Talvez tivesse que prover um certo número de homens inteiramente armados e equipados, por um número específico de dias. Os serviços de um cavaleiro na Inglaterra e França geralmente consistiam de 40 dias, mas contratavam-se homens para prestar apenas metade do serviço a que o cava leiro era obrigado, ou um quarto etc. No ano 1272 o rei francês estava em guerra e, assim, convocou seus arrendatários militares para o exército real. Alguns atenderam à convocação e cumpriram seu dever no devido tempo, outros enviaram substitutos. “Reginald Trihan, cavaleiro, compareceu pessoalmente a marcha [exército]. William de Coynères, cavaleiro, envia em seu lugar Thomaz Chocquet, por 10 dias. John de Chanteleu, cavaleiro, compareceu declarando estar obrigado a 10 dias de serviço, e também comparecer por Godardus de Godardville cavaleiro, obrigado a 40 dias.” 9
Os príncipes e nobres que mantinham terras em troca de serviço militar concediam-nas, por sua vez, a outros, nas mesmas condições. Os direitos contraídos e os deveres em que incorriam variavam consideravelmente, mas eram quase os mesmos na Europa ocidental e uma parte da Europa central. Os arrendatários não podiam dispor da terra como desejassem, pois tinham que obter o consentimento de seus senhores, e pagar certos impostos, se a transferissem a outrem. Do mesmo modo que o herdeiro das terras arrendadas a um serviço tinha que pagar uma taxa ao senhor do feudo, ao tomar posse de sua herança, assim o herdeiro de um senhor tinha que pagar uma taxa de herança a seu senhor imediato. Se um arrendatário morria e o herdeiro não completara a idade de entrar em posse da herança, então o senhor tomava conta da terra, até que ele atingisse a maioridade. A teoria era de que o herdeiro menor  não seria capaz de cumprir os deveres sob os quais a terra era arrendada e assim o senhor dela se encarregava até que ele atingisse a maioridade — e nesse meio tempo guardava todos os lucros.
Os herdeiros mulheres tinham que obter o consentimento do senhor para casar. Em 1221, a Condessa de Nevers assim reconheceu esse fato: “Eu, Matilda, Condessa de Nevers, dou a conhecer a todos quantos vejam esta carta que jurei sobre o sagrado Evangelho a meu senhor mais querido, Philip, pela graça de Deus o ilustre rei de França, que lhe prestarei serviços bons e fiéis contra todos os homens e mulheres vivos, e que não casarei senão por sua vontade e graça.”  10
Se uma viúva desejava casar-se outra vez, deveria ser paga uma multa a seu senhor, segundo constatamos deste registro inglês datado de 1316, referente à viúva de um arrendatário: “O rei a todos quem etc, saudação. Sabei que, por uma multa de 100 xelins que... nos foi paga por Joan, ex-mulher de Simon Darches, falecido, a quem concedêramos a honra das terras de Wallingford, damos a licença à mesma Joan para casar-se com quem deseje, desde que nos esteja sujeito.” 11
Por outro lado, se uma viúva não queria casar-se outra vez, tinha que pagar para não ser obrigada a fazê-lo, segundo a vontade de seu senhor. “Alice, Condessa de Warwick, presta contas de 1.000 libras e 10 palafréns para que lhe seja permitido permanecer viúva por tanto tempo quanto o desejar, e não ser obrigada a casar-se pela vontade do rei.” 12
Esses eram alguns dos deveres a que um vassalo estava obrigado para com o seu senhor feudal, em troca da terra e proteção que recebia. Havia outros. Se o senhor era tomado como refém por um inimigo, estava entendido que seus vassalos ajudariam a pagar por sua libertação. Quando o filho do senhor era sagrado cavaleiro, devia, pelo costume, receber uma “ajuda” de seus vassalos — talvez para pagar as despesas das festividades comemorativas, Em 1254, um homem chamado Baldwin se opôs a efetuar esse pagamento porque, alegou, o rei, cujo filho estava sendo sagrado cavaleiro, não era seu senhor imediato. Venceu a questão nessa base, de acordo com os anais do Tesouro inglês: “Concede-se mandato ao corregedor de Worcester de que se Baldwin de Frivil não arrenda diretamente ao rei in capite [isto é, do mais poderoso] mas de Alexander de Abetot e Alexander de William de Beauchamp, e William do bispo de Worcester, e o bispo do rei in capite como o mesmo Baldwin diz, então o mencionado Baldwin ficará livre da obrigação que lhe foi imposta para o auxílio a armar cavaleiro o filho do rei. “ 13
Observe-se que entre Baldwin e o rei havia a série habitual de senhores. Observe-se também que um deles era o bispo de Worcester. Isto constitui um fato importante, mostrando que a Igreja era parte e membro desse sistema feudal. Sob certos aspectos, não era tão importante quanto o homem acima de todos, o rei, mas sob outros o era muito mais. A Igreja constituía uma organização que se estendeu por todo o mundo cristão, mais poderosa, maior, mais antiga e duradoura que qualquer coroa. Tratava-se de uma era religiosa e a igreja, sem dúvida, tinha um poder e prestígio espiritual tremendos. Mas, além disso, tinha riqueza, no único sentido que prevalecia na época — em terras.
A Igreja foi a maior proprietária de terras no período feudal. Homens preocupados com a espécie de vida que tinham levado e desejosos de passar para o lado direito de Deus antes de morrer, doavam terras à Igreja; outras pessoas, achando que a igreja realizava uma grande obra de assistência aos doentes e aos pobres, desejando ajudá-la nessa tarefa, davam-lhe terras; alguns nobres e reis criaram o hábito de, sempre que venciam uma guerra e se apoderavam das terras do inimigo, doar parte delas à Igreja; por esses e por outros meios a igreja aumentava suas terras, até que se tornou proprietária de entre um terço e metade de todas as terras da Europa ocidental.
Bispos e abades se situaram na estrutura feudal da mesma forma que condes e duques. Esta concessão de um feudo ao Bispo de Beauvais em 1167 é prova disso: “Eu, Louis, pela graça de Deus rei de França, torno público a todos os presentes, bem como aos que virão, que em Mante, em nossa presença, o Conde Henry de Champagne concedeu o feudo de Savigny a Bartolomeu, Bispo de Beauvais, e seus sucessores. E por aquele
feudo o mencionado bispo empenhou a palavra e assumiu o compromisso de cavaleiro de servir com justiça ao Conde Henry; e também concordou em que os bispos que lhe sucederem procederão igualmente.” 14
E exatamente como recebia a terra de um senhor, também a Igreja agia, ela própria, como senhor: “O abade Faurício também cedeu a Robert, filho de Williain Mauduit, as terras de quatro jeiras * em Weston... a serem mantidas como feudo. E prestará serviço em pagamento, isto é: sempre que a igreja de Abingdon prestar seu serviço ao rei, ele fará metade desse serviço pela mesma igreja.” 15
Nos primórdios do feudalismo, a Igreja foi um elemento dinâmico e progressista. Preservou muito da cultura do Império Romano. Incentivou o ensino e fundou escolas. Ajudou os pobres, cuidou das crianças desamparadas em seus orfanatos e construiu hospitais para os doentes. Em geral, os senhores eclesiásticos (da Igreja) administravam melhor suas propriedades e aproveitavam muito mais suas terras que a nobreza leiga.
Mas há outro aspecto da questão. Enquanto os nobres dividiam suas propriedades, a fim de atrair simpatizantes, a Igreja adquiria mais e mais terras. Uma das razões por que se proibia o casamento aos padres era simplesmente porque os chefes da Igreja não desejavam perder quaisquer terras da Igreja mediante herança aos filhos de seus funcionários. A Igreja também aumentou seus domínios através do “dízimo”, 16 taxa de 10% sobre a renda de todos os fiéis. Assim se refere a respeito um famoso historiador: “O dízimo constituía um imposto territorial, um imposto de renda e um, imposto de transmissão muito mais oneroso do que qualquer taxa conhecida nos tempos modernos. Agricultores e camponeses eram obrigados a entregar não apenas um décimo exato de toda sua produção... Cobravam-se dízimos de lã até mesmo da penugem dos gansos; à própria relva aparada ao longo da estrada pagava-se o direito de portagem; o colono que deduzia as despesas de trabalho antes de lançar o dízimo a suas colheitas era condenado ao inferno.” 17
À medida que a Igreja crescia enormemente em riqueza, sua economia apresentava tendências a superar sua importância espiritual. Muitos historiadores argumentam que, como senhor feudal, não era melhor e, em muitos casos, muito pior do que os feudatários leigos. “Tão grande era a opressão de seus servos, pelo Cabido de Notre-Dame de Paris, no reinado de São Luís, que a Rainha Blanche protestou ‘com toda a humildade’, ao que os monges replicaram que ‘eles podiam matar seus servos de fome se lhes aprouvesse’.” 18
Alguns historiadores pensam até que se exagerava o valor de sua caridade. Admitem o fato de que a Igreja realmente ajudava os pobres e doentes. Mas ressaltam que ela era o mais rico e poderoso proprietário de terras da Idade Média, e argumentam que, comparado ao que poderia ter feito, com sua tremenda riqueza, não chegou a realizar nem mesmo tanto quanto a nobreza. Ao mesmo tempo que suplicava e exigia ajuda dos ricos, para fazer sua caridade, tomava o maior cuidado em não sacar muito profundamente de seus próprios recursos. Esses críticos da Igreja observam ainda que, se ela não houvesse tratado tão mal a seus servos, não teria extorquido tanto do campesinato, e haveria menos necessidade de caridade.
O clero e a nobreza constituíam as classes governantes. Controlavam a terra e o poder que delas provinha. A Igreja prestava ajuda espiritual, enquanto a nobreza, proteção militar. Em troca exigiam pagamento das classes trabalhadoras, sob a forma de cultivo das terras. O Professor Boissonnade, competente historiador desse período, assim o resume:
“O sistema feudal, em última análise, repousava sobre uma organização que, em troca de proteção, freqüentemente ilusória, deixava as classes trabalhadoras à mercê das classes parasitárias, e concedia a terra não a quem a cultivava, mas aos capazes de dela se apoderarem.” 19


C A P Í T U L O   I I
Entra em Cena o Comerciante
HOJE em dia, poucas pessoas abastadas guardam cofres cheios de ouro e prata. Quem tem dinheiro não deseja guardá-lo, mas sim movimentá-lo, buscando um meio lucrativo de investi-lo. Tenta achar onde colocar seu dinheiro, de forma a ter uma retirada proveitosa, com o juro mais alto. O dinheiro pode ser aplicado em negócios, em ações de uma companhia siderúrgica; pode ser.empregado na aquisição de apólices do governo, ou num sem-número de outras coisas. Hoje, há mil e uma maneiras de se aplicar capital, na tentativa de obter mais capital.
Mas logo no início da idade Média, tais portas não estavam abertas aos ricos. Poucos tinham capital para aplicar, e as que o possuíam pouco emprego encontravam para ele. A Igreja tinha seus cofres cheios de ouro e prata, que guardava em suas caixas-fortes ou utilizava para comprar enfeites para os altares. Possuía uma grande fortuna, mas era capital estático, e não continuamente em movimentação, como as fortunas de hoje. O dinheiro da Igreja não podia ser usado para multiplicar sua riqueza, porque não havia saída para ele. O mesmo acontecia à fortuna dos nobres. Se qualquer quantia ia ter às suas mãos, por impostos ou multas, os nobres não podiam investi-la em negócios, porque estes eram poucos. Todo o capital dos padres e dos guerreiros era inativo, estático, imóvel, improdutivo.
Mas, não se necessitava diariamente de dinheiro para adquirir coisas? Não, porque quase nada era comprado. Um pouco de sal, talvez, e algum ferro. Quanto ao resto, praticamente toda  a  alimentação  e vestuário de que o povo precisava eram
obtidos no feudo. Nos primórdios da sociedade feudal, a vida econômica decorria sem muita utilização de capital. Era uma economia de consumo, em que cada aldeia feudal era praticamente auto-suficiente. Se alguém perguntar quanto pagamos por um casaco novo, a proporção é de 100 para 1 como você responderá em termos de dinheiro. Mas se essa mesma pergunta fosse feita no início do período feudal, a resposta provavelmente seria: “Eu mesmo o fiz.” O servo e sua família cultivavam seu alimento e com as próprias mãos fabricavam qual quer mobiliário de que necessitassem, O senhor do feudo logo atraía à sua casa os servos que se demonstravam bons artífices, a fim de fazer os objetos de que precisava. Assim, o estado feudal era praticamente completo em si — fabricava o que necessitava e consumia seus produtos.
Sem dúvida, havia um certo intercâmbio de mercadorias. Alguém podia não ter lã suficiente para fazer seu casaco, ou talvez não houvesse na família alguém com bastante tempo ou habilidade. Nesse caso, a resposta à pergunta sobre o casaco poderia ser: “Paguei cinco galões de vinha por ele.” Essa transação provavelmente se efetuou no mercado semanal mantido junto de um mosteiro ou castelo, ou numa cidade próxima. Esses mercadores estavam sob o controle do bispo ou senhor e ali se trocavam quaisquer excedentes produzidos por seus servos ou artesãos, ou quaisquer excedentes dos servos. Mas com o comércio em tão baixo nível não havia razão para a produção de excedentes em grande escala. Só se fabrica ou cultiva além da necessidade de consumo quando há uma procura firme. Quando não há essa procura, não há incentivo à produção de excedentes. Assim sendo, o comércio nos mercados semanais nunca foi muito intenso e era sempre local. Um outro obstáculo à sua intensificação era a péssima condição das estradas. Estreitas, mal feitas, enlameadas e geralmente inadequadas às viagens. E ainda mais, eram freqüentadas por duas espécies de salteadores — bandidos comuns e senhores feudais que faziam parar os mercadores e exigiam que pagassem direitos para trafegar em suas estradas abomináveis. A cobrança do pedágio era uma prática tão comum que “quando Odo de Tours, no século Xl, construiu uma ponte sobre o Loire e permitiu o livre transito, sua atitude provocou assombro”.20
Outros obstáculos retardavam a marcha do comércio. O dinheiro era escasso e as moedas variavam conforme o lugar. Pesos e medidas também eram variáveis de região para região. O transporte de mercadorias para longas distâncias, sob tais circunstâncias, obviamente era penoso, perigoso, difícil e extremamente caro. Por todos esses motivos, era pequeno o comércio nos mercados feudais locais.
Mas não permaneceu pequeno. Chegou o dia em que o comércio cresceu, e cresceu tanto que afetou profundamente toda a vida da Idade Média. O século XI viu o comércio andar a passos largos; o século X viu a Europa ocidental transformar-se em conseqüência disso.
As Cruzadas levaram novo ímpeto ao comércio. Dezenas de milhares de europeus atravessaram o continente por terra e mar para arrebatar a Terra Prometida aos muçulmanos. Necessitavam de provisões durante todo o caminho e os mercadores os acompanhavam a fim de fornecer-lhes o de que precisassem. Os cruzados que regressavam de suas jornadas ao Ocidente traziam com eles o gosto pelas comidas e roupas requintadas que tinham visto e experimentado. Sua procura criou um mercado para esses produtos. Além disso, registrou-se um acentuado aumento na população, depois do século X, e esses novos habitantes necessitavam de mercadorias. Parte dessa população não tinha terras e viu nas Cruzadas uma oportunidade de melhorar sua posição na vida. Freqüentemente, as guerras fronteiriças contra os muçulmanos, no Mediterrâneo, e contra as tribos da Europa oriental eram dignificadas pelo nome de Cruzadas quando, na realidade, constituíam guerras de pilhagem e por terras. A Igreja envolveu essas expedições de saque num manto de respeitabilidade, fazendo-as aparecer como se fossem guerras com o propósito de difundir o Evangelho ou exterminar pagãos, ou ainda defender a Terra Santa,
Desde os primeiros tempos realizaram-se peregrinações à Terra Santa (houve 34 no sendo VIII ao X e 117 no século XI). Era sincero o desejo de resgatar a Terra Santa, e apoiada por muitos que nada ganhavam com isso. Mas a verdadeira força do movimento religioso e a energia com que foi orientado fundamentavam.se grandemente nas vantagens que poderiam ser conquistadas por certos grupos.21
Primeiro, havia a Igreja. Animada, sem dúvida, por um motivo religioso honesto. Mas também com o bom senso de reconhecer que se tratava de uma época de luta e, assim, dela se apoderou a idéia de transportar o furor violento dos guerreiros a outros países que se poderiam converter ao cristianismo, caso a vitória lhes sorrisse. A Clermont, na França, no ano de 1095, dirigiu-se o Papa Urbano II. Num descampado, já que não havia edifício suficientemente grande para abrigar os que queriam ouvi-lo, exortou os fiéis a se aventurarem numa Cruzada, nos seguintes termos, segundo o depoimento de Fulcher de Chartres, que estava presente: “Deixai os que outrora estavam acostumados a se baterem, impiedosamente, contra os fiéis, em guerras particulares, lutarem contra os infiéis... Deixai os que até aqui foram ladrões, tornarem-se soldados. Deixai aqueles que outrora se bateram contra seus irmãos e parentes, lutarem agora contra os bárbaros, como devem. Deixai os que outrora foram mercenários, a baixos salários, receberem agora a recompensa eterna...” 22
Segundo, havia a Igreja e o Império Bizantino, com sua capital em Constantinopla, muito próximo ao centro do poder muçulmano na Ásia. Enquanto a Igreja Romana via nas Cruzadas a oportunidade de estender seu poderio, a Igreja Bizantina via nelas o meio de restringir o avanço muçulmano a seu próprio território.
Terceiro, havia os nobres e cavaleiros que desejavam os saques, ou estavam endividados, e os filhos mais novos, com pequena ou nenhuma herança — todos julgavam ver nas Cruzadas uma oportunidade para adquirir terras e fortuna.
Quarto, havia as cidades italianas de Veneza, Gênova e Pisa. Veneza foi sempre uma cidade comercial. Qualquer cidade localizada num arquipélago a isso era obrigada. Se as ruas de uma cidade são canais, é de esperar que sua população se sinta mais à vontade em um barco que em terra. É o que se passa com os venezianos. Ainda, Veneza apresentava uma localização ideal para a época, pois o bom comércio era o do Oriente, tendo o Mediterrâneo como saída. Uma vista d’olhos no mapa será o suficiente para mostrar por que Veneza e outras cidades italianas se tornaram centros comerciais tão importantes. O que o mapa não  mostra, mas também é verdade, é que Veneza permaneceu ligada a Constantinopla e ao Oriente, depois que a Europa ocidental se dispersou. Uma vez que Constantinopla, durante muitos anos, foi a maior cidade na região do Mediterrâneo, essa constituía uma vantagem a mais. Significava que as especiarias orientais, seda, musselinas, drogas e tapetes seriam transportados para a Europa pelos venezianos, que mantinham a rota interna. E porque foram originariamente cidades comerciais, Veneza, Gênova e Pisa desejavam privilégios especiais de comércio com as cidades ao longo da costa da Ásia Menor. Nessas cidades, viviam os odiados muçulmanos, os inimigos de Cristo. Mas lá isso fazia alguma diferença aos venezianos? Nem por sombra. As cidades comerciais italianas encaravam as Cruzadas como uma oportunidade de obter vantagens comerciais. Assim é que a Terceira Cruzada teve por objetivo não a reconquista da Terra Santa, mas a aquisição de vantagens comerciais para as cidades italianas. Os cruzados atravessaram Jerusalém, em demanda das cidades comerciais ao longo da costa.
A Quarta Cruzada começou em 1201. Desta vez, Veneza desempenhou o papel mais importante e lucrativo. Villehardouin foi um dos seis embaixadores que se dirigiram ao Doge de Veneza para solicitar ajuda, em transporte, aos cruzados. Assim se refere a um acordo estabelecido em março daquele ano:
“— Senhor, aqui viemos em nome dos nobres barões de França que adotaram a cruz... eles vos rogam, por amor de Deus... fazer o possível para conceder-lhes transporte e navios de guerra.
“— Sob que condições? — perguntou o Doge.
“— Sob quaisquer condições por vós propostas, ou aconselhadas, se forem capazes de cumpri-las — replicam os enviados...
“— Nós forneceremos huissiers [navios com uma porta, huis, na popa que podia ser aberta, para dar entrada aos cavalos], com capacidade para transportar 4500 cavalos e 9 mil escudeiros, e navios para 4.500 cavaleiros e 20 mil soldados de infantaria. O acordo compreenderá o fornecimento de alimentos por nove meses para todos esses homens e cavalos. É o menos que faremos, sob a condição de que nos paguem quatro marcos por cavalo e dois marcos por homem...
“— E faremos ainda mais: juntaremos 50 galés armadas, por amor de Deus; sob a condição de que, enquanto perdurar nossa aliança, em cada conquista de terra ou dinheiro que realizarmos, por mar ou terra, teremos a metade, e vós a outra...
“Os mensageiros... declararam: — Senhor, estamos prontos a firmar este acordo.” 23
Podemos concluir, desse acordo, que embora os venezianos estivessem desejosos de ajudar a marcha dessa Cruzada, “por amor de Deus”, não permitiam que tão grande amor os cegasse quanto à melhor parte da pilhagem. Eram grandes homens de negócios. Do ponto de vista religioso, pouco duraram os resultados das Cruzadas já que os muçulmanos, oportunamente, retomaram o reino de Jerusalém. Do ponto de vista do comércio, entretanto, os resultados foram tremendamente importantes. Elas ajudaram a despertar a Europa de seu sono feudal, espalhando sacerdotes, guerreiros, trabalhadores e uma crescente classe de comerciantes por todo o continente; intensificaram a procura de mercadorias estrangeiras; arrebataram a rota do Mediterrâneo das mãos dos muçulmanos, e a converteram, outra vez, na maior rota comercial. entre o Oriente e o Ocidente, tal como antes.
Se os séculos XI e XII presenciaram um renascimento do comércio no Mediterrâneo, ao sul, viram também o grande despertar das possibilidades comerciais nos mares do Norte. Nessas águas, o comércio não renasceu. Pela primeira vez, tornou-se realmente intenso.
No mar do Norte e no Báltico, os navios corriam de um ponto a outro para apanhar peixe, madeira, peles, couros e peliças. Um dos centros desse comércio nos mares do Norte era a cidade de Bruges, em Flandres. Tal como Veneza, ao sul, constituía o elo da Europa com o Oriente, Bruges estabelecia contacto com o mundo russo-escandinavo. Restava, apenas, a esses dois centros afastados, encontrar seu melhor ponto de encontro, onde a grande quantidade de artigos de necessidade do Norte poderia ser trocada facilmente pelos produtos estranhos e caros do Oriente. E como o comércio, tendo um bom começo, cresce como uma bola de neve rolando a encosta, não demorou muito para que se descobrisse esse centro comercial. Os mercadores que conduziam as mercadorias do Norte encontravam-se com os que cruzavam os Alpes, vindos do Sul, na planície da Champagne. Aí numa série de cidades, realizavam-se grandes feiras sendo as mais importantes em Lagny, Provins, Bar-sur-Au be e Troyes. (Se o leitor já se mostrou intrigado algum dia quanto ao uso do peso “troy”, aqui está a resposta: era o sistema de pesos usado em Troyes, há séculos, nessas grandes feiras.)
Hoje, o comércio é contínuo, em toda parte. Nossos meios de transporte são tão aperfeiçoados que as mercadorias dos pontos extremos da terra chegam, em fluxo constante, às nossas grandes cidades, e tudo quanto precisamos fazer é ir às lojas e escolher o que queremos. Mas nos séculos XII e XIII, como vimos, os meios de transporte não estavam assim tão desenvolvidos. Nem havia uma procura firme e constante de mercadorias, em todas as regiões, que pudesse garantir às lojas uma venda diária, durante todo o ano. A maioria das cidades, por esse motivo, não podia ter comércio permanente. As feiras periódicas na Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha e Itália constituíam um passo em prol do comércio estável e permanente. Regiões que, no passado, dependiam do mercado semanal para satisfação de suas necessidades mais simples descobriram que esse mercado era inadequado à oportunidades do comércio em desenvolvimento. Poix, na França, era uma dessas regiões. Solicitou ao rei que concedesse permissão para o estabelecimento de um mercado semanal e duas feiras por ano. Eis um trecho da carta do rei, a respeito: “Recebemos a humilde petição de nosso querido e bem amado Jehan de Cré quy, Senhor de Canaples e de Poix... informando-nos que a mencionada cidade e arredores de Poix estão localizados em terreno bom e fértil, e a mencionada cidade e arredores são bem construídos e providos de casas, povo, mercadores, habitantes, e outros, e também lá afluem, passam e tornam a passar, muitos mercadores e mercadoria das vizinhanças e outras regiões, e isto é esquisito, e necessário à realização das duas feiras anuais e um mercado cada semana... Por essa razão é que nós... criamos, organizamos e estabelecemos para a mencionada cidade de Poix... duas feiras por ano e um mercado por semana.”24 Na verdade, as feiras mais importantes da Champagne eram de tal forma preparadas que duravam todo o ano — quando uma acabava, a outra começava etc. Os mercadores com suas mercadorias deslocavam-se de feira para feira.
É importante observar a diferença entre os mercados locais semanais dos primeiros tempos da Idade Média e essas grandes feiras do século X ao XV. Os mercados eram pequenos, negociando com os produtos locais, em sua maioria agrícolas. As feiras, ao contrário, eram imensas, e negociavam mercadorias por atacado, que provinham de todos os pontos do mundo conhecido. A feira era o centro distribuidor onde os grandes mercadores, que se diferenciavam dos pequenos revendedores errantes e artesãos locais, compravam e vendiam as mercadorias estrangeiras procedentes do Oriente e Ocidente, Norte e Sul.
Vejamos a seguinte proclamação, datada de 1349, referente às feiras da Champagne: “Todas as companhias de mercadores e também os mercadores individuais, italianos, transalpinos, fiorentinos, milaneses, luqueses, genoveses, venezianos, alemães, provençais e os de outros países, que não pertencem ao nosso reino, se desejarem comerciar aqui e desfrutar os privilégios e os impostos vantajosos das mencionadas feiras... podem vir sem perigo, residir e partir — eles, sua mercadoria, e seus guias, com o salvo-conduto das feiras, sob o qual os conservamos e recebemos, de hoje em diante, juntamente com sua mercadoria e produtos, sem que estejam jamais sujeitos a apreensão, prisão ou obstáculos, por outros que não os guardas das ditas feiras...”25
Além de convidar os mercadores de todas as partes para participar das feiras, o regulamento da Champagne lhes oferece salvo-conduto, para ir e voltar. Isso era importante, numa época em que os ladrões infestavam as estradas. Com freqüência, também, os mercadores que se dirigiam às feiras ficavam isentos dos penosos impostos e direitos de pedágio, normalmente exigidos pelos senhores feudais durante as viagens. Tudo isso era determinado pelo senhor da província onde a feira se realizava. O que acontecia se um grupo de mercadores era atacado por um bando de salteadores na estrada? Nesse caso, os mercadores da província em questão onde o roubo fora efetuado eram, eles próprios, banidos das feiras. Isso representava, sem dúvida, um castigo terrível, já que significava a paralisação do comércio daquela localidade.
Mas por que o senhor da cidade onde a feira se realizava preocupava-se em fazer esses preparativos especiais? Simplesmente porque a feira proporcionaria riqueza a seus domínios e a ele pessoalmente. Os mercadores  que efetuavam negócios nas feiras pagavam-lhe pelo privilégio. Havia uma taxa de entrada e de saída, e de armazenamento das mercadorias; havia uma taxa de venda e uma taxa para armar a barraca de feira. Os mercadores não se opunham a esses pagamentos, porque eram bem conhecidos, fixados, e não muito altos.
As feiras eram tão grandes que os guardas normais da cidade não lhes bastavam; havia a polícia própria da feira, guardas especiais e tribunais. Quando surgia uma disputa, os policiais da feira intervinham e nos tribunais da feira era resolvida. Tudo era organizado cuidadosa e eficientemente.
O programa das feiras era comumente o mesmo. Depois de alguns dias de preparativos, nos quais se desempacotava a mercadoria, armavam-se as barracas, efetuavam-se os pagamentos e cuidava-se de todos os outros detalhes, inaugurava-se a grande feira. Enquanto dezenas de saltimbancos procuravam divertir o povo que se movia de barraca em barraca, prosseguiam as vendas. Embora produtos de toda espécie fossem vendidos durante todo o tempo, alguns dias eram reservados ao comércio de tipos especiais de mercadorias, como fazendas, couros e peles.
Por um documento datado de 1429, relacionado à feira em Lille, temos conhecimento de uma outra característica importante desses grandes centros comerciais: “... ao mencionado Jehan de Lanstais, por nossa graça especial, concedemos e concordamos... que em qualquer parte do dito mercado, em nossa mencionada cidade de Lille, ou onde quer que a troca do dinheiro seja levada a cabo, ele pode estabelecer-se, ocupar e empregar um balcão e trocar dinheiro... pelo tempo que nos agrade... em troca do que ele nos pagará, cada ano, através de nosso recebedor em Lille a soma de 20 libras parisienses.” 26
Esses trocadores de dinheiro representavam parte tão importante da feira que, tal como havia dias especiais dedicados à venda de fazendas e peles, os dias finais da feira eram consagrados a negócios em dinheiro. As feiras tinham, assim, importância não só por causa do comércio, mas porque aí se efetuavam transações financeiras. No centro da feira, na corte para troca de dinheiro, pesavam-se, avaliavam-se e trocavam-se as muitas variedades de moedas; negociavam..se empréstimos, pagavam-se dívidas antigas, letras de crédito e letras de câmbio circulavam livremente. Aí os banqueiros da época efetuavam negócios financeiros de tremendo alcance. Unindo-se, dominavam amplos recursos. Suas operações cobriam negócios que se estendiam através de todo um continente, de Londres ao Levante. Entre seus clientes contavam-se papas e imperadores, reis e príncipes, repúblicas e cidades. Negociar em dinheiro levou a conseqüências tão grandes que passou a constituir uma profissão separada.
Esse fator é importante porque demonstra como o desenvolvimento do comércio trouxe consigo a reforma da antiga economia natural, na qual a vida econômica se processava praticamente sem a utilização do dinheiro. Havia desvantagens na permuta de gêneros, nos primórdios da Idade Média. Parece simples trocar cinco galões de vinho por um casaco, mas na realidade não era assim tão fácil. Era necessário procurar quem tivesse o produto desejado, e quisesse trocá-lo. Introduza-se porém, o dinheiro como meio de intercâmbio, e o que acontecerá? Dinheiro é aceitável por todos, não importa o que necessitem na ocasião, porque pode ser trocado por qualquer coisa. Quando o dinheiro é largamente empregado, não é necessário carregar cinco galões de vinho pela redondeza, até encontrar alguém que queira vinho e tenha um casaco para trocar. Não: basta vender o vinho por dinheiro, e, então, com esse dinheiro comprar um casaco. Embora a transação de troca simples se transformasse com isso numa transação dupla, com a introdução do dinheiro, não obstante poupam-se tempo e energia. Assim, o uso do dinheiro torna o intercâmbio de mercadorias mais fácil e, dessa forma, incentiva o comércio. A intensificação do comércio, em troca, reage na extensão das transações financeiras. Depois do século XII, a economia de ausência de mercados se modificou para uma economia de muitos mercados; e com o crescimento do comércio, a economia natural do feudo auto-suficiente do início da Idade Média se transformou em economia de dinheiro, de um mundo de comércio em expansão.



C A P Í T U L O   I I I
Rumo à Cidade
ÀMEDIDA que o riacho irregular do comércio se transformava em corrente caudalosa, todo pequeno broto da vida comercial, agrícola e industrial recebia sustento, e florescia. Um dos efeitos mais importantes do aumento no comércio foi o crescimento das cidades.
Sem dúvida, havia certo tipo de cidades antes desse aumento no comércio, os centros militares e judiciais do país, onde se realizavam os julgamentos e onde havia bastante movimento. Eram realmente cidades rurais, sem privilégios especiais ou governo que as diferenciassem. Mas as novas cidades que se desenvolveram com a intensificação do comércio, ou as antigas cidades que adotaram uma vida nova sob tal estímulo, adquiriram um aspecto diferente.
Se é de fato que as cidades crescem em regiões onde o comércio tem uma expansão rápida, na Idade Média temos de procurar cidades em crescimento na Itália e Holanda. E é exatamente onde elas surgiram primeiro. À medida que o comércio continuava a se expandir, surgiam cidades nos locais em que duas estradas se encontravam, ou na embocadura de um rio, ou ainda onde a terra apresentava um declive adequado. Tais eram os lugares que os mercadores procuravam. Neles, além disso, havia geralmente uma igreja, ou uma zona fortificada chamada “burgo” que assegurava proteção em caso de ataque. Mercadores errantes descansando nos intervalos de suas longas viagens, esperando o degelo de um rio congelado, ou  que uma estrada lamacenta se tornasse transitável outra vez, naturalmente se deteriam próximo aos muros de uma fortaleza, ou à sombra da catedral. E como um número cada vez maior de mercadores se reunia nesses locais, criou-se um “fauburg” ou “burgo extramural”. E não demorou muito para que o arrabalde se tornasse mais importante do que o próprio burgo antigo. Logo, os mercadores dessa povoação, em seu desejo de proteção, construíram à volta de sua cidade muros protetores que provavelmente se assemelhavam às paliçadas dos colonos americanos. Em conseqüência, os muros mais velhos se tornaram desnecessários e ruíram aos pedaços. O burgo mais antigo não se expandiu exteriormente, mas se viu absorvido pela povoação mais nova, onde os fatos se sucediam. O povo começou a deixar suas velhas cidades feudais para iniciar vida nova nessas ativas cidades em progresso. A expansão do comércio significava trabalho para maior número de pessoas e estas afluíam à cidade, a fim de obtê-lo.
Atente bem o leitor, porém, que não sabemos se o relato acima é verdadeiro. Trata-se apenas de conjeturas de certos historiadores, em particular Henri Pirenne, cujo levantamento de indícios para demonstrar o modo pelo qual as cidades da Idade Média se desenvolveram é tão fascinante como qualquer história de detetive. Uma de suas provas de que o mercador e o habitante da cidade constituíam uma única e mesma pessoa é o fato de que, logo no início do século XII, a palavra “mercator”, significando mercador, e “burgensis”, significando aquele que vive na cidade, eram usadas alternadamente.”27
Ora, se recapitularmos o estabelecimento da sociedade feudal, veremos que a expansão do comércio, trazendo em conseqüência o crescimento das cidades, habitadas sobretudo por uma classe de mercadores que surgia, logicamente conduziria a um conflito. Toda a atmosfera do feudalismo era a da prisão, ao passo que a atmosfera total da atividade comercial na cidade era a da liberdade. As terras da cidade pertenciam aos senhores feudais, bispos, nobres, reis. Esses senhores feudais, a princípio, não viam diferença entre suas terras na cidade e as outras terras que possuíam. Esperavam arrecadar impostos, desfrutar os monopólios,  criar taxas e serviços, e dirigir os tribunais de justiça, tal como faziam em suas propriedades feudais. Mas isso não poderia acontecer nas cidades. Todas essas práticas eram feudais, baseadas na propriedade do solo e tinham de ser modificadas, no que se relacionasse às cidades. As leis e a justiça feudais se achavam fixadas pelo costume e eram difíceis de alterar. Mas o comércio, por sua própria natureza, é dinâmico, mutável e resistente às barreiras. Não se podia ajustar à estrutura feudal. A vida na cidade era diferente da vida no feudo e novos padrões tinham que ser criados.
Pelo menos, os mercadores assim julgaram. E o pensamento, com esses comerciantes audazes, foi logo traduzido em ação. Eles aprenderam a lição de que a união faz a força. Quando viajavam pelas estradas, juntavam.se para se proteger contra os salteadores; quando viajavam por mar, associavam-se para se proteger contra os piratas; quando comerciavam nos mercados e feiras, aliavam-se para concluir melhores negócios com seus recursos aumentados. Agora, face a face com as restrições feudais que os asfixiavam, mais uma vez se uniram, em associações chamadas “corporações” ou ligas”, a fim de conquistar para suas cidades a liberdade necessária à expansão continua. Quando conseguiam o que queriam, sem luta,. contentavam-se; quando tinham que lutar para alcançar o que desejavam, lutavam.
O que desejavam eles, especificamente? Quais as exigências desses mercadores nessas cidades em crescimento? Em que aspectos seu mundo em alteração se chocava frontalmente com o mundo feudal mais antigo?
A população das cidades queria liberdade. Queria ir e vir quando lhe aprouvesse. Um velho provérbio alemão, aplicável a toda a Europa ocidental, Stadtluft macht frei (“O ar da cidade torna um homem livre”), prova que obtiveram o que almejavam. Tão real era esse provérbio que muitas constituições de cidades, dos séculos XII e X continham uma cláusula, semelhante à que se segue, conferida à cidade de Lorris pelo Rei Luís VI em 1155: “Quem residir um ano e um dia na paróquia de Lorris, sem que qualquer reclamação tenha sido feita contra ele, e sem que se tenha recusado a nos submeter sua causa, ou a nosso preboste,  pode aí permanecer  livremente  e  sem ser molestado.”28  Se  Lorris e as demais cidades possuíssem a técnica de anúncios de beira de estrada do século XX, poderiam ter usado um letreiro como este:
Venha a Lorris
e seja
LIVRE








As populações das cidades desejavam algo mais que a liberdade: desejavam a liberdade da terra. O hábito feudal de “arrendar” a terra de Fulano que, por sua vez, a arrendava de Beltrano, não era de seu agrado. O homem da cidade via a terra e a habitação sob um prisma diferente do senhor feudal. O homem da cidade poderia, de repente, precisar de algum dinheiro para inverter em negócios, e gostava de pensar que podia hipotecar ou vender sua propriedade para obtê-lo, sem pedir permissão a uma série de proprietários. A própria escritura pública de Lorris tratava do assunto, nestes termos: “Qualquer cidadão que desejar vender sua propriedade terá o privilégio de fazê-lo?”28a  Basta recordar o sistema de administração da terra descrito no primeiro capítulo para verificar quantas modificações se produziram com o comércio e  as cidades.
As populações urbanas desejavam proceder a seus próprios julgamentos, em seus próprios tribunais. Eram contrárias às cortes feudais vagarosas, que se destinavam a tratar dos casos de uma comunidade estática, e totalmente inadequadas aos novos problemas que surgiam numa cidade comercial dinâmica. Que sabia, por exemplo, um senhor feudal sobre hipotecas, letras de crédito, ou jurisprudência de negócios em geral? Absolutamente nada. E, de qualquer modo, se soubesse tudo isso, é mais que certo que se utilizaria de seus conhecimentos e posição em benefício próprio, não em favor do homem da cidade. As populações urbanas queriam estabelecer seus próprios tribunais, devidamente capacitados a tratar de seus problemas, em seu interesse. Queriam, também, elaborar sua própria legislação criminal. Manter a paz nas pequenas aldeias feudais não se comparava ao problema de manter a paz na cidade em desenvolvi- mento, com maiores riquezas e população móvel. A população urbana. conhecia o problema como o senhor feudal não conhecia. Queria sua própria “paz da cidade”.
As populações das cidades desejavam fixar seus impostos, à sua maneira, e o fizeram. Opunham-se à municipalidade dos impostos feudais; pagamentos, ajudas e multas, que eram irritantes, e num mundo em evolução apenas serviam para aborrecer. Desejavam empreender negócios e, assim, empenharam-se em abolir as taxas, de qualquer tipo, que as tolhessem. Se, porém, falharam no objetivo de suprimir, totalmente, esses direitos, alcançaram o maior êxito em modificá-los, de uma forma ou de outra, para que se tornassem mais aceitáveis. A liberdade das cidades não era, normalmente, concedida de uma só vez, mas pouco a pouco. A princípio, o senhor vendia parte de seus direitos aos cidadãos, depois vendia mais uma parcela e assim sucessivamente, até que a cidade acabava por ficar praticamente independente de seu domínio. Isto, ao que parece, ocorreu na cidade alemã de Dortmund. Em 1241, o Conde de Dortmund vendeu aos cidadãos alguns de seus direitos feudais na cidade:
“Eu, Conrad, Conde de Dortmund, e minha esposa, Giseltrude, e nossos legítimos herdeiros vendemos... ...aos cidadãos e cidade de Dortmund, nossa casa, situada ao lado da praça do mercado... ...que lhes deixamos completamente em perpetuidade, juntamente com os direitos, que conservamos do Sagrado Império Romano, de matadouros e oficinas de sapateiros remendões, de padaria e da casa sobre o tribunal, pelo preço de dois dinares pelo matadouro, e também dois dinares pelas oficinas dos sapateiros remendões e, pela casa do forno e casa sobre o tribunal, uma libra de pimenta, que serão pagos anualmente.”29
Oitenta anos mais tarde outro Conde Conrad cedeu, por aluguel anual, “ao conselho e cidadãos de Dortmund, para seu poder exclusivo, metade do condado de Dortmund”, que incluía os tribunais, direitos de portagem, impostos e rendimentos, e tudo dentro dos muros da cidade, à exceção da própria casa do conde, seus escravos pessoais e a Capela de São Martinho.
É de supor que os bispos e senhores feudais tenham reconhecido que ocorriam mudanças sociais de grande importância. É de supor que alguns tenham reconhecido ser impossível barrar  o caminho dessas forças históricas. Alguns deles o fizeram, outros não. Alguns bastante espertos para sentir o que ocorria, procuraram tirar o melhor partido da situação e saíram-se bem. Isso porém nem sempre se fez pacificamente. Parece fato, através da história, que os donos, do poder, os abastados, se utilizarão sempre de quaisquer meios para manter o que possuem. O cão luta por seu osso. E, em muitos casos, os senhores feudais e bispos (particularmente os bispos) ferravam os dentes em seus ossos e não os largavam até que se vissem a isso forçados, pela violência das populações das cidades. Para alguns, não se tratava apenas de se agarrar a seus antigos privilégios, unicamente pelas vantagens que usufruíam. Como ocorre com freqüência na história, muitas dessas pessoas abastadas imaginavam sinceramente que, se as coisas não permanecessem como estavam, todo o sistema social desmoronaria. E como as populações das cidades não acreditavam nisso, muitas cidades só conquistaram sua liberdade depois que a violência irrompeu. Esse fato parece provar a veracidade da afirmação de Oliver Wendell Holmes, de que “quando as divergências são de grande alcance, preferimos tentar matar o outro homem a deixá-lo praticar suas idéias”.
Na verdade, as populações das cidades em luta, dirigidas pelas associações de mercadores organizados, não eram revolucionárias, no sentido que emprestamos à palavra. Não lutavam para derrubar seus senhores, mas apenas para fazê-los abandonar algumas das práticas feudais já gastas pelo uso, que constituíam um estorvo decisivo à expansão do comércio. Não teriam escrito, como os revolucionários americanos, que “todos os homens foram criados livres e iguais”. Nada disso. “A liberdade pessoal, por si só, não era exigida como direito natural. Era desejada apenas pelas vantagens que proporcionava. E tanto isso é verdade que em Arraá, por exemplo, os mercadores tentaram enquadrar-se na classe dos servos do Mosteiro de St. Vast, a fim de gozar da isenção das taxas de pedágio nos mercados, que havia sido concedida àqueles.” 30
As cidades desejavam libertar-se das interferências à sua expansão, e depois de alguns séculos o conseguiram. O grau de liberdade variava consideravelmente, de forma que é tão difícil apresentar um quadro geral dos direitos, liberdades e organização da cidade medieval quanto do feudo. Havia cidades totalmente independentes, como as cidades-repúblicas da Itália e Flandres; havia comunas livres com graus diversos de independência; e havia cidades que apenas superficialmente conseguiram arrebatar uns poucos privilégios de seus senhores feudais, mas na realidade permaneciam sob seu controle. Mas, fossem quais fossem os direitos da cidade, seus habitantes tinham o cuidado de obter uma carta que os confirmasse. Isso ajudava a evitar disputas, se alguma vez o senhor ou seus representantes por acaso se esquecessem desses direitos. Eis aqui o início de uma carta dada pelo Conde de Ponthieu à cidade de Abbeville, em 1184. Logo na primeira linha, o próprio conde apresenta uma das razões por que os habitantes das cidades tanto prezavam as cartas e as guardavam cuidadosamente a sete chaves — por vezes chegando mesmo a transcrevê-las em letras de ouro, nos muros da cidade ou da igreja. “Como o que se deixa escrito fica mais bem guardado na memória humana, eu, Jean, Conde de Ponthieu, faço saber a todos os presentes, e aos que virão, que meu avô, Conde Guillaume Talvas, tendo vendido à cidade de Abbeville o direito de manter uma comuna, e não tendo a cidade uma cópia autenticada desse contrato de venda, concedeu-lhe... o direito de manter uma comuna e perpetuamente...” 31
Cento e oitenta e seis anos depois, em 1370 os cidadãos de Abbeville passaram a ter um novo senhor, o próprio rei de França. Decerto, o movimento em prol da liberdade da cidade progredira rapidamente durante esse período, porque o rei em ordem dada a seus funcionários, fora longe com suas promessas: “Concedemos e transmitimos certos privilégios, pelos quais fica patente, inter alia [entre outras coisas], que nunca, por qualquer motivo, ou ocasião que seja, fixaremos, manteremos, multaremos ou imporemos, nem seremos causa ou toleraremos que sejam fixados, mantidos, estabelecidos ou impostos na referida cidade de Abbeville, ou nas demais cidades do condado de Ponthieu, quaisquer imposições, ajudas, ou outros subsídios, de qualquer natureza, se não se destinarem à renda das mencionadas cidades e a seu pedido... razão pela qual nós, considerando o amor e obediência sinceros a nós devotados pelos ditos suplicantes, ordenamos que permita a todos os burgueses, habitantes da referida cidade, comerciar, vender e comprar, e transportar através das cidades, países e limites do referido condado, sal e outras mercadorias de qualquer espécie, sem coagi-los a pagar-nos, ou a nossos homens ou empregados, quaisquer impostos de sal, reclamações, exigências, imposições ou subsídios...” 32
Essa isenção dos impostos concedida pelo rei de França no documento acima era apenas um dos privilégios pelos quais os mercadores se batiam. Na luta pela conquista da liberdade da cidade, os mercadores assumiram a liderança. Constituíam o grupo mais poderoso e lograram para suas associações e sociedades todos os tipos e privilégios. As associações de mercadores, com freqüência, exerciam um monopólio sobre o comércio por atacado das cidades. Quem não era um membro da liga de mercadores não fazia bons negócios. Em 1280, por exemplo, na cidade de Newcastle, na Inglaterra, um homem chamado Richard queixou-se ao rei de que 10 tosquias de 15 lhe foram tomadas por alguns mercadores. Queria sua lã de volta. O rei mandou chamar os tais mercadores e perguntou-lhes por que haviam tomado a lã de Richard. Estes alegaram, em sua defesa, que o Rei Henrique III lhes concedera que “os cidadãos da referida cidade poderiam ter uma Corporação de Mercadores no dito burgo, com todos os privilégios e isenções habituais. Inda- gados acerca dos privilégios que reivindicam como pertencentes à Corporação citada, declararam que ninguém, a menos que gozasse das imunidades da Corporação, poderia cortar as peças de fazenda para vender na cidade, nem carne ou peixe, nem comprar couros frescos, nem adquirir lã pela tosquias...”33 Richard, decerto, não era membro da sociedade, que desfrutava o direito exclusivo de comerciar com lã.
Em Southampton, ao que parece, os não-membros podiam adquirir mercadorias — mas à sociedade de mercadores cabiam os primeiros negócios e “nenhum habitante ou estrangeiro trocará ou comprará qualquer espécie de mercadoria que chegue à cidade, antes dos membros da Corporação dos Mercadores, e enquanto um membro da sociedade estiver presente e deseje trocá-la ou comprá-la; e se alguém o fizer e for considerado culpado, aquilo que comprar será confiscado pelo rei”.34
E exatamente como as associações de mercadores tentaram manter à distância os não-membros, foram igualmente bem sucedidas em conservar fora de seu comércio de província os mercadores estrangeiros. Seu objetivo único era possuir o controle total do mercado. Quaisquer mercadorias que entrassem ou saíssem da cidade tinham que passar por suas mãos. Devia ser eliminada a concorrência de fora. Os preços das mercadorias deviam ser determinados pelas associações. Em todas as fases do jogo, eram elas que desempenhariam o papel principal. O controle do mercado teria que ser seu monopólio exclusivo.
Claro está que, para exercer tal poder, a fim de conquistar esse monopólio do comércio nas diversas cidades, as associações de mercadores deviam ser influentes junto às autoridades. E eram. Como constituíam o grupo mais importante da cidade, os mercadores opinavam na escolha dos funcionários da cidade. Em algumas regiões, os funcionários estavam sob sua influência; em outras, eles próprios tornavam-se os funcionários; e ainda em umas poucas, a lei .estipulava, expressamente, que apenas os membros das corporações podiam ocupar postos no governo da cidade. Era um caso raro, mas acontecia, como o prova o regulamento da cidade de Preston, na Inglaterra, redigido em 1328: “... nenhum dos cidadãos, feitos cidadãos por registro nos tribunais e fora da Corporação dos Mercadores, nunca será Alcaide, avalista ou funcionário, mas apenas os cidadãos cujos nomes estejam incluídos na Corporação dos Mercadores; porque o rei concede a liberdade aos cidadãos que integram a Corporação e a nenhum outro.” 35
As associações de mercadores, tão ávidas em obter privilégios monopolistas, e tão observadoras de seus direitos, mantinham seus membros numa linha de conduta determinada por uma série de regulamentos que todos tinham de cumprir. O integrante da sociedade gozava de certas vantagens, mas só podia permanecer como membro se seguisse à risca as regras da associação. Estas eram muitas e rígidas. Rompê-las podia significar a expulsão total ou outras formas de punição. Um método particularmente interessante é o que adotava uma corporação em Chester, Inglaterra, há mais de 300 anos. Em 1614, a Companhia de Negociantes de Fazendas e Forrageiros, de Chester, ao descobrir que T. Aldersley violara suas normas, ordenou-lhe que fechasse a loja. Ele recusou. “Assim, todos os dias, dois outros [da companhia] caminhavam o dia todo diante da mencionada loja e impediam todos quantos se dirigiam à loja de aí comprar seus artigos e detinham os que iam comprar mercadorias.”36
É lícito supor que o Senhor Aldersley não podia pôr termo a esses piquetes, obtendo um mandado contra eles, no estilo do século XX, porque a corporação era por demais poderosa. De fato, o poder das associações de mercadores não se limitava às suas próprias localidades, mas alcançava regiões distantes. A famosa Liga Hanseática da Alemanha é o exemplo vivo de uma aliança de sociedades numa poderosa organização. Possuía postos de comércio, que eram fortalezas, bem como armazéns, espalhados da Holanda à Rússia. Tão poderosa era essa liga que, no ápice do poder, contava com cerca de 100 cidades, que praticamente monopolizavam o comércio do Norte da. Europa com o resto do mundo. Constituía um Estado em si, no qual estabelecia tratados comerciais, protegia sua frota mercante com navios de guerra próprios, limpava de piratas os mares do Norte e tinha suas assembléias de governo, que elaboravam suas próprias leis.
Os direitos que mercadores e cidades conquistaram refletem a importância crescente do comércio como fonte de riqueza. E a posição dos mercadores na cidade reflete a importância crescente da riqueza  em capital em contraste com a riqueza em terras.
Nos primórdios do feudalismo, a terra, sozinha, constituía a medida da riqueza do homem. Com a expansão do comércio, surgiu um novo tipo de riqueza — a riqueza em dinheiro. No início da era feudal, o dinheiro era inativo, fixo, móvel; agora tornara-se ativo, vivo, fluido. No início da era feudal, os sacerdotes e guerreiros, proprietários de terras, se achavam num dos extremos da escala social, vivendo do trabalho dos servos, que se encontravam no outro extremo. Agora, um novo grupo surgia — a classe média, vivendo de uma forma nova, da compra e da venda. No período feudal, a posse da terra, a única fonte de riqueza, implicava o poder de governar para o clero e a nobreza. Agora, a posse do dinheiro, uma nova fonte de riqueza, trouxera consigo a partilha no governo, para a nascente classe média.


C A P Í T U L O   I V
Surgem novas idéias
A MAIORIA dos negócios é hoje realizada com dinheiro emprestado, sobre o qual pagam juros. Se a United States Steel Company quiser comprar outra empresa de aço que lhe estiver fazendo concorrência, provavelmente tomará emprestado o dinheiro. Poderá conseguir isso emitindo ações que são simplesmente promessa de devolver, com juros, qualquer soma de dinheiro que o comprador de ações empreste. Quando o dono da loja da esquina pretende adquirir coisas novas para seu negócio, vai ao banco tomar emprestado o dinheiro. O banco empresta determinada importância, cobrando juros. O fazendeiro que quiser comprar uma terra adjacente à sua fazenda pode hipotecar sua propriedade para conseguir o dinheiro. A hipoteca é simplesmente um empréstimo ao fazendeiro sob juros anuais. Estamos tão acostumados a esse pagamento de juros pelo dinheiro emprestado que tendemos a considerá-lo “natural”, como coisa que tenha existido sempre.
Mas não existiu. Houve época em que se considerava crime grave cobrar juros pelo uso do dinheiro. No princípio da Idade Média o empréstimo de dinheiro a. juros era proibido por uma Potência, cuja palavra constituía lei para toda a Cristandade.
Essa potência era a Igreja. Emprestar a juros, dizia ela, era usura, e a usura era PECADO. A palavra vai em letras maiúsculas porque assim era considerado qualquer pronunciamento da Igreja naquela época. E um pronunciamento que ameaçasse  com  a  danação eterna aqueles que  o  violavam, tinha particular  importância. Na época feudal, a influência da Igreja sobre o espírito do povo era muito maior do que hoje. Mas não era apenas a Igreja que condenava a usura. Os governos municipais e mais tarde os governos dos Estados baixaram leis contra ela. Uma “lei contra a usura”, aprovada na Inglaterra dizia: “Sendo a usura pela palavra de Deus estritamente proibida, como vício dos mais odiosos e detestáveis... ...proibição essa que nenhum ensinamento ou persuasão pode fazer penetrar no coração de pessoas ambiciosas, sem caridade e avarentas deste Reino fica determinado que nenhuma pessoa ou pessoas de qualquer classe, estado, qualidade ou condição, por qualquer meio corrupto, artificioso ou disfarçado, ou outro, emprestem, dêem, entreguem ou passem qualquer soma ou somas de dinheiro para qualquer forma de usura, aumento, lucro, ganho ou juro a ser tido, recebido ou esperado, acima da soma ou somas dessa forma emprestadas sob pena de confisco da soma ou somas emprestadas bem como da usura e ainda da punição de prisão.”37  Essa lei era um reflexo do que a maioria das pessoas na Idade Média pensava sobre a usura. Concordavam em que era um mal. Mas, por quê? Como surgira essa atitude para com o juro? Devemos procurar nas relações da sociedade feudal a resposta.
Naquela sociedade, onde o comércio era pequeno e a possibilidade de investir dinheiro com lucro praticamente não existia, se alguém desejava um empréstimo, certamente não tinha por objetivo o enriquecimento, mas precisava dele para viver. Tomava o empréstimo simplesmente porque alguma desgraça lhe ocorrera. Talvez lhe morresse a vaca, ou a seca lhe tivesse arruinado as colheitas. Estava em má situação e necessitava de ajuda. De acordo com o sentimento medieval, a pessoa que, nessas circunstancias, o ajudasse, não deveria lucrar com sua desventura. O bom cristão ajudava o vizinho sem pensar em lucro. Se emprestava a alguém um saco de farinha, esperava receber de volta apenas um saco de farinha, e nada mais. Se recebesse mais, estaria explorando o companheiro — o que não se considerava justo. O justo era receber apenas o que se emprestara, e nada mais nem menos.
A Igreja ensinava que havia o certo e o errado em todas as atividades do homem. O padrão do que era certo ou  errado na atividade religiosa não diferia das demais atividades sociais ou, mais importante ainda, do padrão das atividades econômicas. As regras da Igreja sobre o bem e o mal aplicavam-se a todos os setores, igualmente.
Hoje em dia, é possível fazer,. num negócio comercial, a um estranho, o que não faríamos a um amigo ou vizinho. Temos padrões diferentes para os negócios, e que não se aplicam a outras atividades. Assim, o industrial fará tudo ao seu alcance para esmagar um concorrente. Venderá com prejuízo, se empenhará numa guerra comercial, conseguirá descontos especiais, tentará todos os recursos possíveis para encurralar seu rival. Essas atividades arruinarão o competidor O industrial ou comerciante sabe disso, mas não obstante continua a realizá-las, por que “negócio é negócio”. No entanto essa mesma pessoa não permitiria, nem por um minuto, que um amigo ou vizinho passasse fome. Essa existência de um padrão para a atividade econômica e outro para a atividade não-econômica era contrária aos ensinamentos da Igreja na Idade Média. E a maioria das pessoas acreditava geralmente nos ensinamentos da Igreja.
A Igreja ensinava que, se o lucro do bolso representava a ruína da alma, o bem-estar espiritual é que estava em primeiro lugar. “Que lucro terá o homem, se ganhar todo o mundo e perder sua alma?”38 Se alguém obtivesse numa transação mais do que o devido, estaria prejudicando a outrem, e isso estava errado. Santo Tomás de Aquino, o maior pensador religioso da Idade Média, condenou a “ambição do ganho”. Embora se admitisse, com relutância, que o comércio era útil, os comerciantes não tinham o direito de obter numa transação mais do que o justo pelo seu trabalho.
Os homens da Igreja na Idade Média teriam condenado fortemente o intermediário que, alguns séculos mais tarde, se tornara, segundo a definição de Disraeli, “um homem que trapaceia de um lado e saqueia do outro”. A moderna noção de que qualquer transação comercial é lícita desde que seja possível realizá-la não fazia parte do pensamento medieval. O homem de negócios bem sucedido de hoje, que compra pelo mínimo e vende pelo máximo, teria sido duas vezes excomungado na Idade Média. O comerciante, porque exercia um serviço público necessário, tinha direito a uma boa recompensa e a nada mais do que isso.
Também não se considerava ético acumular mais dinheiro do que o necessário para a manutenção própria. A Bíblia era clara quanto a isso: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus.”39
Um autor da época assim se manifestou: “Quem tem o bastante para satisfazer suas necessidades, e não obstante trabalha incessantemente para adquirir riquezas, seja para conseguir uma posição social melhor, seja para viver mais tarde sem trabalhar, ou. para que seus filhos se tornem homens de riqueza e importância — todos esses estão dominados por uma avareza, sensualidade ou orgulho condenáveis.”
Os que estavam habituados aos padrões de uma economia natural simplesmente aplicaram tais padrões à nova economia monetária em que se viram. Assim, se alguém emprestava a outro cem libras, julgava-se que tinha o direito moral de exigir de volta apenas cem libras. Quem cobrasse juros pelo uso do dinheiro estaria vendendo tempo, e tempo não pertence a ninguém, para que possa ser vendido. O tempo pertence a Deus, e ninguém tinha o direito de vendê-lo.
Além disso, emprestar dinheiro e receber de volta não apenas o total emprestado, mas também um juro fixo, significava a possibilidade de viver sem trabalhar — o que estava errado. (Pelo pensamento medieval, os sacerdotes e guerreiros estavam “trabalhando” nas ocupações para as quais estavam habituados.) Alegar que o dinheiro é quem trabalhava para seu dono seria apenas irritar os homens da Igreja. Teriam respondido que o dinheiro era estéril, não podia produzir nada. Cobrar juros era totalmente errado — dizia a Igreja
Isso é o que ela dizia. O que dizia e o que fazia, porém, eram duas coisas totalmente diferentes. Embora os bispos e reis combatessem e fizessem leis contra os juros, estavam entre os primeiros a violar tais leis. Eles mesmos tomavam empréstimos, ou os faziam, a juros — exatamente quando combatiam outros usurários! Os judeus, que geralmente concediam pequenos empréstimos a juros enormes porque corriam grande risco, eram odiados e perseguido; desprezados em toda parte como usurários. Os banqueiros italianos emprestavam dinheiro em grande escala, fazendo negócios enormes — e freqüentemente, quando seus juros não eram pagos, o próprio Papa ia cobrá-los, ameaçando com um castigo espiritual! Mas a despeito do fato de ser um dos maiores pecadora, a Igreja continuava a gritar contra os usurários.
É fácil ver que a doutrina do pecado da usura iria limitar os processos do novo grupo de comerciantes que desejava negociar numa Europa em expansão comercialmente. Tornou-se na verdade um obstáculo quando o dinheiro começou a ter um papel cada vez mais importante na vida econômica.
A nascente classe média não guardava seu dinheiro em caixas-fortes. (Esse hábito pertence ao período feudal, quando eram limitadas as oportunidades de investimento,) O novo grupo de mercadores podia empregar todo o dinheiro de que dispusesse — e mais ainda. Para manter seu negócio, para ampliar o campo de suas operações e aumentar os lucros, o comerciante precisava de mais dinheiro. Onde obtê-lo? Podia recorrer aos que emprestavam, aos judeus, como Antônio, o Mercador de Veneza, recorreu a Shytock, o Judeu. Ou podia procurar comerciantes maiores — alguns dos quais haviam deixado de comerciar com mercadorias para comerciar com dinheiro — e que eram os grandes banqueiros do período. Não era fácil, porém. Essa lei da Igreja barrava o caminho, proibindo aos banqueiros ou usurários o empréstimo a juros.
Que aconteceu então, quando a doutrina da Igreja, destinada a uma economia antiga, chocou-se com a força histórica representada pelo aparecimento da classe de comerciantes? Foi a doutrina quem cedeu. Não de uma só vez, evidentemente. Lentamente, centímetro por centímetro, nas novas leis que diziam: “A usura é um pecado — mas, sob certas circunstâncias... “, ou então: “Embora seja pecado exercer a usura, não obstante em casos especiais...”
Os casos especiais que neutralizavam a doutrina da usura são esclarecedores. Se o banqueiro B emprestasse dinheiro ao comerciante M, não estava certo que cobrasse juros pelo empréstimo Mas, dizia a Igreja, como o comerciante M ia usar o dinheiro que tomara emprestado do banqueiro B para uma aventura comercial na qual toda a importância poderia ser perdida, era então justo que M devolvesse a B não-só o que lhe tomara emprestado, mas também um pouquinho mais — para compensar B do risco que correra.
Ou então, se o banqueiro B tivesse guardado o dinheiro, poderia tê-lo empregado para obter lucro, sendo por isso justo que o comerciante M ao devolver o empréstimo pagasse um pouco mais, para compensar ao banqueiro a não-utilização do dinheiro.
Dessa e de outras formas, a doutrina da usura foi modificada, para atender às novas condições. É bastante significativo que Charles Dumoulin, advogado francês que escreveu no século XVI, tenha alegado a “prática comercial diária” como justificativa para a legalização de uma “usura moderada e aceitável”. Eis aqui sua argumentação: “A prática comercial diária mostra que a utilidade do uso de uma soma considerável de dinheiro não é pequena nem permite dizer que o dinheiro por si não frutifica; pois nem mesmo os campos frutificam sozinhos, sem gastos, trabalho e indústria dos homens; o dinheiro, da mesma forma, mesmo quando deve ser devolvido dentro de um prazo, proporciona nesse período um produto considerável, pela indústria do homem. E por vezes priva a quem empresta de tudo aquilo que traz a quem o toma emprestado Portanto, toda a condenação, todo o ódio à usura, deve ser compreendido como aplicável à usura excessiva e absurda, não usura moderada e aceitável.” 41
Assim, aos poucos foi desaparecendo a doutrina da usura da Igreja, e “a prática comercial diária” passou a predominar. Crenças, leis, formas de vida em conjunto, relações pessoais — tudo se modificou quando a sociedade ingressou em nova fase de desenvolvimento.

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C A P Í T U L O   V
O Camponês Rompe Amarras
UMA das modificações mais importantes foi a nova posição do camponês. Enquanto a sociedade feudal permanecia estática, com relação entre senhor e servo fixada pela tradição, foi praticamente impossível ao camponês melhorar sua condição. Estava preso a uma camisa-de-força econômica. Mas o crescimento do comércio, a introdução de uma economia monetária, o crescimento das cidades, proporcionaram-lhe os meios de romper os laços que o prendiam tão fortemente.
Quando surgem cidades nas quais os habitantes se ocupam total ou principalmente do comércio e da indústria, passam a ter necessidade de obter do campo o suprimento de alimentos. Surge, portanto, uma divisão do trabalho entre cidade e campo. Uma se concentra na produção industrial e no comércio, o outro na produção agrícola para abastecer o crescente mercado representado pelos que deixaram de produzir o alimento que consomem. Em toda a História o crescimento do mercado constitui sempre um tremendo incentivo ao crescimento da produção. Mas como é possível aumentar a produção agrícola? Há duas formas. Uma é o desenvolvimento intensivo, que significa obter maiores resultados da mesma terra, com maiores plantações, melhores métodos agrícolas, e, de modo geral, através de um trabalho mais intensivo e mais científico. O outro é pela extensão da cultura, que significa simplesmente abrir novas terras que não tenham ainda sido cultivadas. Ambos os métodos foram empregados então.
Assim como os pioneiros nos Estados Unidos, procurando uma forma de melhorar sua situação, lançaram os olhos sobre as terras virgens do oeste, assim o ambicioso campesinato da Europa ocidental do século XII voltou seus olhos para as terras incultas, então abundantes, como meio de fugir à opressão. Um autor alemão de fins do século assim se referiu à questão: “O pobre e o camponês são oprimidos pela avareza e rapina dos poderosos e arrastados a tribunais injustos. Esse grave pecado força muitos a vender seu patrimônio e emigrar para terras distantes.” 42
Mas os Estados Unidos os pioneiros tinham acesso praticamente a todo o continente, ao passo que onde os camponeses oprimidos da Europa do século XII poderiam encontrar terra? É fato surpreendente, mas verídico, que na época apenas metade das terras da França, um terço da Alemanha, um quinto da Inglaterra eram cultivados. O resto simplesmente consistia de florestas, pântanos e terrenos inaproveitados. Em torno das pequenas regiões cultivadas abria-se à colonização toda essa enorme área. A Europa do século XI tinha a sua fronteira móvel, tal como a América do século XVII. E o desafio das terras inaproveitadas, dos pântanos e florestas foi aceito pelos camponeses habituados ao trabalho duro, “atraídos pela isca da liberdade e da propriedade milhares de pioneiros... ... vieram preparar caminho para o trabalho do arado e da enxada, queimando a vegetação rasteira e parasitária, abrindo florestas com o machado e levantando as raízes com a picareta”. Dessa forma, a Europa teve a sua “marcha para oeste” cinco séculos antes da marcha americana. Quando os pioneiros nos Estados Unidos quebravam seus machados nas árvores do Oeste norte-americano entre os séculos XVII e XIX, os sons que ouviam eram ecos dos sons provocados pelos seus ancestrais na Europa, quinhentos anos antes, em circunstâncias semelhantes. Tal como os pioneiros americanos transformaram o deserto numa região de fazendas, os pioneiros europeus esgotaram os pântanos, construíram diques contra a invasão da terra pelo mar, limparam as florestas e transformaram as terras assim recuperadas em campos de cereais  florescentes.  Para os  pioneiros do século XII, como para os do século XVII, a luta foi longa e árdua, mas a vitória significou a liberdade e a possibilidade de ser, total ou parcial- mente, dono de um pedaço de terra, isento do pagamento do cansativo trabalho a que sempre estavam obrigados. Não é de surpreender, portanto, que muitos dos camponeses se agarrassem a essa oportunidade. Não é de surpreender que “implorassem ansiosamente” pela concessão de terras, como disse o Bispo de Hamburgo, numa cana pastoral de 1106:
“1. Desejamos tornar conhecido de todos o acordo que certas pessoas, residindo deste lado do Reino e que são chamados de holandeses, celebraram conosco.
“2. Esses homens nos procuraram e ansiosamente imploraram que lhes concedêssemos certas terras em nossa diocese, que estão inaproveitadas, pantanosas e inúteis para nosso povo. Consultamos nossos súditos e considerando que isso seria bom para nós e nossos sucessores, concedemos o que nos era pedido.
“3. Fez-se um acordo pelo qual eles nos pagarão anualmente um dinar para cada jeira de terra Também lhes concedemos o uso dos cursos de água que correm nessa terra.
“4. Concordam em pagar o dízimo de acordo com nosso decreto. Ou seja, cada décimo-primeiro feixe de cereal, cada décima ovelha, cada décimo porco, cada déci mo cabrito, cada décimo ganso e um décimo de seu mel e linho...
“5. Prometeram obedecer-me em todas as questões eclesiásticas...
“6. Concordam em pagar todo ano dois marcos para 100 jeiras pelo privilégio de manter tribunais próprios para a solução de todas as suas questões sobre assuntos seculares. “44
O Bispo de Hamburgo celebrou esse acordo com os holandeses por ter percebido que “seria bom para nós e nossos sucessores”. Outros senhores de terra, tanto a Igreja como os leigos,  também  perceberam  que era realmente lucrativo ter suas terras incultas transformadas em terra produtivas pelos pioneiros, que lhes pagavam um arrendamento anual pelo privilégio de cultivá-las. Muitos desses proprietários não ficaram sentados à espera de serem procurados pelos camponeses interessados que viessem pedir ansiosamente concessão de terras, pondo-se em campo para divulgar, da forma mais ampla possível, que sua terra estava à disposição dos que desejassem colonizá-la — e pagar um arrendamento. Alguns senhores mais empreendedores tiveram grande êxito nesse negócio de arrendar o que até então fora terra inútil, conseguindo mesmo estabelecer aldeias inteiras em solo virgem — o que representava um lucro. Esse crescente movimento de colonização tornou produtivos milhares e milhares de hectares de terra inútil. Assim, em 1350 na Silésia havia 1500 aldeias novas, povoadas por 150.000 a 200.000 colonos. Esse desenvolvimento foi importante, e igual importância teve o fato de que os servos podiam então encontrar uma terra livre, terra que não exigia o penoso pagamento de arrendamento em serviços, mas em dinheiro apenas. O novo tipo de liberdade difundiu-se até atingir os servos das velhas propriedades.
Durante anos o camponês se havia resignado à sua sorte infeliz. Nascido num sistema de divisões sociais claramente marcadas, aprendendo que o reino dos Céus só seria seu se cumprisse com satisfação e boa vontade a tarefa que lhe havia sido atribuída numa sociedade de sacerdotes, guerreiros e trabalhadores, cumpria-a sem discutir. Como a possibilidade de se elevar acima de sua situação praticamente não existia, quase não tinha incentivos a fazer mais do que o necessário para sobreviver. Executava suas tarefas rotineiras de acordo corri os costumes. Não havia interesse em fazer experiências com sementes ou outras formas de produzir, porque o mercado onde podia vender a produção era limitado, e muito possivelmente o senhor tomaria a parte-do-leão do aumento da colheita.
Mas a situação se modificara. O mercado crescera tanto que qualquer colheita superior às necessidades do camponês e do senhor poderia ser vendida. Em troca, o camponês podia obter dinheiro. Ainda não estava muito acostumado ao seu uso, mas familiarizava-se com ele, e sabia da existência de uma nova classe de pessoas, os comerciantes, que não se enquadravam no velho esquema de coisas. Prosperava, e a cidade próxima era um lugar maravilhoso  onde servos como ele tinham ocasionalmente perambulado e gostado. Nesse mundo em transformação havia uma oportunidade real para gente como ele. Se. trabalhasse mais, fizesse colheitas superiores às suas necessidades, poderia reunir algum dinheiro com o qual — talvez — lhe fosse possível pagar em dinheiro os serviços que devia ao senhor. Se o senhor não aliviasse o peso que recaía sobre seus ombros, poderia então ir para a cidade ou para uma região não.cultivada, onde servos como ele abriam as florestas e recebiam em pagamento terras isentas de impostos ou taxas.
Mas o senhor estava pronto a trocar o trabalho do servo pelo dinheiro. Também ele se havia familiarizado com o dinheiro e com seu valor num mundo em transformação. Tinha muita necessidade dele para pagar as belas roupas do Oriente que comprara na feira há alguns meses. E havia também uma conta antiga do armador, pela bonita cota de malha comprada para a última expedição guerreira O senhor tinha muito em que empregar qualquer dinheiro que o servo lhe pudesse pagar. Estava pronto a concordar que, a partir de então, seu servo lhe pagasse um tanto por hectare anualmente, ao invés de trabalhar dois ou três dias por semana, como até então. O senhor realmente não tinha alternativa, pois se não aliviasse as obrigações dos servos, era muito possível que alguns deles fugissem, deixando-o sem dinheiro e trabalho, e numa bela esparrela. Não, era melhor deixar os servos pagarem um arrendamento ao invés de dar trabalho, como antes.
Além disso, havia muito que o senhor percebera ser o trabalho livre mais produtivo do que o trabalho escravo. Sabia que o trabalhador que deixava sua terra para trabalhar na terra do senhor o fazia de má vontade, sem produzir seu máximo. Era melhor deixar de lado o trabalho tradicional e alugar o que lhe fosse necessário, pagando um salário.
Foi assim que nos registros de muitas aldeias, em toda a Europa ocidental dos séculos XIII e X um número cada vez maior de anotações semelhantes à de Stevenage, na Inglaterra, começam a surgir: “O senhor concede a S. G. a terra acima mencionada pelo pagamento de 10 sólidos e 4 dinares ao invés dos serviços e taxas.”45
Outros documentos do mesmo período mostram que grande número de servos, além de comprar a liberdade de sua terra da obrigação de trabalhar, também compravam a liberdade pessoal. As atas do tribunal de Woolston mencionam um aldeão, ou vilão, que “a fim de poder deixar seu domínio e ser considerado homem livre paga uma multa de 10 sólidos” 46
Não devemos supor, porém, que todos os senhores considerassem vantajoso conceder liberdade aos servos, tal como não devemos supor que todos os senhores estivessem dispostos a abrir mão de seus direitos feudais sobre as cidades crescentes. Há sempre, em qualquer período da História, os que não querem ou não podem compreender que o passado é o passado, pessoas que frente às modificações necessárias se apegam mais do que nunca aos costumes antigos. Assim, houve senhores que não quiseram dar liberdade a seus servos.
Era de esperar que a Igreja liderasse um movimento de libertação dos servos. Mas, pelo contrário, o principal adversário da emancipação, tanto na cidade como no campo, não foi a nobreza, e sim a Igreja. Numa época em que a maioria dos senhores havia compreendido que era melhor, para seus próprios interesses, dar liberdade ao servo e contratar trabalhadores livres a salários diários, a Igreja ainda se manifestava contra a emancipação. Os estatutos da Cluníaca, uma ordem religiosa, são um exemplo da profundidade dessa atitude: “[Excomungamos] os que tendo controle de servos ou não-libertos, homens ou mulheres de condição [servil] pertencentes aos mosteiros de nossa Ordem, concedam a essas pessoas cartas e privilégios de liberdade.” 47
Isso foi em 1320. Cento e trinta e oito anos depois, em 1458, os cluníacos ainda ordenavam que “os abades, priores, deões e outros administradores da Ordem, que tem servos... devem jurar expressamente que não libertarão tais servos ou suas possessões”48. E dois famosos historiadores ingleses, após cuidadosa pesquisa, chegam a essa conclusão: “... há muitos indícios de que, de todos os latifundiários, as ordens religiosas eram os mais severos — não os mais agressivos, mas os mais apegados aos seus direitos; defendiam a manutenção das condições feudais e dos direitos sobre as aldeias. Essa instituição imortal, mas sem alma, com sua riqueza de registros minuciosos, não cedia uma polegada, nem libertava nenhum servo ou arrendatário. Na prática, o senhor secular era mais humano, por ser menos cuidadoso, por necessitar de dinheiro imediato, porque ia morrer... é contra eles [os sacerdotes] que os camponesa se queixam com mais energia.”49
Os camponeses não se limitavam a fazer queixas enérgicas. Por vezes, invadiam a propriedade da Igreja, lançavam pedras nas janelas, derrubavam portas e espancavam padres. Freqüentemente, eram ajudados nisso pelos burgueses das cidades, habitualmente também às turras com os senhores de terras, religiosos ou não.
A liberdade estava no ar e coisa alguma detinha os camponeses em sua ânsia de conquistá-la. Quando ela não lhes era concedida de boa vontade, tentavam tomá-la pela força. Foi em vão que os senhores obstinados e a Igreja lutaram contra a emancipação. A pressão das forças econômicas foi grande demais para resistir. A liberdade chegara ao fim.
A Peste Negra foi um grande fator para a liberdade. Nós, que vivemos em países civilizados, onde a medicina realizou grandes progressos, a higiene é ensinada e praticada, nada sabemos das pestes que assolaram continentes inteiros na Idade Média. A manifestação mais parecida que conhecemos é uma epidemia ocasional de escarlatina ou de influenza, que nos horroriza se o número de mortes se eleva a centenas. A Peste Negra, porém, matou mais gente na Europa, no século XIV, do que a 1 Guerra Mundial, com seus quatro anos de morticínio organizado, com máquinas especialmente fabricadas para isso. Poucos anos depois da Peste Negra, Boccacio, famoso autor italiano, assim a descreveu: “No ano de N. S de 1348, ocorreu em Florença, a mais bela cidade de toda a Itália, uma peste terrível, que, seja devido à influência dos planetas, ou seja como castigo de Deus aos nossos pecados, surgira alguns anos antes no Levante, e, depois de passar de um lugar para outro, provocando grandes danos em toda parte, atingiu depois o Ocidente. Aqui, a despeito de todos os meios que a arte e a previsão humana poderiam sugerir, como manter a cidade limpa, exclusão de todas as pessoas suspeitas de moléstia e publicação de copiosas instruções para a preservação da saúde e não obstante as múltiplas e humildes súplicas oferecidas a Deus em procissões e de outras formas, começou a se evidenciar na primavera do mencionado ano, de maneira triste e surpreendente... ...Para a cura da doença, nem o conhecimento médico nem o poder das drogas tinha qualquer efeito Qualquer que fosse a razão, poucos escaparam, e quase todos morriam no terceiro dia após o aparecimento dos sintomas... ...O que deu a essa peste maior virulência foi o fato de passar do doente para o são, aumentando diariamente, como o fogo em contacto com grande massa de combustíveis Essa, segundo me parece, a qualidade da peste, de passar não apenas de homem para homem, mas, o que era ainda mais estranho, qualquer coisa pertencente ao doente, se tocada por outra criatura, transmitia com certeza a doença, e a matava num curto espaço de tempo. Pude observar um exemplo disso: os trapos de um pobre que acabava de morrer foram lançadas à rua; dois cães surgiram e, depois de brigarem por eles e sacudi-los na boca, em menos de uma hora caíam mortos.” 50
A história dos cães pode não ser verdadeira, mas não há dúvida de que morreu gente como mosca. Florença, a cidade que Boccacio menciona, perdeu 100.000 habitantes; Londres cerca de 200 por dia, e Paris 800. Na França, Inglaterra, Países-Baixos e Alemanha, entre um terço e metade da população foi dizimado! A peste assolou todos os países europeus entre 1348 e 1350, voltando a surgir em alguns deles nas décadas seguintes, atacando os que haviam conseguido escapar antes. Tão grande foi a mortandade que uma nota de desespero pouco comum se insinua nos escritos de um monge irlandês da época: “A fim de que meus escritos não pereçam juntamente com o autor, e este trabalho não seja destruído deixo meu pergaminho para ser continuado, caso algum dos membros da raça de Adão possa sobreviver à morte e queira continuar o trabalho por mim iniciado.”
Qual teria sido o efeito de uma peste que matou tanta gente a ponto de despertar dúvidas num homem culto da época sobre a possibilidade de alguém sobreviver? Que efeito teve a peste na posição do camponês na Europa ocidental?
Com a morte de tanta gente, era evidente que maior valor seria atribuído aos serviços dos que continuavam vivos. Trabalhadores podiam pedir e receber mais pelo seu trabalho. A terra continuava ainda intocada pelo flagelo — mas tinha valor apenas em relação à produtividade, e o fator essencial para torná-la produtiva era o trabalho. Como a oferta de trabalho se reduzia, a procura relativa dele aumentava. O trabalho do camponês valia mais do que nunca — e ele sabia disso.
O senhor também sabia. Os que se haviam recusado a comutar a prestação de trabalho a que os servos estavam obrigados mostraram-se mais dispostos ainda a conservar o mesmo estado de coisas. Os que haviam trocado o trabalho do servo por um paga mento em dinheiro verificaram que os salários dos trabalhadores no campo se elevavam e que os pagamentos que recebiam compravam um volume de trabalho cada vez menor. O preço do trabalho alugado aumentou em 50%, em relação ao que fora antes da Peste Negra. Isso significava que um senhor cujo dinheiro recebido de arrendamento lhe permitia pagar trinta trabalhadores só podia pagar então vinte. Foi em vão que se emitiram proclamações ameaçando com penalidades os senhores que pagassem mais ou os trabalhadores, pastores e lavradores que exigissem mais do que os salários predominantes antes da peste. A marcha das forças econômicas não podia ser sustada pelas leis governamentais do período.
Era forçoso o choque entre os senhores da terra e os trabalhadores da terra. Estes haviam experimentado as vantagens da liberdade e isso lhes despertara o apetite para mais. No passado, o ódio provocado pela opressão esmagadora dera violentas revoltas de servos. Mas eram apenas explosões locais,. facilmente dominadas apesar de sua fúria. As revoltas dos camponeses do século X foram diferentes. A escassez do trabalho dera aos trabalhadores agrícolas uma posição forte, despertando neles um sentimento de poder. Numa série de levantes em toda a Europa ocidental, os camponeses utilizaram esse poder numa tentativa de conquistar pela força as concessões que não podiam obter — ou conservar — de outro modo.
Os historiadores discordam das causas das revoltas camponesas, Uma corrente diz que os senhores de terra desejam forçar os camponeses à prestação de trabalho, como antes; outra, sustenta que os senhores se recusavam a conceder a comutação, quando o camponês já tinha consciência de sua força e lutava para conseguir vantagens. Provavelmente ambos estão certos. De qualquer modo, sabemos pelos documentos que atos de violência foram perpetrados de ambos os lados: queima de arquivos e propriedades, assassinatos de camponeses ou de seus opressores, ou a execução “legal” de camponeses revolucionários que tiveram a desgraça de ser capturados. Um desses camponesa foi Adam Clymme, segundo os arquivos de Assize, na ilha de Ely, na Inglaterra:
“Julgamento na ilha de Ely, perante juízes nomeados no condado de Cambridge, para punir e castigar insurgentes e seus feitos, na Terça-Feira anterior à festa de Santa Margarida Virgem [20 de julho].
“Adam Clymme foi preso como insurgente e traidor de seu juramento e porque... ...traiçoeiramente com outros celebrou uma insurreição em Ely, penetrando na casa de Thomas Somenour onde se apossou de diversos documentos e papéis selados de cera verde do Senhor Rei e do Bispo de Ely fazendo com que fossem queimados no local, com prejuízo para a coroa do Senhor Rei.
“Além disso, o mesmo Adam no Domingo e Segunda-Feira seguintes proclamou ali que nenhum homem da lei ou outro funcionário na execução de seus deveres escaparia sem a degola.
“E ainda, que o mesmo Adam, no dia e ano acima mencionados, no momento da insurreição, estava andando armado e oferecendo armas, levando um estandarte, para reunir insurgentes, ordenando que nenhum homem de qualquer condição, livre ou não, deveria obedecer ao senhor e prestar os serviços habituais, sob pena de degola... ...E assim traiçoeiramente avocou a si o poder real. E nos foi apresentado pelo xerife, e acusado... ...E diz não ser culpado dos crimes que lhe são imputados ou de qualquer das acusações... ...E por isso um júri foi constituído pelo Senhor Rei, de doze [homens bons e direitos] etc.: escolhidos, jurados e julgados, dizem eles em sua decisão que o acima mencionado Adam é culpado de todas as acusações. Pela ordem da justiça o mesmo Adam foi levado e enforcado etc. Verificou-se que o mesmo Adam tem na cidade acima  mencionada bens no valor de 32 xelins, que Ralph Wyk, executor do Senhor Rei, confiscou em nome deste etc.” 52
Adam Clymme foi enforcado Milhares de outros camponeses também o foram. As revoltas diminuíram. Mas por mais que tentassem, os senhores feudais não podiam sustar o processo do desenvolvimento agrário. A velha organização feudal rompeu-se sob pressão das forças econômicas que não podiam ser controladas. Em meados do século XV, na maior parte da Europa  ocidental, os arrendamentos pagos em dinheiro haviam substituído o trabalho servil, e, além disso, muitos camponeses haviam conquistado a emancipação completa. (Nas áreas mais afastadas, longe das vias de comércio e da influência libertadora das cidades, a servidão perdurava.) O trabalhador agrícola passou a ser algo mais do que um burro de. carga. Podia começar a levantar a cabeça com um ar de dignidade.
Transações que haviam sido raras na sociedade feudal tornaram-se habituais. Em lugares onde a terra, até então, só era cedida ou adquirida à base de serviços mútuos, surgiu uma nova concepção de propriedade agrária. Grande número de camponesa teve liberdade de se movimentar, e vender ou legar sua terra, embora tivessem de pagar certa importância para isso. Os Anais do Tribunal de Stevenage, relativos a 1385, registram que um vilão que “tinha uma casa e seis hectares de terra por toda a sua vida, e pagando, por todos os outros serviços devidos, 10 sólidos, apresentou-se à corte e concedeu a terra acima mencionada [a outro] para toda a sua vida e dá ao senhor uma taxa de 6 dinares pelo registro dessa declaração nos tribunais”. 53
O fato de que a terra fosse assim comprada, vendida e trocada livremente, como qualquer outra mercadoria, determinou o fim do antigo mundo feudal. Forças atuando no sentido de modificar a situação varriam toda a Europa ocidental, dando-lhe uma face nova.




C A P Í T U L O   V I
“E Nenhum Estrangeiro Tabalhará...”
TAMBÉM a indústria se modificara. Anteriormente, era realizada na casa do próprio camponês, qualquer que fosse seu gênero. A família precisava de móveis? Não se recorria ao carpinteiro para fazê-los, nem eram comprados numa loja da Rua do Comércio. Nada disso. A própria família do camponês derrubava a madeira, limpava-a, trabalhava-a até ter os móveis de que necessitava. Precisavam de roupa? Os membros da família tosquiavam, fiavam, teciam e costuravam — eles mesmos. A indústria se fazia em casa, e o propósito da produção era simplesmente o de satisfazer as necessidades domésticas. Entre os servos domésticos do senhor havia os que se ocupavam apenas dessa tarefa, enquanto os outros trabalhavam no campo. Nas casas eclesiásticas, também havia artesãos que se especializavam numa arte, e com isso se tornavam bastante hábeis em suas tarefas de tecer ou de trabalhar na madeira ou no ferro. Mas isso nada tinha da indústria comercial que abastece um mercado — era simplesmente um serviço para atender s necessidades de casa. O mercado tinha de crescer, antes que os artesãos, como tal, pudessem existir em suas profissões isoladas.
O progresso das cidades e o uso do dinheiro deram aos artesãos uma oportunidade de abandonar a agricultura e viver de seu oficio. O açougueiro, o padeiro e o fabricante de velas foram então para a cidade e abriram uma loja. Dedicaram-se ao negócio de carnes, padaria e fabrico de velas, não para satisfazer suas necessidades, mas sim para atender procura. Dedicavam-se a abastecer um mercado pequeno, mas crescente.
Não era necessário muito capital. Uma sala da casa em que morava servia ao artesão como oficina de trabalho. Tudo de que precisava era habilidade em sua arte e fregueses que lhe comprassem a produção. Se fosse bom trabalhador e se tornasse conhecido entre os moradores da cidade, seus produtos seriam procurados, e poderia aumentar a produção contratando um ou dois ajudantes.
Estes podiam ser de dois tipos, ajudantes ou jornaleiros. Os aprendizes eram jovens que viviam e trabalhavam com o artesão principal, e aprendiam o ofício. A extensão do aprendizado variava de acordo com o ramo. Podia durar um ano, ou prolongar-se por 12 anos. O período habitual de aprendizado variava entre dois e sete anos. Tornar-se aprendiz era um passo sério. Representava um acordo entre a criança e seus pais e o mestre artesão, segundo o qual em troca de um pequeno pagamento (em alimento ou dinheiro) e a promessa de ser trabalhador e obediente, o aprendiz era iniciado nos segredos da arte, morando com o mestre durante o aprendizado.
Concluído este, quando o aprendiz era aprovado no exame e tinha recursos, podia abrir sua própria oficina. Se não os tivesse, podia tornar-se jornaleiro e continuar a trabalhar para o mesmo mestre, recebendo um salário, ou tentar conseguir emprego com outro mestre. Trabalhando duramente e poupando cuidadosamente seus salários, freqüentemente conseguia, depois de alguns anos, abrir oficina própria. Naquela época, não era necessário grande capital para dar início a um negócio e começar a produzir. A unidade industrial típica da Idade Média era essa pequena oficina, tendo um mestre como empregador em pequena escala, trabalhando lado a lado com seus ajudantes. E não só esse mestre artesão produzia os artigos que tinha de vender, como também era ele mesmo que realizava a venda. Numa parede da oficina costumava haver uma janela aberta para a rua, onde se penduravam os artigos venda e se realizava a venda mesma.
É importante compreender essa nova fase da organização industrial. As mercadorias, que antes eram feitas não para serem vendidas comercialmente, mas apenas para atenderem às necessidades de casa, passaram a ser vendidas num mercado externo. Eram feitas por artesãos profissionais, donos tanto da matéria-prima como das ferramentas utilizadas para trabalhá-las, e vendiam o produto acabado. (Hoje, os trabalhadores na indústria não são donos nem da matéria-prima nem das ferramentas. Não vendem o produto acabado, mas a força do trabalho.)
Esses artesãos seguiram o exemplo dado pelos comerciantes, e formaram corporações próprias. Todos os trabalhadores dedicados ao mesmo oficio numa determinada cidade formavam uma associação chamada corporação artesanal. Hoje em dia, quando um político ou industrial faz um discurso sobre a “associação do Capital e Trabalho”, o trabalhador experimentado pode, com justiça, dar de ombros e exclamar: “Isso não existe!” Não pode acreditar nessa afirmação, pois aprendeu pela experiência que há um abismo entre o homem que paga e o que é pago. Sabe que seus interesses não são os mesmos e que toda a conversa do mundo sobre a sociedade entre ambos não modificará a situação. Ê por isso que suspeita das associações patrocinadas pelas companhias. Não deseja, sempre que possível, participar de uma organização de empregados em que o empregador tenha grande influência.
Mas as corporações de artesãos na Idade Média, eram diferentes. Todos os que se ocupavam de um determinado trabalho — aprendizes, jornaleiros, mestres artesãos — pertenciam à mesma corporação. Tanto mestres como ajudantes podiam. fazer parte da mesma organização e lutar pelas mesmas coisas. Isso porque a distância entre trabalhador e patrão não era muito grande. O jornaleiro vivia com o mestre, comia a mesma comida, era educado da mesma forma, acreditava nas mesmas coisas e tinha as mesmas idéias. Era regra, e não exceção, tornar-se o aprendiz, com o tempo, um mestre. Assim sendo, empregador e empregado podiam ser membros da mesma corporação. Mais tarde, quando aumentaram os abusos e as relações já não eram idênticas, encontramos jornaleiros formando corporações próprias. Mas, no princípio dessas organizações, a corporação dos arrieiros congregava todos os fabricantes de arreios, a dos armeiros, todos os fabricantes de armas etc. Os aprendizes tinham direitos iguais, o mesmo ocorrendo com os jornaleiros e mestres artesãos. Havia classes nas proporções, mas dentro de cada uma delas predominava a igualdade. E os degraus da escada da ascensão, de aprendiz a mestre, não estavam fora do alcance dos trabalhadores.
O leitor já ouviu falar de curtidores de couro branco. É uma profissão fora da moda. No século XIV em Londres representava um negócio de grandes proporções; organizou-se, então, uma corporação desses curtidores. Pelos seus estatutos, datados de 1346, podemos aprender algo sobre as corporações artesanais:
 “[1] ... se qualquer pessoa do dito ofício sofrer de pobreza pela idade, ou porque não possa trabalhar... ...terá toda semana 7 dinheiros para seu sustento, se for homem de boa reputação.
“[2] E nenhum estrangeiro trabalhará no dito ofício... ...se não for aprendiz, ou homem admitido à cidadania do dito lugar.
“[3] E ninguém tomará o aprendiz de outrem para seu trabalho durante o aprendizado, a menos que seja com a permissão de seu mestre. E se alguém do dito ofício tiver em sua casa trabalho que não possa completar... os demais do mesmo ofício o ajudarão, para que o dito trabalho não se perca.
“[4] E se qualquer aprendiz se comportar impropriamente para com seu mestre, e agir de forma rebelde para com ele, ninguém do dito ofício lhe dará trabalho, até que tenha feito as reparações perante o Alcaide e os Intendentes.
“[5] Também a boa gente do mesmo ofício uma vez por ano escolherá dois homens para serem .supervisores do trabalho e de todas as outras coisas relacionadas com as transações daquele ano, pessoas que serão apresentadas ao Alcaide e Intendentes... prestando perante eles o juramento de indagar e pesquisar, e apresentar lealmente ao dito Alcaide e Intendentes os erros que encontrarem no dito comércio, sem poupar ninguém, por amizade ou ódio.
“Todas as peles falsas e mal trabalhadas serão denunciadas.
“[6] Ninguém que não tenha sido aprendiz e não tenha concluído seu termo de aprendizado do dito ofício, poderá exercer o mesmo.”54
É pelo estudo de milhares desses documentos que os historiadores podem reconstituir, centenas de anos mais tarde, a história das corporações artesanais.
O item n.° 1 mostra que as corporações se preocupavam com o bem-estar de seus membros. Era uma espécie de irmandade que tomava conta dos membros em dificuldades. Muitas corporações provavelmente começaram com esse objetivo — o da ajuda mútua em períodos difíceis. Incidentalmente, é interessante notar que a assistência ao desempregado e a aposentadoria, que constituem notícias hoje, eram proporcionadas pelas corporações artesanais a seus membros há quase seiscentos anos!
O item n.° 3 é outra prova de que as corporações eram regulamentadas de modo a estabelecer um espírito de fraternidade, e não de concorrência, entre seus membros. Veja-se, particular- mente, a determinação de que os demais membros deviam ajudar aquele que se atrasasse numa encomenda, para que não perdesse o negócio. Evidentemente, os interesses comerciais dos membros da corporação eram uma das principais preocupações da organização.
Ë claro que os membros de uma corporação se uniam para reter em suas mãos o controle direto da indústria. Veja o leitor o item n.° 2 novamente. É importante porque mostra como as corporações artesanais, tal como as corporações comerciais, antes delas, desejavam o monopólio de todo o trabalho do gênero na cidades Para realizar qualquer negócio, era preciso ser membro da corporação artesanal. Ninguém que dela estivesse fora podia exercer o comércio sem permissão expressa. Até mesmo os mendigos da Basiléia e Frankfurt tinham suas corporações que não permitiam aos mendigos de fora mendigar ali, exceto um ou dois dias por ano!55 As corporações não toleravam qualquer interferência nesse monopólio. Era vantajoso para elas, e lutaram para conservá-lo. Até mesmo a Igreja, poderosa como era, tinha de conformar-se com os regulamentos das corporações. Em 1498 os chefes da Igreja de São João, numa cidade alemã, desejavam fazer pão com trigo e o fermento que cultivavam em suas terras. Para tanto, necessitavam da aprovação da corporação dos padeiros, que num ato de consideração a concedeu graciosamente. “Os principais da corporação dos padeiros e todos os membros da corporação... ...permitiram com boa intenção que os diáconos e cônegos... ...tomem e mantenham um padeiro fora da corporação, que lhes faça o pão com a cevada, trigo e centeio que têm... [e como os membros da corporação deixarão de vender pão Igreja, o que é uma perda para eles, a Igreja]... fez o pagamento de 16 marcos.”56
As corporações lutaram para manter o monopólio dos respectivos artesanatos, e não permitiam aos estrangeiros que se imiscuíssem em seu mercado. Quando lemos na história medieval o relato de guerras sangrentas entre uma cidade e outra, devemos lembrar que freqüentemente se travavam apenas por que os membros das corporações não toleravam a concorrência de estrangeiros.
Hoje em dia, o inventor de um novo processo, ou de um processo melhor, patenteia sua invenção, e ninguém mais poderá usá-la. Mas na Idade Média não havia leis sobre patentes, e as corporações, ansiosas de manter o monopólio, se preocupavam naturalmente em ocultar seus segredos artesanais. No entanto, como impedir que eles fossem conhecidos? Como impedir que outros viessem a saber das manhas do ofício? Uma lei veneziana de 1454 nos indica pelo menos um dos métodos: “Se um trabalhador levar para outro país qualquer arte ou ofício em detrimento da República, receberá ordem de regressar; se desobedecer, seus parentes mais próximos serão presos, a fim de que a solidariedade familiar o convença a regressar; se persistir na desobediência, serão tomadas medidas secretas para matá-lo, onde quer que esteja.” 57
Assim como se precavinham da interferência estrangeira em seu monopólio, as corporações tinham também o cuidada. de evitar, entre si, práticas desonestas que pudessem causar prejuízos a terceiros. Nada de competição mortal entre amigos, é o que realmente significa o item 3 dos estatutos dos curtidores. O membro da corporação não podia furtar um jornaleiro ou aprendiz de seu mestre. Também era tabu a prática comercial, hoje muito difundida, de obsequiar o cliente ou suborná-lo para conseguir realizar um negócio. Em 1443, a corporação dos padeiros de Corbie, na França, determinou que “ninguém dará bebidas ou fará qualquer outra gentileza a fim de vender seu pão, sob pena de pagar uma multa de 60 soldos”. 58
Leiamos novamente os itens 5 e 6. Deixam claro que, em troca do monopólio, as corporações prestavam bons serviços — preocupando-se com a qualidade do trabalho de seus associados. Impondo a regra de que cada associado devia passar por um aprendizado, garantiam o conhecimento do oficio. Por outro lado, supervisionando cuidadosamente seu trabalho, protegiam o comprador contra o uso de material inferior. A corporação se orgulhava de seu bom nome, e os artigos vendidos tinham a sua garantia de um padrão mínimo de qualidade. As corporações obedeciam a mil e uma regras para impedir o trabalho inferior e para a manutenção de alto padrão qualitativo, sendo severas as penas para os infratores. O regulamento dos armeiros de Londres de 1322 dizia: “E se forem encontradas em qualquer casa...  ...armaduras à venda de qualquer tipo, que não sejam de boa qualidade... ...essas armaduras serão imediatamente confiscadas e levadas ao Alcaide e Intendentes, e por eles julgadas como boas ou más, segundo sua opinião.”59
Supervisores das corporações faziam viagens regulares de inspeção, nas quais examinavam os pesos e medidas usados pelos membros, os tipos de matérias-primas e o caráter do produto acabado. Todo artigo era cuidadosamente inspecionado e selado. Essa fiscalização rigorosa era considerada necessária para que a honra da corporação não fosse manchada, prejudicando com isso os negócios de todos os seus membros. As autoridades municipais, por sua vez, a exigiam como proteção ao público. Para maior proteção desse público, algumas corporações marcavam seus produtos com o “justo preço”.
Para compreender o que se considerava “justo preço” de um artigo, é necessário lembrar a noção medieval sobre a doutrina da usura, e como as noções do bem e do mal participavam do pensamento econômico com muito mais intensidade do que hoje. No regime de troca da velha economia natural, o comércio não tinha objetivos de lucro, mas sim de beneficiar tanto o comprador como o vendedor. Nenhum dos dois esperava obter mais vantagem do que o outro. Um capote podia ser trocado por cinco galões de vinho sem prejuízo para ninguém, porque o custo da lã e os dias de trabalho necessários para fazer o capote eram iguais ao custo das vinhas e o tempo necessário para preparar o vinho. Quando surgiu o dinheiro, eram ainda apenas esses fatores que predominavam. O artesão sabia o que lhe custavam o material e o trabalho, e estes determinavam o preço pelo qual era vendido o produto acabado. Os artigos feitos e vendidos pelo artesão tinham seu preço justo, calculado honestamente à base do custo real, e eram vendidos exatamente por essa soma, sem qualquer aumento. Santo Tomás de Aquino foi enfático sobre tal ponto: “Ora, o que foi instituído para o bem comum [ ou seja, o comércio] não deve ser mais pesado a um do que a outro... ...Portanto, se o preço exceder o valor de uma coisa, ou o contrário, estará faltando a igualdade exigida pela justiça. Conseqüentemente, vender mais caro ou comprar mais barato uma coisa é em si injusto e ilegal.”60
O que acontecia aos entalhadores que tentavam vender os artigos por mais do justo preço? O que podiam fazer os cidadãos medievais para se protegerem contra o comerciante que queria enriquecer depressa? Conhecemos um caso disso: “Assim, quando o preço do pão se eleva, ou quando os vendedores de frutas, convencidos por um espírito mais ousado de que são ‘todos pobres... ...devido à sua simplicidade, e que se agissem de acordo com ele seriam ricos e poderosos’, formam uma empresa única, para grande prejuízo e dificuldade do povo, os burgueses e camponeses não se consolam com a esperança maior de que as leis da oferta e procura possam reduzi-lo novamente. Com a forte aprovação de todos os bons cristãos, é o moageiro levado ao pelourinho, e argumenta-se com os fruteiros no tribunal do Alcaide. E o padre da paróquia prega um sermão sobre o Sexto Mandamento, escolhendo como tema as palavras do Livro de Provérbios: ‘Não me sejam dadas riquezas nem pobreza, mas o bastante para o meu sustento’.”
O fato de que esses cidadãos revoltados levassem os fruteiros gananciosos à presença do Alcaide mostra que não deixavam apenas à consciência dos membros das corporações a atribuição de cumprir o preceito do justo preço. Apesar de condenar a Igreja a ambição do lucro, o “espírito ousado” que prometia enriquecer os fruteiros não era apenas um, e sim muitos. Não se depositava confiança total nos mercadores. É bem sintomático que a palavra alemã para troca — tauschen — tenha a mesma raiz da palavra correspondente a engano .— täuschen. Dessa forma, tornou-se hábito na época incluírem as autoridades municipais entre suas principais funções a atribuição de impedir que as mercadorias fossem vendidas por preços excessivos. O bailio de Carlisle, por exemplo, ao tomar posse no cargo teve de proferir o seguinte juramento: “Fiscalizarei para que toda sorte de mercadorias que venham a este mercado sejam boas e integrais, e vendidas por preço razoável.”62 Quando, ao invés de usar seu monopólio para manter o justo preço, as corporações dele se aproveitavam para auferir lucros excessivos, as autoridades municipais tinham o direito de abolir seus privilégios.
A noção do que constituía o justo preço das mercadorias era natural, antes que o comércio se ampliasse ou as cidades crescessem. O desenvolvimento do mercado, porém, e a produção em grande escala disso conseqüente provocaram uma modificação das idéias econômicas, e o justo preço acabou sendo substituído pelo preço de mercado. Lembra-se o leitor de como as forças econômicas modificaram o conceito da usura? O mesmo ocorreu com a idéia do justo preço. Também ela foi arrastada pelas novas forças econômicas.
No início do período medieval, o mercado tinha âmbito apenas local, reunindo os habitantes da cidade e dos campos imediatamente vizinhos. Não era afetado pelo que ocorria nas partes distantes do país, ou nas cidades longínquas, e portanto seus preços eram determinados apenas pelas condições locais. Mas mesmo nesse mercado local as condições se modificavam, e com elas os preços. Se uma praga atacasse as vinhas da vizinhança, haveria muito menos vinho do que o habitual, talvez insuficiente para o consumo. Nesse caso seria vendido às pessoas que desejassem e pudessem pagar por ele alto preço, provocado pela escassez. Isso difere muito naturalmente da elevação no preço provocada por um determinado grupo desejoso de maiores lucros, que tranca a produção e eleva as cotações. Havia uma grande diferença entre uma alta de preços provocada por condições imprevistas e incontroláveis e outra, provocada pela ambição de um negociante. Aceitava-se, geralmente, que o aumento ocorresse cm épocas de fome, mas isso era considerado como uma ocorrência “anormal” e inteiramente provocada por condições excepcionais. Não interferia no justo preço, o “natural”, e não justificava lucros excessivos. Era legítimo que, o camponês, num ano de más colheitas, procurasse pelo seu produto pagamento melhor do que num ano de fartura, já que o número de sacos à venda era menor. A noção do justo preço se enquadrava na economia do mercado pequeno, local e estável.
Mas não se enquadrava na economia do mercado grande, exterior e instável. As modificações das condições econômicas provocaram uma modificação das idéias econômicas. Quando o mercado passou a constituir-se de algo mais do que compradores e vendedores de .mercadorias feitas na cidade, e dos produtos das vizinhanças, e quando compradores e vendedores de uma área maior trouxeram ao mercado novas influências, abalou-se a estabilidade das condições locais. Isso ocorreu nas feias, que não estavam sujeitas aos regulamentos sobre o justo preço. Com a ampliação do comércio, as condições relativas ao mercado passaram a ser muito mais variáveis, deixando aquele preço de ser praticável. Ele deu lugar, finalmente, ao preço do mercado. Mas embora esse processo estivesse em evolução, foi necessário um longo prazo para que as pessoas o compreendessem e um prazo ainda maior para que concordassem com ele. Idéias e hábitos costumam permanecer muito tempo após o desaparecimento das condições que os originaram. Quando era hábito andar de cadeirinha, os uniformes dos carregadores eram feitos com alças especiais para sustentar o cabo do veículo; no entanto, mesmo depois de desaparecida a última cadeirinha, tais uniformes continuaram a ser feitos. As alças eram consideradas parte necessária do equipamento de um carregador, e os alfaiates continuavam a fazê-las, mesmo quando sua utilidade desaparecera inteiramente.
É isso o que ocorre com as idéias, e foi o que ocorreu com a noção do justo preço. Essa noção surgira nas velhas condições estáveis, quando tudo o que delimitava o preço tinha origem e era bem conhecido na comunidade, e a idéia persistiu mesmo quando várias influências distantes e desconhecidas passaram a pressionar o mercado local. Na época, é evidente que as novas condições provocaram uma nova atitude. Essa atitude se reflete na obra de Jehan Buridan, reitor da Universidade de Paris no século XIV: “O valor de uma coisa não deve ser medido por sua validade intrínseca... ...é necessário levar em conta as necessidades do homem, e avaliar as coisas em suas relações para com essa necessidade.”63
Buridan falava, nesse caso, da oferta e procura. Argumentava que as mercadorias não tinham valor fixo, independente das condições. O justo preço foi, portanto, derrubado, e substituído pelo preço de mercado.
Tal como se modificou o conceito de preço, modificou-se também a organização das corporações. Na verdade, a história é uma série de modificações. É por isso que este capítulo se inicia com a descrição do funcionamento das corporações e termina com o colapso desse sistema.
O sistema de corporações tivera duas características fundamentais: a igualdade entre os senhores e a facilidade com que os trabalhadores podiam passar a mestres. Em geral, isso ocorreu até os séculos XIII e XIV, os dias áureos dessas instituições. Depois disso, ocorreram modificações inevitáveis.
A igualdade entre mestres tornou-se, em certas corporações, algo do passado. Certos mestres prosperaram, chamaram a si maior parcela do poder, começaram a olhar com superioridade para seus irmãos menos afortunados e acabaram formando corporações exclusivamente suas. Surgiram então as corporações “superiores” e “inferiores”, e os mestres das inferiores trabalharam até mesmo como assalariados para os senhores das primeiras! As corporações de mercadores de antes, que como o leitor se lembrará tinham o monopólio de comércio da cidade, foram suplantadas pelas artesanais, cada qual comerciando em seus artigos. Em certos casos, porém, as corporações comerciais abandonaram o comércio em geral e passaram a se especializar num artigo determinado, e, ao invés de morrerem, floresceram como grandes corporações. Em outros casos, os membros abastados das corporações abandonavam a produção, concentrando-se no comércio, tornando-se assim organizações fechadas que não admitiam artesãos, tal como ocorreu com as doze companhias de fornecimentos de Londres, os seis Corps de Métier em Paris e a Arti Maggiori em Florença. Eram organizações selecionadas, poderosas e ricas — e davam as ordens. Antigamente, a direção de uma corporação podia caber a qualquer de seus membros, rico ou pobre; agora passava a haver discriminação. “Assim, entre os vendedores de roupas usadas em Florença, nenhum dos que apregoavam nas ruas, e entre os padeiros, nenhum dos que levavam o pão de casa em casa, às costas ou à cabeça, poderia ser eleito para reitor.” 64
Do controle das corporações exclusivistas ao controle do governo municipal bastava um passo, que foi dado pelos membros dessas grandes organizações. Tornaram-se os verdadeiros administradores da cidade e quase em toda parte os mais ricos e influentes eram mais ou menos identificados com o governo municipal. No campo, a aristocracia de nascimento constituía a classe dominante, nas cidades, a aristocracia do dinheiro predominava. “No século XV em Dordrecht e em toda parte, nas cidades da Holanda, o governo municipal tornou-se uma pura aristocracia de dinheiro e uma oligarquia de família... ...O poder na cidade ficava com os chamados Rijkheit e Vroedschap, riqueza e sabedoria, tal como se os dois estivessem sempre juntos, corporação consistindo de pequeno número fixo de membros, que tinham o direito de nomear as autoridades municipais, eleger o prefeito e com isso controlar a administração da cidade.”65
E o que ocorria “em toda parte, nas cidades da Holanda”, ocorria também na Alemanha. Em Lübeck, os “mercadores e os burgueses ricos dominavam sozinhos a cidade... ...O Conselho controlava a legislação, a mais alta corte da justiça e os impostos dos cidadãos; governava a cidade com poderes ilimitados”.66
Outra causa do colapso do sistema de corporações foi o aumento da distancia entre mestres e jornaleiros. O ciclo, que até então havia sido aprendiz-jornaleiro-mestre, passou a ser apenas aprendiz-jornaleiro. Passar de empregado a patrão tornava-se cada vez mais difícil. À medida que um número sempre maior de pessoas procurava as cidades, os mestres tentavam preservar seu monopólio, tornando mais difícil a ascensão, exceto a uns poucos privilegiados. A prova necessária para tornar-se mestre ficava cada vez mais rigorosa, e a taxa em dinheiro que era necessário pagar para isso foi elevada — exceto para uns poucos privilegiados. Para a maioria, aumentaram as obrigações, sendo mais difícil galgar a posição de mestre. Para os poucos privilegiados, foram concedidos favores, tornando mais fácil a conquista daquele posto. Assim, na cidade de Amiens os estatutos das corporações dos pintores e escultores, no ano de 1400, exigiam do aprendiz um curso de três anos, apresentar sua obra-prima e pagar 25 libras, mas se “os filhos dos mestres desejarem iniciar e continuar sua atividade na referida cidade, poderão fazê-lo se tiverem experiência, e pagarão apenas a soma d 10 libras”.67 Esse exclusivismo foi levado às últimas conseqüências os estatutos dos fabricantes de toalhas e guardanapos de Paris, onde se estabelecia que “ninguém pode ser mestre-tecelão, se não for filho de um mestre.” 68
Como se sentiriam os jornaleiros, vendo que as oportunidades de melhorar sua posição, tornando-se mestres, desapareciam? Ressentiam-se, naturalmente. Tornou-se cada vez mais claro que seus direitos e interesses chocavam-se com os dos mestres. Que poderiam fazer? Formaram associações próprias. Tentaram assegurar um monopólio do trabalho, tal como os mestres tentavam assegurar o monopólio deste ou daquele ramo. Dessa forma, entre os fabricantes de pregos de Paris era proibido contratar um trabalhador de outro lugar, enquanto houvesse trabalhador local precisando de emprego... ...Os trabalhadores nas padarias de Toulouse, os trabalhadores em sapatos em Paris, organizaram associações em oposição às correspondentes sociedades de mestres... “ 69
Essas associações, tal como os sindicatos de hoje, procuravam conseguir maiores salários para seus membros, e, como os sindicatos, enfrentavam a resistência dos patrões. Queixaram-se estes às autoridades municipais, que declararam ilegais as associações de trabalhadores, ou jornaleiros. Isso ocorreu em Londres em 1396, segundo um velho documento que narra a disputa entre os mestres seleiros e seus trabalhadores: “e sob uma falsa aparência de santidade, muitos dos trabalhadores no ramo influenciaram os jornaleiros seus companheiros [hoje seriam chamados de “comunistas”] e formaram associações próprias, com o objetivo de elevar muito os salários... ...sendo por isso determinado [pelo Alcaide e Intendentes] que os trabalhadores no mencionado ofício estejam sob governo e controle dos mestres do ofício; o mesmo se aplica a todos os trabalhadores em outros ofícios na mesma cidade; e, no futuro, não terão associação, reuniões ou grupos, ou outras coisas proibidas, sob pena de castigo.”70
Na França ocorreu a mesma coisa. Em 1541 os cônsules, intendentes e habitantes de Lyon queixaram-se a Francisco I de que “nos últimos três anos certo trabalhadores e jornaleiros do ofício de impressores levaram a maioria dos outros jornaleiros a se unirem para obrigar os mestres impressores a pagar-lhes salários maiores e dar-lhes melhor comida do que até então tinham, segundo os costumes antigos. Em conseqüência disso, a arte da impressão desapareceu totalmente da dita cidade de Lyon...“71 Os irritados signatários da petição não só reclamaram como também sugeriram um remédio, que Francisco graciosamente transformou em lei, determinando que “os ditos jornaleiros e aprendizes do ofício de impressão não farão juramento, monopólios, nem terão entre si nenhum capitão ou chefe, nem qualquer bandeira ou insígnia, nem se reunirão fora das casas e cozinhas de seus senhores, nem em parte alguma em número superior a cinco, exceto que tenham a autorização e o consentimento do tribunal, e sob pena de serem presos, banidos e punidos como monopolistas...
“Os ditos jornaleiros têm de terminar qualquer trabalho iniciado, e não deixarão incompleto para entrar em greve.” 72
Como era natural, a disputa sobre salários mais altos foi particularmente intensa no período imediatamente posterior à Peste Negra. Com a maior procura do trabalho, a tendência foi de grande elevação de salários. E tal como se baixaram leis nas aldeias, tentando mantê-los nos níveis anteriores à peste, leis semelhantes foram baixadas nas cidades. Na Inglaterra, a Lei dos Trabalhadores de 1349 determinava que “nenhum homem pagará ou prometerá pagar maiores salários que os habituais...  ...nem de qualquer forma receberá ou pedirá o mesmo, sob pena de ter de pagar o dobro do que pede... ...Seleiros, peleiros, curtidores, sapateiros, alfaiates, ferreiros, carpinteiros, pedreiros, teleiros, e outros artífices e trabalhadores, não receberão por seu trabalho e ofício mais do que costuma lhes ser pago.” 73
Na França, uma lei semelhante foi aprovada em 1351: “Os que colheram uvas nos anos passados devem cuidar das vinhas e receber por esse trabalho um terço mais do que recebiam antes da Peste, e nada mais, mesmo que maiores somas lhes tenham sido prometidas... ...E quem lhes der por um dia de trabalho mais do que se determina aqui, e quem receber mais... ...o recebedor e o pagador terão, cada qual, de pagar sessenta soldos... ...e se não tiverem com que pagar a multa em dinheiro, serão aprisionados por quatro dias, a pão e água...“74 Observe-se que, embora nesse caso a lei fosse aparentemente justa, é certo que a sentença de prisão conseqüente ao não-pagamento da multa mais provavelmente recairia sobre os trabalhadores sem dinheiro do que sobre o mestre. Observe-se também que lançar homens à prisão não contribuiria para aliviar a escassez do trabalho.
Essas leis não tiveram êxito. Os mestres pagavam e os trabalhadores exigiam e recebiam mais. Embora as associações de trabalhadores tivessem sida dissolvidas e seus membros multados ou aprisionados, outras associações surgiram e continuaram as greves em prol de melhores salários e condições de trabalho. Os jornaleiros, de fato, estavam em melhor situação do que muitos outros trabalhadores que não tinham permissão para ingressar nessas associações; trabalhadores que não tinham quaisquer direitos em nenhuma corporação e estavam à mercê dos industriais mais ricos, para os quais trabalhavam em condições miseráveis e a salários de fome. Essas pessoas viviam em buracos miseráveis e doentios, não tinham nem a matéria-prima nem as ferramentas com que trabalhavam, e foram os precursores do proletariado moderno, tendo apenas seu trabalho e dependendo do empregador e de condições favoráveis de mercado para a sua sobrevivência. As cidades revelavam, portanto, ambos os extremos — os miseráveis (Florença, em seus grandes dias, contava com mais de 20.000 mendigos, segundo consta) e no alto os muitos ricos, que viviam no luxo.
Na luta para libertar a cidade de seus senhores feudais, todos os cidadãos, ricos e pobres, mercadores, mestres e trabalhadores, haviam unido forças. Mas os. frutos da vitória foram para as classes superiores. As classes inferiores verificaram que haviam simplesmente mudado de senhor — antes, o governo estava formalmente nas mãos de um senhor feudal, e agora passava às mãos dos burgueses mais ricos. O descontentamento dos pobres, aliado ao ressentimento e ciúme dos pequenos artesãos para com esses poderosos, deu origem a uma série de levantes na última metade do Século XIV, que, como as revoltas camponesas, espalharam-se por toda a Europa ocidental. Era uma luta de classes — os pobres contra os ricos, os desprivilegiados contra os privilegiados. Em alguns lugares os pobres venceram, e por breves anos dominaram algumas cidades, introduzindo reformas necessárias, antes de serem derrubados. Em outros, embora a vitória fosse deles, as lutas internas provocaram sua queda imediata. Na maioria dos lugares, a vitória foi, desde o início, dos ricos, mas não sem que tivessem experimentado momentos de ansiedade, num receio sincero da força conjunta das classes oprimidas.
Depois desse período de desordem, as corporações começaram a decair. O poder das cidades livres enfraqueceu. Mais uma vez, passaram a ser controladas de fora — dessa feita, por um duque, um príncipe ou rei mais forte do que os até então existentes, e que estivesse unificando num Estado nacional regiões até então desorganizadas.



C A P Í T U L O  V I I
Aí Vem o Rei!
SE ESTE livro fosse escrito no século X ou XI teria sido muito mais fácil para o autor. Grande parte do material aqui exposto é baseado no estudo de escritores muito antigos, freqüentemente em língua estrangeira — latim, francês antigo ou moderno, alemão antigo ou moderno. O historiador medieval, porém, folheando os documentos do passado, verificaria serem todos escritos na língua que melhor conhecia — o latim. Não faria diferença nenhuma se ele morasse em Londres, Paris, Hamburgo, Amesterdã ou Roma. O latim era língua universal dos eruditos.. As crianças naquela época não estudavam inglês, alemão, holandês ou italiano. Estudavam latim. Falava-se inglês, alemão etc., mas essas línguas só mais tarde passaram a ser escritas. O monge espanhol com sua Bíblia na Espanha lia as mesmas palavras latinas que eram lidas pelos monges de um mosteiro inglês.
Nas universidades do período encontravam-se estudantes de toda a Europa ocidental conversando e estudando juntos sem a menor dificuldade. A.s universidades eram instituições verdadeiramente internacionais.
A religião também era universal. Quem se considerasse cristão nascia na Igreja Católica. Não havia outra. E, espontaneamente ou a contragosto, era necessário pagar impostos a essa Igreja e sujeitar-se às suas regras e regulamentos. Os serviços religiosos em Southampton muito se assemelhavam aos de Gênova. Não havia limites estatais à religião.
Muita gente pensa hoje que as crianças nascem com o instinto de patriotismo nacional. Evidentemente isso não é verdade. O patriotismo nacional.vem em grande parte de se ler e ouvir falar constantemente nos grandes feitos dos heróis nacionais. As crianças do século X não encontravam em seus livros didáticos desenhos de navios de seu país afundando os de um país inimigo. Por uma razão muito simples: não havia países, tal como os conhecemos hoje.
A indústria, como o leitor se lembrará de ter lido no capítulo anterior, deixou de ser doméstica e passou à cidade Tornou-se local, embora não fosse nacional. Para os comerciantes de Chester, na Inglaterra, as mercadorias londrinas que pudessem interferir no seu monopólio eram tão “estrangeiras” como as procedentes de Paris.. O mercador em grande escala sentia o mundo como sua província, e tentava com o mesmo interesse fincar pé num ou noutro.
Mas em fins da Idade Média, no decorrer do século XV, tudo isso se modificou. Surgiram nações, as divisões nacionais se tornaram acentuadas, as literaturas nacionais fizeram seu aparecimento, e regulamentações nacionais para a indústria substituíram as regulamentações locais. Passaram a existir leis nacionais, línguas nacionais e até mesmo Igrejas nacionais. Os homens começaram a considerar-se não como cidadãos de Madri, de Kent ou de Paris, mas como da Espanha, Inglaterra ou França. Passaram a dever fidelidade não à sua cidade ou ao senhor feudal, mas ao rei, que é o monarca de toda uma nação.
Como ocorreu essa evolução do Estado nacional? Foram muitas as razões — políticas, religiosas, sociais, econômicas. Livros inteiros foram escritos sobre esse interessante assunto. Temos espaço para examinar apenas algumas causas — principalmente econômicas.
A ascensão da classe média é um dos fatos importantes desse período que vai do século X ao século XV. Modificações nas formas de vida provocaram o crescimento dessa nova classe e seu advento trouxe novas modificações no modo de vida da sociedade. As antigas instituições, que haviam servido a uma finalidade na velha ordem, entraram em decadência; novas instituições surgiram, tomando seu lugar. É uma lei da História.
O mais rico é quem mais se preocupa com o número de guardas que há em seu quarteirão. Os que se utilizam das estradas para enviar suas mercadorias ou dinheiro a outros lugares são os que mais reclamam proteção contra assaltos e isenção de taxas de pedágio. A confusão e a insegurança não são boas para os negócios. A classe média queria ordem e segurança.
Para quem se poderia voltar? Quem, na organização feudal, lhe podia garantir a ordem e a segurança? No passado, a proteção era proporcionada pela nobreza, pelos senhores feudais. Mas fora contra as extorsões desses mesmos senhores que as cidades haviam lutado. Eram os exércitos feudais que pilhavam, destruíam e roubavam. Os soldados dos nobres, não recebendo pagamento regular pelos seus serviços, saqueavam cidades e roubavam tudo o que podiam levar. As lutas entre os senhores guerreiros freqüentemente representavam a desgraça para a população local, qualquer que fosse o vencedor. Era a presença de senhores diferentes em diferentes lugares ao longo das estradas comerciais que tornava os negócios tão difíceis. Necessitava-se de uma autoridade central, um Estado nacional. Um poder supremo que pudesse colocar em ordem o caos feudal. Os velhos senhores já não podiam preencher sua função social. Sua época passara. Era chegado o momento oportuno para um poder central forte.
Na Idade Média, a autoridade do rei existia teoricamente, mas de fato era fraca. Os grandes barões feudais eram praticamente independentes. Seu poderio tinha de ser controlado e realmente o foi.
Os passos dados pela autoridade central para tornar-se capaz de exercer o poder nacional foram lentos e irregulares. Não se assemelharam a uma escada, com um degrau sobre outro, levando firmemente uma direção definida, mas sim uma estrada acidentada, com muitas idas e vindas. Não levou um, dois, ou cinqüenta ou cem anos. Levou séculos — mas, finalmente, tornou-se realidade.
Os senhores começaram a enfraquecer por terem perdido grande parte de seus bens em terras e servos. Sua força havia sido desafiada e parcialmente controlada pelas cidades. E em certas regiões, em sua constante guerra entre si, estavam realizando o extermínio mútuo.
O rei fora um aliado forte das cidades na luta contra os senhores. Tudo o que reduzisse a força dos barões fortalecia o poder real. Em recompensa pela sua ajuda, os cidadãos estavam prontos a auxiliá-lo com empréstimos de dinheiro. Isso era importante, porque com o dinheiro o rei podia dispensar a ajuda militar de seus vassalos. Podia contratar e pagar um exército pronto, sempre a seu serviço, sem depender da lealdade de um senhor. Seria também um exército melhor, porque tinha uma única ocupação: lutar. Os soldados feudais não tinham preparo, nem organização regular que lhes permitisse atuar em conjunto, com harmonia. Por isso, um exército pago para combater, bem treinado e disciplinado, e sempre pronto quando dele se necessitava, constituía um grande avanço.
Além disso, o progresso técnico nas armas militares também exigia um novo tipo de exército. A pólvora e o canhão estavam começando a entrar em uso, e seu emprego eficiente demandava preparo. E ao passo que o guerreiro feudal podia levar sua arma dura, não lhe seria fácil carregar canhão e pólvora.
O rei foi grato aos grupos comerciais e industriais que lhe possibilitaram contratar e pagar um exército permanente, bem equipado com as últimas armas. Repetidas vezes recorreu à nascente classe de homens de dinheiro, para empréstimos e doações. Eis aqui um exemplo, tomado ao século XIV, quando o rei da Inglaterra pediu ajuda à cidade de Londres: “Sir Robert de Asheby, representando o Rei, foi à Municipalidade de Londres e em nome do Rei convocou o Alcaide e os Intendentes da Cidade... ...a comparecerem perante o Rei Nosso Senhor e o seu Conselho... ...E o Rei então fez oralmente menção das despesas que realizara em sua guerra em países além do mar, e que ainda teriam de ser feitas, e pediu-lhes um empréstimo de vinte mil libras esterlinas... ...Unanimemente eles se prontificaram a emprestar-lhe cinco mil marcos, soma que, segundo disseram, não poderiam ultrapassar. Ao que o Rei Nosso Senhor rejeitou imediatamente, ordenando ao Alcaide, Intendentes e outros que se lembrassem do voto de lealdade que lhe deviam, e pensassem melhor sobre o assunto em questão... ...E embora isso fosse difícil, eles concordaram em emprestar cinco mil libras ao Rei Nosso Senhor, o que foi por este aceito. Doze pessoas foram escolhidas e juradas, para procurar todos os homens da cidade mencionada, e seus subúrbios, e todos segundo sua condição, para levantar a dita soma de cinco mil libras e emprestá-la ao Rei Nosso Senhor.” 75
Não se pense nem por um minuto que os donos do dinheiro o viam apartar-se com satisfação. Nada disso. Fizeram esse empréstimo, e outros, ao rei porque dele recebiam em compensação vantagens bem definidas. Assim, por exemplo, era realmente uma vantagem para o comércio ter leis, como a seguinte, aprovadas por uma autoridade central (1389): “Determinamos que uma medida e um peso sejam aceitos em todo o Reino da Inglaterra e todo aquele que usar qualquer outro peso e medida será aprisionado por metade de um ano.” 76
Além disso, o simples fato de se verem livres dos soldados assaltantes do pequeno barão feudal valia o dinheiro que davam. Estavam dispostos a pagar seu apoio a uma autoridade que os libertasse das exigências irritantes e da tirania de numerosos superiores feudais. No final das contas, era econômico ligar-se a um chefe forte, que podia fazer impor leis como a seguinte, aprovada na França, em 1439:
‘Para eliminar e remediar e pôr fim aos grandes excessos e pilhagens feitas e cometidas por bandos armados, que há muito vivem e continuam vivendo do povo... ...
“O Rei proíbe, sob pena de acusação de lesa-majestade e perda para sempre, para si e sua posteridade, de todas as honras e cargos públicos, e o confisco de sua pessoa e suas posses, a qualquer pessoa, de qualquer condição, que organize, conduza, chefie ou receba uma companhia de homens em armas, sem permissão, licença e consentimento do Rei...
“Sob as mesmas penalidades, o Rei proíbe a todos os capitães e homens de guerra, que ataquem mercadores, trabalhadores, gado ou cavalos ou bestas de carga, seja nos pastos ou em carroças, e não perturbem, nem às carruagens, mercadorias e artigos que estiverem transportando, e não exigirão deles resgate de qualquer forma; mas sim que tolerarão que trabalhem, andem de uma parte a outra e levem suas mercadorias e artigos em paz e segurança, sem nada lhes pedir, sem criar-lhes obstáculos ou perturbá-los de qualquer forma.” 77
Anteriormente, a renda do soberano consistira de proventos oriundos de seus domínios pessoais. Não havia sistema nacional de impostos. Em 1439, na França, o rei introduziu a taille, imposto regular cm dinheiro. No passado, como o leitor se lembrará, os serviços dos vassalos haviam sido pagos com doação de terras. Com o crescimento da economia monetária, isso deixou de ser necessário. Os impostos podiam ser recolhidos em dinheiro, em todo o reino, por funcionários reais pagos não em terra, mas em dinheiro. Funcionários assalariados, distribuídos por todo o país, podiam realizar a tarefa de governar em nome do rei — coisa que no período feudal tinha de ser feita pela nobreza, paga em terras. A diferença era importante.
Era evidente aos soberanos que seu poder dependia das finanças. Tornava-se cada vez mais claro também que o dinheiro só fluía para as arcas reais na medida em que o comércio e a indústria prosperavam. Por isso, os reis começaram a preocupar-se com o progresso do comércio e da indústria. Os regulamentos das corporações, que pretendiam criar e manter um monopólio para um pequeno grupo em cada cidade, passaram a ser considerados. como cadeias à expansão daqueles dois ramos de atividade.
Em função da nação como um todo, as excessivas e contraditórias regulamentações locais teriam de ser postas de lado, terminando com isso o ciúme entre as cidades. Era ridículo, por exemplo, que “fosse necessária uma ordem do Príncipe em 1443 para abrir a Feira de Couro de Frankfurt aos Sapateiros de Berlim.” 78 Com o crescente poder da monarquia nacional, os reis começaram a derrubar os monopólios locais, no interesse de toda a nação. Uma das Disposições do Reino da Inglaterra, de 1436, diz: “Considerando que os Mestres, Responsáveis e Membros das Corporações, Fraternidades e outras Associações... ...se avocam muitos regulamentos ilegais e absurdos... ...cujo conhecimento, execução e correção pertencem exclusivamente ao Rei... ...O mesmo Rei Nosso Senhor, a Conselho e com permissão dos Conselheiros Espirituais e Temporais, e a pedido dos mencionados Comuns, ordena, pela Autoridade do mesmo Parlamento, que os Mestres, Responsáveis e Membros de todas as corporações, fraternidades ou companhias... ...apresentem... todas as suas Cartas Patentes e Estatutos para serem registrados perante os Juízes de Paz... ...e ainda ordena e proíbe, pela Autoridade acima mencionada, que doravante tais Mestres, Responsáveis ou Membros façam uso de regulamentos que não tenham sido primeiramente discutidos e aprovados como bons e justos pelos Juízes de Paz.79
Uma lei de muito maior alcance, aprovada pelo rei da França, mostra o crescente poder do monarca naquele país: “Carlos, pela graça de Deus Rei da França... ...depois de demorada deliberação de nosso Grande Conselho... ...ordena que em nossa dita cidade de Paris não haverá, doravante, mestres de oficio ou comunidades de qualquer tipo... ...Mas desejamos e ordenamos que em todo oficio serão escolhidos pelo nosso Preboste... ...certos elementos antigos do dito oficio... ...e que portanto estão proibidos de realizar qualquer reunião como associação de oficiais ou outras... a menos que tenham o nosso consentimento, permissão e licença, ou consentimento de nosso Preboste... ...sob pena de serem tratados como rebeldes e desobedientes de nós e de nossa coroa da França, e de perda de direitos e possessões.” 80
Não foi tarefa pequena reduzir os privilégios monopolistas de cidades poderosas. Nos países em que elas eram realmente fortes, como na Alemanha e Itália, somente séculos depois se estabelecia uma autoridade central com poder bastante para controlar tais monopólios. É essa uma das razões pelas quais as comunidades mais poderosas e ricas da Idade Média foram as últimas a atingir a unificação necessária às novas condições econômicas. Em outros territórios, embora algumas cidades resistissem a essa limitação de seu poderio, indo ao ponto de lutarem, o ciúme e o ódio impediram que se unissem contra as forças nacionais reunidas — e, felizmente para elas, foram derrotadas. Na Inglaterra, França, Holanda e Espanha, o Estado substituiu a cidade como unidade de vida econômica.
É certo que muitas cidades e corporações tentaram com empenho conservar seus privilégios exclusivistas. Quando o conseguiram, foi sob a supervisão da autoridade real. O Estado nacional predominava porque as vantagens oferecidas por um governo central forte, e por um campo mais amplo de atividades econômicas, eram do interesse da classe média como um todo. Os reis sustentavam-se com o dinheiro recolhido da burguesia, e dependiam, cada vez mais, de seu conselho e ajuda no governo de seus crescentes reinos. Os juízes, ministros e funcionários vinham, em geral, dessa classe. Na França do século XV, Jacques
Coeur, banqueiro de Lyon e um dos homens mais ricos da época,. tornou-se conselheiro real. Na Inglaterra dos Tudor, Thomas Cromwell, advogado, e Thomas Gresham, merceeiro, chegaram a ministros da Coroa. “Um pacto tácito foi concluído entre ela [a realeza] e a burguesia industrial de empreendedores e empregadores. Colocavam a serviço do Estado monárquico sua influência política e social, os recursos de sua inteligência e sua riqueza. Em troca, o Estado multiplicava seus privilégios econômicos e sociais. Subordinava a ela os trabalhadores comuns, mantidos nessa posição e obrigados a uma obediência rigorosa.” 81
Era um exemplo perfeito do provérbio “Uma mão lava a outra”.
Um interessante sinal dos tempos, na Inglaterra, foi o afastamento dos venezianos e dos mercadores alemães da Liga Hanseática, que tinham uma “estação” em Londres. Os estrangeiros haviam, sempre, controlado a importação e exportação do país. Haviam comprado a vários reis, sucessivamente, seus lucrativos privilégios comerciais. Mas nos séculos XV e XVI os comerciantes ingleses começaram a levantar a cabeça. O grupo denominado Mercadores Aventureiros, principalmente, era uma associação particularmente ativa, que desejava arrancar das mãos dos estrangeiros esse comércio proveitoso. A princípio não realizaram grandes progressos, porque o rei queria dinheiro em troca de concessões, e porque medidas drásticas poderiam provocar problemas com outros governos. Mas os Mercadores Aventureiros ingleses insistiram, e em 1534 os venezianos perderam seus privilégios, e seis anos mais tarde a Liga Hanseática reclamava ao rei: “Muito embora a concessão tivesse sido feita há muito tempo aos mercadores da Liga Hanseática, e essa mesma concessão tivesse sido renovada e permitida por Vossa Excelsa Majestade, para que nenhuma forma de imposto, pensão ou pagamento indevido seja cobrada das pessoas, mercadorias ou produtos dos ditos mercadores, não obstante tudo isso, a favor dos pisoeiros e tosquiadores de Londres adotaram-se medidas tais que nenhum mercador da Hanseática ousará embarcar ou retirar do Reino da Inglaterra quaisquer roupas, tecidas ou não, sob pena de perda das mesmas.”  82
Como a Liga Hanseática levasse a lã inglesa para ser transformada em roupas em Flandres e na Alemanha, a florescente indústria de roupas inglesa apoiou os Mercadores Aventureiros. Lutando unidos (com a ajuda de Gresham, merceeiro, em boa hora colocado como ministro da Coroa), ganharam a parada. Os privilégios da Hanseática Alemã foram gradualmente reduzidos e, em 1597, a sede londrina da antes poderosa Hansa foi finalmente fechada.
Os camponeses que desejavam cultivar seus campos, os artesãos que pretendiam praticar seu oficio e os mercadores que ambicionavam realizar seu comércio — pacificamente — saudaram essa formação de um governo central forte, bastante poderoso pa ra substituir os numerosos regulamentos locais por um regulamento único, de transformar a desunião em unidade. Entre as causas que contribuíram para essa união está o sentimento de nacionalidade então surgido. Isso se evidencia na vida, luta e morte de Jeanne d’Arc. Na França, os senhores feudais eram particularmente fortes, e, durante a Guerra dos Cem Anos com a Inglaterra, o mais poderoso, o Duque de Borgonha, aliou-se aos ingleses e impôs várias derrotas sérias ao rei francas. Jeanne, que desejava ver a Borgonha como parte da França, escreveu ao Duque: “Jeanne, a Donzela, deseja que estabeleçais... ...longa, boa e segura paz com o Rei de França... ...em toda a humildade vos peço, imploro e exorto a que não façais mais guerras no sagrado reino de França.”83
Foi inspirando ao exército francas entusiasmo e confiança, e uma crença no sentimento de serem todos franceses, tornando a causa do rei a causa de todos os franceses, que Jeanne prestou serviço à sua pátria, incitando muitos a serem tão fanáticos pela causa da França quanto ela. O soldado, a serviço do senhor feudal, que ouvisse Jeanne afirmar que “Nunca vi correr sangue francas, mas meu cabelo se eriça de horror”, 84podia ver além de seu senhor e pensar em sua fidelidade à França, ao “Meu País”. Assim, o localismo foi suplantado pelo nacionalismo, e a era de um soberano poderoso, à frente de um reino unido, teve início.
Bernard Shaw, em sua Santa Joana, excelente peça sobre a Donzela, tem um trecho importante sobre os efeitos desse nascente espírito de nacionalismo. Um clérigo e um senhor feudal ingleses estão discutindo as habilidades militares de um senhor francês:
O Capelão: Ele é apenas um francas, meu senhor.
O Nobre: Um francês! Onde arranjou você essa expressão? Então esses borgonheses, bretões, picardos e gascões começam a se intitular franceses, tal como nossos companheiros estão começando a se chamar ingleses? Falam da França e Inglaterra como de seus países. Imagine, país deles! Que vai ser de nós, se essas idéias se generalizarem?
O Capelão: Por que, senhor? Poderá isso nos prejudicar?
O Nobre: O homem não pode servir a dois senhores. Se essa idéia de servir ao país tomar conta do povo, adeus autoridade dos senhores feudais, e adeus autoridade da Igreja.” 8586
Esse nobre de visão ampla tinha, evidentemente, razão. O único rival poderoso que o soberano tinha pela frente era a Igreja, e seria inevitável o choque dos dois. Para os monarcas nacionais, não havia possibilidade de dois chefes de um mesmo Estado. E o poder de que dispunha o papa tornava-o muito mais perigoso do que qualquer senhor feudal. O papa e o rei brigaram várias vezes. Houve, por exemplo, a questão de quem teria o direito de nomear bispos e abades, quando ocorresse uma vaga. Isso tinha grande importância, porque tais cargos eram compensadores — o dinheiro vinha, naturalmente, da grande massa popular que pagava impostos à Igreja. Era muito dinheiro, e tanto o rei como o papa desejavam que fosse parar nas mãos de amigos. Os reis, evidentemente, lançavam olhares cobiçosos sobre esses cargos rendosos — e disputavam aos papas o direito de fazer tais indicações.
A Igreja era tremendamente rica. Calcula-se que possuía entre um terço e metade de toda a terra — e, não obstante, recusava-se a pagar impostos ao governo nacional. Os reis necessitavam de dinheiro, parecia-lhes que a fortuna da Igreja, já então enorme e aumentando sempre, devia ser taxada para ajudar a pagar as despesas da administração do Estado.
Outra razão de luta foi o fato de que certos casos eram julgados nos tribunais religiosos, e não nos tribunais normais. Freqüentemente, a decisão da Igreja era contraria à decisão do rei. Outro ponto importante era saber a quem cabia o dinheiro de multas e de suborno: à Igreja ou ao Estado?
Houve também a dificuldade provocada pelo direito que o papa se arrogava de poder interferir até mesmo nos assuntos internos de um país. A Igreja era, com isso, um rival político do soberano.
Existia, portanto, um poder supernacional, dividindo a fidelidade dos súditos do rei, e fabulosamente rico em terras e dinheiro; as rendas dessas propriedades, ao invés de serem encaminhadas ao tesouro real, deixavam o país como pertencentes a Roma. O rei não estava só nessa resistência à Igreja. O Papa Bonifácio VIII escrevia em 1296: “Que o laicato seja amargamente hostil ao clero é questão de tradição antiga, plenamente confirmada pela experiência dos tempos modernos”.86
Os muitos abusos da Igreja não podiam passar despercebidos. A diferença entre seus ensinamentos e seus atos era bastante grande, e até os mais broncos podiam perceba-la. A concentração do dinheiro obtido por todos os métodos, quaisquer que fossem, era comum. Enéias Sílvio, mais tarde Papa Pio II, escreveu: “Nada se consegue em Roma sem dinheiro.”87 E Pierre Berchoire, que viveu na época de Chaucer, escreveu também: “Não é com os pobres que o dinheiro da Igreja é gasto, mas com os sobrinhos favoritos e os parentes dos padres.”88
Uma canção do século XIV mostra o sentimento popular em relação a todos os tipos de sacerdotes, de alto a baixo:
I see the pope his sacred trust berray
For while the rich his grace can gain alway,
His favours from the poor are aye withholden.
He strives to gather wealth as best he may,
Forcing Christ’s people blindly to obey,
So that he may repose in garments golden...
No better is each honoured cardinal.
From early morning’s dawn to evening’s fall
Their time is passed in eagerly contriving
To drive some bargain foul with each and all...
Our bishops, too, are plunged in similar sin,
For pitilessly they flay the very skin
From all their priests who chahce to have fat livings.
For gold their seal official you can win.
To any writ, no matter what’s therein.
Sure God alone can make them stop their thievings...
Then as for. all the priests and minor clerks,
There are, God knows, too many of them whose works
And daily life belie their daily teaching...
For, learned or ignorant, they’re ever bent
To make a traffic of each sacrament
The mass’s holy sacrifice included...
‘Tis true the monks and friars make ample show
Of rules austere which they all undergo,
But this vainest is of all pretences.
In sooth, they full twice as wel we know,
As e’er they did at home, despite their vow
And all their mock parade of abstinences...89
Os muitos escândalos e abusos da Igreja eram públicos e notórios muitos séculos antes que Martinho Lutero pregasse as suas “Noventa e Cinco Teses” à porta da Igreja, em Wittenberg, em 1517. Houve reformadores religiosos antes da Reforma Protestante. Por que, então, a separação da Igreja Católica ocidental e o estabelecimento de igrejas nacionais em lugar da Igreja universal única, ocorreu nesse momento, e não antes?
Os primeiros reformadores religiosos, ao contrário de Lutero, Calvino e Knox, cometeram o erro de tentar reformar mais do que a religião. Wycliffe fora, na Inglaterra, o líder espiritual da Revolta Camponesa, e Hus, na Boêmia, não só protestara contra Roma, como também inspirara um movimento camponês de caráter comunista, ameaçando o poder e os privilégios da nobreza. Isso significava, decerto, que tais movimentos foram combatidos não só pela Igreja, mas também pelas autoridades seculares e, portanto, que foram esmagados. Lutero e os reformadores que o seguiram não comprometeram o apoio da classe dominante pregando doutrinas perigosas de igualdade. Lutero não era um radical. Não comprometeu sua oportunidade de êxito colocando-se ao lado dos oprimidos. Pelo contrário, quando, pouco depois de iniciada sua reforma, irrompeu na Alemanha uma revolta generalizada de camponeses, em parte sob a influência de seus ensinamentos, ele ajudou a sufocá-la. Esse rebelde da Igreja podia dizer: “Estarei sempre ao lado dos que condenam a rebelião e contra os que a provocam.”90 Esse reformador, tão indignado contra os órgãos governamentais da Igreja, escreveu: “Deus prefere que existam os governos, por piores que sejam, do que permitir à ralé que se amotine, por mais razão que tenha.” 91 Enquanto os camponeses revoltados de 1525 gritavam: “Cristo fez livres todos os homens”, Lutero estimulava os nobres a aniquilá-los, com estas palavras: “Aquele que mata um rebelde... ...faz o que é certo... ...Portanto, todos os que puderem devem     punir, estrangular ou apunhalar, secreta ou publicamente... ...Os que perecerem nessa luta devem realmente ser considerados felizes, pois nenhuma morte mais nobre poderia ocorrer a ninguém.” 92
Uma das razões, portanto, do êxito de Lutero foi não cometer o engano de tentar derrubar os privilegiados. Outra razão importante para o advento da Reforma naquele preciso momento está no fato de que Lutero, Calvino e Knox apelavam para o espírito nacionalista de seus adeptos, num período em que esse sentimento crescia. Como a oposição religiosa a Roma coincidia com os interesses do nascente Estado nacional, tinha possibilidades de êxito.
Naquela época, quando a luta do Estado nacional contra a autoridade papa! se estava tornando cada vez mais aguda, o “Discurso à Nobreza Alemã” de Lutero encerrava esse conselho caro aos príncipes: “Porquanto o poder temporal foi concedido por Deus para a punição dos maus e a proteção dos bons, devemos permitir que ele cumpra seu dever em toda a Cristandade, sem respeito a pessoas, quer atinja papas, bispos, padres, monges, freiras ou quem quer que seja.” 93 Parte desse dever, sugere astutamente, é acabar com o controle pelos estrangeiros, e — insinua — tomar os tesouros e terras da Igreja. Esse último ponto é importante. “Acredita-se que mais de trezentos mil florins são enviados da Alemanha a Roma todo ano, sem qualquer razão... ...Há muito os imperadores e príncipes da Alemanha permitiram ao papa recolher annates de todos os feudos alemães, ou seja, a metade da renda do primeiro ano de todos os feudos... ...e como os annates estão sofrendo vergonhosos abusos... ...eles [os príncipes] não devem permitir que suas terras e seu povo sejam tão lamentavelmente e injustamente despojados e arruinados: por meio de uma lei imperial ou nacional, devem conservar no país os annates, ou aboli-los totalmente.”94
Diga-se a um grupo de pessoas que não só têm o direito como o dever de expulsar o estrangeiro poderoso que vem desafiando sua autoridade, em seu próprio país; acene-se para tal grupo a enorme riqueza do estrangeiro como prêmio a ser colhido quando ele for expulso — e certamente haverá fogo. A Igreja teria perdido seu poder mesmo que a Reforma Protestante não tivesse ocorrido. De fato, a Igreja já havia perdido esse poder, pois sua utilidade se reduzia. Antes, era bastante forte para propiciar à sociedade um certo alívio das guerras feudais, impondo a Trégua de Deus; agora, o rei estava em melhores condições para sustar essas pequenas guerras. Antes, a Igreja tinha controle completo da educação; agora, surgiam escolas independentes fundadas por mercadores que haviam prosperado. Antes, o direito da Igreja fora supremo; agora, o velho direito romano, mais adequado à necessidade de uma sociedade comercial, fora ressuscitado; antes, a Igreja era a única que dispunha de homens cultos, capazes de conduzir os negócios do Estado; agora, o soberano podia confiar numa nova classe de pessoas treinadas no movimento comercial e consciente das necessidades do comércio e da indústria do país.”95
Esse novo grupo, a nascente classe média, sentia que havia um obstáculo no caminho de seu desenvolvimento: o ultrapassado .sistema feudal. A classe média compreendia que seu progresso estava bloqueado pela Igreja Católica, que era a fortaleza de tal sistema. A Igreja defendia a ordem feudal, e foi em si mesma uma parte poderosa da estrutura do feudalismo. Era dona, como senhor feudal, de cerca de um terço da terra, e sugava ao país grande parte de suas riquezas. Antes que a classe média pudesse apagar o feudalismo em cada país, tinha de atacar a organização central — a Igreja. E foi o que fez. 96
A luta tomou um disfarce religioso. Foi denominada Reforma Protestante. Em essência, constituiu a primeira batalha decisiva da nova classe média contra o feudalismo.





[1] P. Bolssonnade, Life and Work n Medieval Europe (fifth to fifteenth centurles),  p. 146. Alfred Knopf N. Y., 1927. (“Pois o cavaleiro e também o padre / Vivem daquele que faz o trabalho.”)
[2] Ibid., p. 148. (“Se ele tiver ganso ou galinha gorda, / Bolo de farinha de trigo em seu armário,  /  Tudo isso terá de ser do senhor.”)
3 Ibid., p. 136.
4  J. W. Thompson. An Economic and Social History of the Mlddle Ages, 300-1300, p. 730. The Century Company N. Y., 1928.
5  English Economic Histony, Select Documents, p. 72. Compilado e organizado por A. ,E. Bland, P. A. Brown e R. H. Tawney. G. Bell & Sons, Londres, 1914.
6  Ibid., p. 66.
7 Translations and Reprints from the Original Sources of European History, vol. IV, Seção III, p. 22. Séries para 1897. Departamento de História da Universidade de Pensilvãnia, 1898.
8 J. H. Robinson, Readings in European Hlstory, vol. 1, p. 177.Ginn & Company, Boston, 1904.
9  Translations and Reprints, op. cit., p. 31.
10 Translations and Reprints, op. cit., p. 24.
11 Bland, Brown e Tawney, op. cit., p. 29.
12 Translations and Reprints, op. cit., p. 26.
13 Translations and Reprints, op. cit., p. 21.
14 J. H. Robinson, op. cit., vol. 1, p. 178.
* Antiga medida de tens, variável de 32 e. 48 hectares. (N. do T.)
15 Ibid.
16 Cf .J. W. Thompson, op. cit., pp. 656 e ss.
17 G. G.. Coulton, citado em J. W. Thompson, op. cit., p. 652.
18 Ibid., p. 681
19 P. Boissonnade, op. cit., p. 131.
20 J. W. Thompson, op. cit., p. 710
21 Cf, H. W. C. Davis, Medieval Europe, pp, 184-187. Thornton Butterworth, Ltd., Londres, 11. edição, 1930.
22 J. H. Robinson, op. cit., p. 314, nota.
23 Translation and Reprints, op. cit., vol III Seção I. Séries para 1896
24 A. Thierry. Recuell des Monuments Inédits de t’histoire du tiers état, vol. III p. 643, Paris, 1856.
25 Ordonnancez des Roys de France de la Troisième Race. Recuelliés par ordre chronologique, voL II, p. 309. Paris, Imprensa Real, 1729.
26 S. Poignant,  La Foire de Lille,  p. 179.  E. Raoust, Lille, 1932
27 H. Pirenne, “The Stages in the Social History of Capitalism”, na The American Historical Review, vol. XIX, abril de 1914. The Macmillan Company, N. Y., 1914
28  A Source Book of MedievaL History, p. 328 organizado por F. A. Ogg. American Book Company, N. Y., 1907.
28a  Ibid
29 Dortmunder Urkundenbuch, Bd. 1, pp. 33, 269-271, bearbeitet von Karl Rübel. Dortmund, 1881.
30 H. Pirenne, Medieval Cittes, p. 177. Princeton Unlversity Press, 1925. Muito me utilizei deste livro para a compilação do material sobre as cidades.
31 A. Luchaire, Les communes, françaises à l’epoque des Capétiens Directs, p. 112. Hachette et Cie., Paris, 1890.
34 A. Thierry, op. cit., vol. IV, pp. 170, 171.
33 Charles Goss, The Gild Merchant, vol. 1, pp. 39-40, 2 vols. Clarendon Press, Oxford, 1890.
34 Ibid., vol. 1. p. 48.
35 Ibid., vol. II, p. 195.
36 Ibid., vol. 1, p. 36, nota.
37 Tudor Economic Documents, vol. II, p. 142. Compilação de R. H. Tawney e E. Power. Longmans, Green and Company, Londes, 1924.
38 S Mateus, XVI, 26.
39 Ibid., XIX 24.
40 Citado por R. H. Tawney. Religion and the Rise of Capitalism, Harcourt, Brace and Co., N. York, 1926, p. 36.
41 A. E. Monroe, Earty Ecowomic Thought, Harvard University Press, 1924, pp. 113-4
42 E. O. Schulze, Kolonisierung und Germanisterung der Gebiete Zwischen Saale und Elbe, Hirzel, Leipzig, 1896,
43   P. Boissonnade, op. cit., p. 229,
44 O. J. Thatcher e E. H, McNeal. Source Hook for Medieval Hilstory, pp. 572-3, Charles Seribner’s Sons, N. York, 1905.

45 T. W. Page. End of Villainage in England, pp 54, 55, American Economic Association, N. York, 1900.
46 Ibid., p. 41.
47 C G. Coulton, The Medieval Village, pp. 147-8, Cambridge University Press, 1925.
48 Ibid.. p. 148.
49 F. Pollock e F. W. Maitland, History of England Law Before the Time of Edward I, vol. 1, Cambridge University Press, pp. 378-9
50 O Decameron, de Boccacio.
51 Citado por .J. Kulischer, Algemeine Wirtschaftsgeschichte dês Mittelalters und der Neuzeit. (O grito é nosso.)
52 Bland, Brown e Tawney, op. cit., p. 105.
53 Page, op. cit, p. 85.
54 Bland, Brown e Tawney, op. cit., p. 136.
55 Cf. J. Kulischer, op. cit., vol. I, p. 192.
56 F Philippi, Die Aeltesten Osnabrückischen Gildeurknden (bis 1500). Kisling, Osnabrück 1890, pp. 75-6. 
57 G. Renard, Gilds in the Middle Ages, G. Bell & Sons Ltd.. Londres, 1918, p. 36.
58 Thierry, op. cit., p. 540.
59 Memories of London and London Life in  the XIIIth, XIVth and XVth Centuries, Longmans, Green & Co., Londres, 1868, p. 146. Seleção, tradução e organização de H. T. Riley.
60 Monroe, op cit., pp. 54-5.
R. H. Tawney, op. cit., p. 55.
62 W. J. Ashley, An Introducion to English Economic History and Theory, Livro II, p. 60. G. P. Putnam’s Sons, N. York, 1913.
63 V. Brants, Les Théories Économiques aux XIIIº et XIVº Siécles p. 69, Peeters, Louvain, 1895.
64 G. Renard, op. cit., p. 29.
65 K. von Hegel. Städte und Gilden der germanischen Volker   Mitte      lalter, vol. II, p. 315. Leipzig, 1891.
66 Ibid, p. 452.
67 Thierry, op. cit., vol. II, p. 5.
68 Renard, op. clt. p. 39.
69 Ibid., p. 19.
70 Bland, Brown e Tawney, op. cit., pp. 139-41.
71 Jourdan, Decrusy e Isambert, Recueil général dez anciennes Lois Françaises, voL XII, Parte 2, pp. 763-65, Plon Frères. Paris.
72 Ibid.
73 Bland, Brown e Tawney, op. cit., pp. 165, 166.
74 Ordonnances, op. cit. p. 367
75 Memorials of London and London Life, op. cit., pp. 208-10.
76 The Statutes of the Realm from Original Records and Authentic Manuscripts, vol. II, Londres, 1816, p. 63.
77 Ordonnances des Roys de France de la Troisième Race, op. cit., v. XI, 1782, pp. 306-313.
78 G. Schmoller, The Mercantile System and Its Historical Slgnificance, The Macmillan Company. N. York, 1910, p. 22.
79 Statutes of the Realm, op. cit., vol. II, p 298-9.
80 Documents Relatifs à l’Histoire de l’Industrie et du Commerce en France, vol. II, pp. 123-124. Publicados por M G. Faignez, Picard, Paris, 1898 e 1900.
81 P. Boissonnade, Le Socialisme d’État (1453-1661). Champion, Paris, 1927, pp. 9-10.
82 Tudor Economic Documents, op. cit., vol. II, p. 31.
83 Lang, The Maid of France, Longmans, Green & Co., Londres, 1929, p. 165.
84 Ibid., p. 110.
85 G. B. Shaw, Saint Joan, cena 4.
86 G. G. Coulton, Encyclopaedia Britannica, vol. XIX, p. 34 (14ª  ed.). Artigo sobre a Reforma.
87 Ibid.
88 Ibid
89 J. H. Robinson, op. cit., vol. 1, pp. 375-77. [“Vejo o papa seu sagrado compromisso trair  /  pois enquanto os ricos sua graça ganham sempre  /  seus favores aos pobres são negados. / Procura reunir a maior riqueza possível  /  obrigando os cristãos a obedecer cegamente, / para que ele possa deitar-se entre roupas de ouro...  /  Nem são melhores os honrados cardeais,  /  que desde a manhã cedo até a noite fechada / passam o tempo empenhados em imaginar / um modo de enganar a toda gente...  /  Nossos bispos também estão mergulhados em pecado semelhante,  /  pois impiedosamente arrancam a própria pele  /  de todos os padres que por acaso vivam bem./ Por ouro podemos conseguir seu selo oficial  /  a qualquer ordem, não importa o que diga. /  Sem dúvida somente Deus pode pôr fim a suas roubalheiras... /  Também entre todos os padres e clérigos menores  /  há, sabe Deus, grande número cujas obras e vida diária contrariam os ensinamentos que pregam quotidianamente... /  Pois, cultos ou ignorantes, estão sempre dispostos  /  a fazer comércio de todo sacramento,  /  Inclusive da própria missa sagrada...  /   É certo que monges e frades exibem com estardalhaço  /  as regras
austeras a que estão sujeitos. / Esse porém é o mais vão de todos os fingimentos. / Na verdade, vivem duas vezes melhor do que sabemos, / como fazem sempre em casa, apesar do voto / e de toda a sua falsa exibição de abstinência...
90 J. S. Shapiro, Social Reform and the Reformation, Columbia University Press, 1909, p. 78.
91 Ibid., p. 80.
92 Ibid., pp. 85-6.
93 Lutero, Discurso à Nobreza Alemã.
94 Ibid.
95 Cf. W. Cunningham, Western Civilfsation ia Its Economic Aspects (Medieval and Modern Times), Cambridge University Press, 1913.
96 Cf. Engels, Socialismo, Utópico e Científico.