Cap. VIII ao XIV.
Páginas 93 a 182
C A P Í T U L O V I I I
“Homem Rico...”
QUANDO o presidente dos Estados Unidos, às três e dez da tarde de 31 de janeiro de 1934, assinou uma proclamação decretando que o número de grãos de ouro num dólar fosse reduzido de 25,8 para 15 5/21, estava seguindo um velho costume espanhol. Era também um velho costume inglês, francês e alemão. A desvalorização da moeda é um recurso que tem séculos de idade. Os reis da Idade Média que desejavam ter o dom de Midas, de transformar tudo em ouro, recorriam à desvalorização da moeda como substitutivo adequado para conseguir dinheiro.
Quando o Presidente Roosevelt reduziu a percentagem de ouro do dólar, seu objetivo primordial foi o de elevar os preços. O fato de que essa redução tivesse dado ao Tesouro dos Estados Unidos um lucro de cerca de 2 bilhões e 150 milhões de dólares foi apenas incidental. Para os reis da Idade Média, porém, o objetivo principal era o lucro. Não queriam elevar os preços, mas estes se elevavam assim mesmo, devido à desvalorização.
O que significa a desvalorização da moeda, e como provoca lucro imediato para o soberano e aumento dos níveis de preço?
A desvalorização significa simplesmente menor quantidade de ouro ou prata nas moedas. Quando o rei determinava que a prata antes empregada em uma moeda fosse dividida por duas, com o acréscimo de um metal de base ou sem valor, tinha duas moedas ao invés de uma. Nominalmente, o valor era o mesmo. A moeda continuava a ser chamada coroa, libra, mas na prática seu valor era de apenas a metade do valor anterior. Ora, se doze ovos são trocados habitualmente por um pedaço de pão, não devemos esperar continuar a receber um pedaço do mesmo tamanho, se oferecermos apenas seis ovos — mesmo que chamemos a essa meia dúzia de dúzia inteira. Da Mesma forma, não seria possível continuar recebendo pelo dinheiro desvalorizado o mesmo que se recebia antes pelo dinheiro antigo mais forte. A prata nele contida era menor, portanto o pedaço de pão dado em troca teria de ser menor também. O valor das moedas em circulação dependia do valor de seu conteúdo metálico, e assim, quanto menos ouro ou prata houvesse numa moeda, tanto menor o seu valor, apesar de continuar a ter o mesmo nome. Dizer que a moeda valia menos é dizer simplesmente que ela compra menos coisa. Em outras palavras, os preços sobem.
Tudo que os reis viam, porém, era o lucro imediato que lhes advinha da desvalorização da moeda. A vErdade, porém, é que quando o dinheiro se modifica de valor o comércio é afetado; quando os preços se elevam, os pobres e os que têm renda fixa são prejudicados — isso podia ter pouca importância para o rei, mas era fundamental para alguns de seus súbitos. A maioria das pessoas, freqüentemente até mesmo o rei, não via essa ligação entre a desvalorização da moeda e a elevação das preços. Mas houve quem visse. Depois de 17 modificações no valor das moedas de prata, na França, no período de também 17 meses — de outubro de 1358 a março de 1360 — escrevia um parisiense: “Em conseqüência da taxa excessiva das moedas de ouro e prata, mercadorias, alimentos e outros artigos de que todos necessitam para consumo tornaram-se tão caros que as pessoas comuns não têm como viver.”97
Nicholas Oresme, bispo de Lisieux em 1377, escreveu um livro famoso sobre o dinheiro, mostrando que a desvalorização da moeda — fonte de lucro temporário para o rei — de certa forma era um roubo ao povo: “as medidas do trigo, vinho e outras coisas menos importantes são freqüentemente marcadas com selo publico do rei, e se alguém as fraudar é considerado como falsificador infame. Da mesma forma, as inscrições colocadas numa moeda indicam a exatidão de seu peso e qualidade. Quem, portanto, terá confiança num príncipe que diminua o peso ou a qualidade do dinheiro que tem seu próprio selo?...
Há três modos, na minha opinião, pelos quais é possível obter lucros com dinheiro, além de seu uso natural. O primeiro é a arte da troca, a guarda ou movimentação do dinheiro; o segundo é a usura; e o terceiro é a alteração do dinheiro. O primeiro é vil, o segundo é mau e o terceiro é pior ainda.”98
Richard Cantillon, cidadão inglês, escrevendo quase 400 anos depois, resumiu claramente o efeito que tem sobre os preços a desvalorização da moeda: “A história de todos os tempos mostra que, quando os príncipes desvalorizaram seu dinheiro, conservando-lhe porém o valor nominal, todas as matérias-primas e produtos manufaturados tiveram seus preços aumentados proporcionalmente ao menor valor da moeda.”99
O leitor provavelmente conhece o nome de Copérnico como sendo o grande cientista que primeiro formulou, em 1530, a teoria de que a Terra gira em torno do Sol. Mas Copérnico foi também um estudioso das questões do dinheiro. Advogava a modificação do sistema monetário do seu país, a Polônia. Percebia que muitas moedas diferentes constituíam um obstáculo ao comércio, e por isso defendia a adoção de um sistema monetário unificado, ao invés de se permitir que qualquer baronete fundisse suas próprias moedas. E, acima de tudo, defendia a estabilização do dinheiro: “Por inúmeras que sejam as desgraças que habitualmente levam à decadência os reinados, principados e repúblicas, as quatro principais são, na minha opinião, as lutas, as pestes, a terra estéril e a deterioração do dinheiro.” 100
Algumas das principais razões da oposição desses estudiosos à desvalorização do dinheiro foram assim resumidas por Oresme: “Ë escandaloso e desonroso para um príncipe permitir que o dinheiro do seu reino não tenha valor fixo, flutuando dia a dia... ...Em conseqüência dessas alterações, as pessoas ficam freqüentemente sem saber quanto vale uma moeda de ouro ou prata, de forma que têm de discutir tanto sobre o seu dinheiro como sobre seus salários, o que é contrário à natureza. E o que devia ser tido como certo se torna incerto e confuso. O total de ouro e prata de um reino decresce em conseqüência de tais alterações e reduções e, apesar das precauções, são levados para lugares onde têm maior valor... ...Assim, a oferta do material para o dinheiro decresce nos países em que a desvalorização é praticada... ...Em conseqüência das alterações e reduções deixam de vir mercadorias dos países estrangeiros com suas boas mercadorias, para os países onde sabem que o dinheiro é mau. Além disso, no próprio país onde essas modificações ocorrem, o intercâmbio de mercadorias é de tal forma perturbado que mercadores e artesãos não sabem como negociar entre si.” 101
Os conselheiros do rei muito se preocupavam com os efeitos da desvalorização da moeda. Desejavam o desenvolvimento do comércio e não queriam que o suprimento já inadequado do metal se reduzisse ainda mais através da exportação do ouro e prata a outros países, por mercadores e banqueiros. Enquanto o pobre é geralmente vítima das flutuações nos preços, porque está sempre tão atarefado em seu trabalho que não tem tempo ou meios de se proteger, os entendidos, os negociadores de dinheiro, cuidam de sua riqueza e até mesmo lucram nessas ocasiões. Em alguns países elaboraram-se freqüentemente leis de proibição à exportação do ouro e prata, tão necessários eram, na época, ao desenvolvimento do comércio. Em 1477, instituiu-se a seguinte lei na Inglaterra: “E considerando o estatuto elaborado no ano segundo de... o falecido Rei Henrique VI, ordena-se, entre outras coisas, que nem ouro nem prata sejam transportados para fora deste reino... ...Contrariando esse Estatuto e Lei, e diversas outras leis sobre o mesmo... ...dinheiro de ouro e prata, as vasilhas e bandejas de ouro e prata desta terra, que como mercadorias são levadas para fora deste Reino, para grande empobrecimento do dito Reino, e até a destruição final do Tesouro do mesmo Reino, se pronto remédio não for adotado: Ordena-se, pela autoridade acima mencionada, que nenhuma pessoa leve ou faça levar para fora deste Reino qualquer forma de dinheiro da Moeda deste Reino, nem da Moeda de qualquer outro Reino, Terra ou Senhoria, nem qualquer bandeja, vasilha, barra ou jóia de ouro... ...ou prata, sem a licença do Rei.”102
Os reis não só tentaram, por todos os meios, reter todo ouro e prata existentes no país, mas também aumentar sua quantidade, concedendo privilégios especiais aos mineiros: “Todo e qualquer mineiro, mestre ou operário, que trabalhem continuamente nas minas já abertas ou para abrir ainda em nosso Reino... têm nossa permissão, à sua própria custa, e não de outro modo, de abrir minas e nelas trabalhar livremente, sem impostos, e ninguém os perturbará, molestará ou intervirá em seus assuntos, em qualquer hipótese, nem os senhores espirituais ou temporais, nem mercadores, nem nossos próprios funcionários, que dizem ter direitos nas mencionadas minas.”103
Nessa época, quando o ouro e prata eram tão necessários à expansão do comércio, essa mesma expansão levou à descoberta de grandes jazidas desses metais que, por sua vez, conduziram a uma expansão ainda maior do comércio. Hoje, com a nossa perspectiva de 4OO anos, podemos apreciar o valor exato da descoberta de Colombo; mas, para o povo do século XV, Colombo, que não tivera êxito em sua viagem às Índias, representava um fracasso. Foi somente no século XVI, com o afluxo da prata das minas do México e do Peru para a Espanha, que se deu a essa descoberta seu devido valor.
Se as mercadorias forem transportadas por milhares de quilômetros através de montanhas e desertos, sobre camelos, cavalos e mulas; se parte do caminho forem carregadas nas costas de homens; se ao longo de toda a rota houver perigo constante de ataque de tribos cruéis; se pela via marítima houver perigo das tempestades destruidoras e dos piratas assassinos; se aqui e ali, por qualquer via, os diferentes governos exigirem elevados impostos de portagem; se no último porto a tocar as mercadorias forem vendidas a um grupo de mercadores que tenham o monopólio do comércio naquele terminal e, assim, possam acrescer de um proveitoso lucro o já então elevado preço — claro está que o custo dessas mercadorias será exorbitante. E foi o que aconteceu às mercadorias muito procuradas do Oriente, no século XV. Quando as especiarias orientais, pedras preciosas, drogas, perfumes e peles chegavam a esses portos, onde os barcos venezianos os aguardavam para . embarcá-los, já custavam um dinheirão; depois que os venezianos as revendiam aos mercadores das cidades do Sul da Alemanha, que eram os principais distribuidores através da Europa, seus preços ascendiam a cifras astronômicas.
Mercadores de outros países não se conformavam em ver os lucros enormes do comércio com o Oriente ficarem apenas nas mãos dos venezianos — desejavam deles participar. Sabiam que podiam ganhar muito dinheiro com as mercadorias orientais, mas não conseguiam romper o monopólio de Veneza. O Mediterrâneo oriental era um lago veneziano e nada havia que pudessem fazer contra — ali.
Mas podiam tentar atingir as Índias por outra rota não controlada por Veneza. Agora que a bússola, a princípio usada pelos marinheiros italianos, no século XII, fora montada na rosa-dos-ventos; agora que se tornara possível determinar a latitude pelo uso do astrolábio; agora que os marujos italianos haviam começado a traçar cartas baseadas em observações locais, em vez de contar apenas com as feitas de imaginação ou fundamentadas em boatos; agora finalmente não era mais necessário seguir nas proximidades da costa. Talvez se os homens fossem bastante ousados, poder-se-ia encontrar um novo caminho para o Oriente, o guardião do tesouro em especiarias, ouro e pedras preciosas.
Navios se fizeram mar, adentro, bravamente, em todas as direções. A viagem de Colombo rumo ao Ocidente foi apenas uma do sem-número de viagens semelhantes que se empreenderam. Outros marinheiros ousados desviaram sua rota em direção norte, ao Mar Ártico, na esperança de encontrar uma via, por aí. Outros ainda se fizeram ao mar, pelo sul, ao longo da costa da África. Finalmente, em 1497, Vasco da Gama, por essa rota do sul, circunavegou o continente africano e, em 1498, ancorou no porto de Calecute, India. Descobrira-se o caminho marítimo para as Índias.
Significava esse acontecimento que a busca nas demais direções fora paralisada? Nem por sombra. Colombo tentou muitas vezes — fez outras viagens, num esforço para ultrapassar a barreira em que se constituíra o continente americano. Outros, pela via ocidental, se defrontaram com a mesma barreira, navegavam rumo norte, ainda outros navegavam rumo sul, procurando... procurando... E muitos anos depois, em 1609, Henry Hudson ainda procurava um caminho para o Oriente.
E agiam muito bem. Havia muito dinheiro — enorme quantidade — numa rota para o Oriente. Na primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, os lucros atingiram a 6.000%! Pouco surpreende que os outros navios tenham empreendido a mesma perigosa e lucrativa viagem. O comércio se intensificou aos saltos. Se Veneza comprava 420 mil libras de pimenta por ano ao sultão do Egito, agora um único navio, em sua viagem de regresso a Portugal, transportava um carregamento de 200 mil libras! Não mais importava que a antiga rota para o Oriente tivesse sido conquistada pelos turcos; não mais importava que os venezianos cobrassem preços exorbitantes; o caminho para o Oriente, via Cabo da Boa Esperança, tornou os mercadores independentes da benevolência com que os turcos os tratavam e rompeu o monopólio veneziano.
Modificou-se, então, a direção das correntes de comércio. Se anteriormente a posição geográfica de Veneza e das cidades do Sul da Alemanha lhes proporcionava vantagens sobre os demais países situados mais a oeste, agora eram esse países da costa atlântica que contavam com vantagens. Veneza e as cidades que a ela se ligavam comercialmente passam, então, a ficar de fora da principal via de comércio. O que antes constituía estrada principal agora não é senão um atalho. O Atlântico tornou-se a nova rota mais importante, e Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra e França ascenderam à eminência comercial.
Por boas razões é este período da História chamado “Revolução Comercial”. O comércio que, como já vimos, crescia paulatinamente, passou a dar passos gigantescos. Não só o velho mundo da Europa e regiões da Ásia se abriram aos comerciantes empreendedores, mas também os novos mundos da América e África. Não mais se limitava o comércio aos rios e mares bloqueados por terras, como o Mediterrâneo e o Báltico. Se, anteriormente, o termo “comércio internacional” queria apenas dizer comércio europeu com uma parte da Ásia, agora a expressão se aplicava a uma área muito mais extensa, abrangendo quatro continentes, tendo rotas marítimas como estradas. As descobertas iniciaram um período de expansão sem par, em toda a vida econômica da Europa ocidental. A expansão dos mercados constituiu sempre um dos incentivos mais fortes à atividade econômica. A expansão dos mercados, nessa época, foi maior do que nunca. Novas regiões com que comerciar, novos mercados para os produtos de todos os países, novas mercadorias a trazer de volta — tudo apresentava um caráter de contaminação e estímulo e anunciou um período de intensa atividade comercial, de descobertas posteriores, exploração e expansão.
Formaram-se companhias de mercadores a fim de aproveitar as perigosas, mas emocionantes — e altamente lucrativas — oportunidades. Basta conhecer o nome de uma das primitivas e mais famosas das novas companhias: “Mistério e Companhia dos Aventureiros Mercadores para a descoberta de regiões, domínios, ilhas e lugares desconhecidos”. Ora, isto por si só dá o que pensar. Mas tal nome não conta nem mesmo a metade da história. Por que, uma vez realizada a “descoberta”, fortalezas tinham de ser erguidas, guarnições de homens estabelecidas no “posto”, arranjos efetuados com os nativos, levar-se a cabo o comércio, descobrirem-se métodos de manter afastados os estranhos, isto para não falar dos preparativos longos e dispendiosos, como comprar ou construir navios, engajar tripulação e fornecer alimentação e equipamento durante a jornada, incerta e perigosa.
Tudo isso custava dinheiro — e muito dinheiro. Custava muito mais dinheiro do que era possível alguém ter, sozinho, ou desejar arriscá-lo em tão perigosa aventura.
A organização tradicional das associações que se haviam criado para negociar com as velhas rotas de comércio não se adaptava às novas condições. O comércio a uma distância considerável, em terras desconhecidas, com povos estranhos, e sob condições pouco familiares, necessitava um novo tipo de associação — e, como sempre acontece, surgiu esse novo tipo, para atender às necessidades.
O que uma, ou duas, ou três pessoas, separadamente, não podiam realizar, muitas, unidas num único órgão, agindo como um todo, sob uma única direção, podiam. A sociedade por ações foi a resposta dada pelos mercadores nos séculos XVI e XVII ao problema de como levantar os enormes capitais necessários a tão vastos empreendimentos como o comércio com a América, África e Ásia. A primeira sociedade por ações inglesa foi a dos Aventureiros Mercadores. Contava com 240 acionistas que entraram, cada um, com 25 libras — soma de certa importância, na época. Era pela venda de ações a muitas pessoas que se mobilizava o considerável capital necessário às grandes expedições comerciais, marítimas e colonizadoras. Essas companhias por ações foram as precursoras de nossas grandes empresas de hoje. Então, como agora, qualquer pessoa — com capital — podia tornar-.se sócia de uma sociedade anônima, comprando ações. Mesmo as expedições de corsários foram organizadas em bases de sociedade por ações. Em uma das expedições de Drake contra os espanhóis, a própria Rainha Elisabete possuía ações, em troca do empréstimo de alguns navios. Os lucros, apenas nessa expedição, se elevaram a 4.700%, dos quais a boa Rainha Bess recebeu cerca de 250 mil libras, como sua cota!104
Que a participação secreta da Rainha nessas expedições de pilhagem não era assim tão secreta o demonstra uma Carta de Fugger, de Sevilha, datada de 7 de dezembro de 1569: “E a parte mais aborrecida deste caso está em que este Hawkins não poderia aprontar uma frota tão numerosa e bem equipada sem o auxílio e consentimento secreto da Rainha. Isso contraria o acordo para o qual o Rei enviou um emissário especial à Rainha da Inglaterra. Ë natureza e costume dessa Nação faltar ao prometido, e assim a Rainha finge que tudo foi feito sem seu conhecimento e desejo.” 105
Os nomes de alguma dessas companhias organizadas nos séculos XVI e XVI mostram onde realizaram suas empresas de comércio ou de colonização, ou ambas. Havia sete companhias das “índias Orientais”, sendo as mais famosas as britânica e holandesa; havia quatro companhias das “índias Ocidentais”, organizadas na Holanda, França, Suécia e Dinamarca; companhias do “Levante” e companhias “Africanas” também eram populares; e de interesse particular para nós, na América, eram as companhias “Plymouth” e “Virginia”, organizadas na Inglaterra.
Fácil é adivinhar que qualquer companhia criada com o objetivo de levar a cabo essas aventuras dispendiosas e arriscadas estava certa de receber, de seu governo, todas as vantagens comerciais possíveis. Uma das mais importantes, sem dúvida, era o direito a um monopólio do comércio. A companhia não desejava a intromissão de comerciantes estrangeiros em seu território. Acreditou-se, durante algum tempo, que a grande expansão do comércio fora, em grande parte, provocada pelo ousado pioneirismo dessas companhias comerciais. Hoje, muitos historiadores duvidam disso. Argumentam que a existência de tantos mercadores fora das companhias, que tentavam penetrar no comércio, é prova de que, se não houvesse esses monopólios, o volume do comércio podia ter sido ainda maior.
De qualquer forma, sabemos que as companhias se lançaram aos negócios, principalmente visando lucros para seus acionistas. Quando eles podiam ser obtidos pelo aumento da produção e maiores vendas, elas o faziam; quando os lucros se conseguiam através da limitação da produção, elas também o faziam. Os programas de “colonização” da Agricultural Adjustment Agency, dos E. U. A., parecem velharia à luz do que se segue: Os holandeses “pagavam pensões de cerca de 3.300 libras aos dirigentes nativos, a fim de exterminar o cravo-da-índia e a noz-moscada nas demais ilhas, e concentravam seu cultivo em Amboyna, onde eles próprios podiam manter o controle. No que se relaciona ao comércio com a Índia Oriental, não se mostravam ansiosos por desenvolvê-lo, preferindo mantê-lo dentro de certos limites que lhes asseguravam um elevado índice de lucro”. 106
Apesar do fato de que, neste exemplo, o “elevado índice de lucro” era obtido pela restrição, e não pelo desenvolvimento da produção, de modo geral registravam-se lucros altos no desenvolvimento do comércio. Essa foi a época áurea do comércio, quando se fizeram fortunas — o capital acumulado — que formariam o alicerce para a grande expansão industrial dos séculos XVII e XVIII.
Os livros de História discorrem longamente sobre as ambições, conquistas e guerras deste ou daquele grande rei. É um erro a ênfase que dão a tais fatos. As páginas que consagram à história desses reis deveriam antes ser dedicadas aos poderes verdadeiros que se escondiam atrás dos tronos — os ricos mercadores e financistas da época. Constituíam o poder atrás do trono, porque os reis, a cada passo, necessitavam de sua ajuda financeira. Durante os duzentos anos dos séculos XVI e XVII as guerras foram quase contínuas. E alguém tinha que pagá-las. Com efeito, eram financiadas pelos que tinham dinheiro — mercadores e banqueiros.
Foi um pequeno banqueiro alemão, Jacob Fugger, chefe da grande casa bancária de Fugger, quem decidiu a questão de a quem caberia usar a coroa do Sagrado Império Romano: se Carlos V da Espanha ou Francisco I da França. A coroa custou a Carlos 850 mil florins, dos quais 543 mil foram emprestados por Fugger. Podemos fazer uma idéia do quanto era influente Jacob Fugger, o homem por trás dos bastidores, pelo tom de uma carta que escreveu a Carlos quando este atrasou o pagamento da dívida. E apenas devido ao tremendo poder que lhe provinha de sua fortuna, teve Fugger a audácia de escrever tal carta: “... Além disso; adiantamos aos emissários de Vossa Majestade uma grande quantia, parte da qual nós mesmos tivemos que levantar, através de amigos. É bem sabido que Vossa Majestade Imperial não teria obtido a coroa do Império Romano sem a minha ajuda, e posso prová-lo com os documentos que me foram entregues pelas próprias mãos dos enviados de Vossa Majestade. Neste negócio, não dei importância à questão de meus próprios lucros. [Não acredita nisso!] Porque, tivesse eu deixado a Casa da Áustria e me decidido em favor da França, muito mais teria obtido em dinheiro e propriedades, tal como, então, me ofereceram. Quão graves desvantagens teriam, nesse .caso, resultado para Vossa Majestade e a Casa da Áustria, bem o sabe Vossa Real Inteligência.” 107
Pouca coisa de importância se passou no século XVI, sem que a sombra dos Fuggers se projetasse, de uma forma ou de outra. Iniciaram seus negócios no século XV com um estabelecimento comercial de lã e especiarias. Mas foi como banqueiros que fizeram fortuna. Emprestavam capital a outros mercadores, a reis e príncipes e, em troca, recebiam proventos de minas, de especulações comerciais, de terras da coroa, de praticamente todo tipo de empreendimento que desse lucro. Quando os empréstimos não eram repostos tornavam-se donos de propriedades, minas, terras — o que tivesse sido dado como garantia. Até o papa devia dinheiro aos Fuggers. Estes tinham ramificações e agentes em to da parte. O balancete dos Fuggers, em 1546, mostra débitos do imperador alemão, da cidade de Antuérpia, dos reis da Inglaterra e Portugal, e da Rainha da Holanda. Seu capital, naquele ano, se elevou a 5 milhões de florins. A História que datasse esse período, não como o reinado do rei Fulano de Tal, mas como a Idade dos Fuggers, estaria muito mais próxima da verdade.
Embora os Fuggers constituíssem a casa bancária mais importante da época, havia muitas outras quase tão grandes. A Welser, outra casa bancária alemã, prestou um auxilio a Carlos V de nada menos de 143 mil florins; também ela fazia grandes investimentos em empresas comerciais, minas e terras. A Hochstetter, a Haug e a Imhof realizavam mais ou menos a mesma espécie de negócios comerciais e financeiros. Entre os financistas italianos desse período, os Frescobaldi, os Gualterotti e os Strozzi começavam a agigantar-se. Um ou dois séculos antes, os Peruzzi e os Medici haviam sido os nomes de importância. Uma das melhores medidas do tremendo aumento registrado na escala da atividade financeira e comercial é a seguinte comparação das fortunas dessas grandes famílias de banqueiros com a dos Fuggers:
“1300 — os Peruzzis .......................... 800.000
1440 — os Medicis .......................... 7.500.000
1546 — os Fuggers ........................... 40.000.000”108
Antuérpia era o centro de toda essa atividade financeira e comercial. Quando a corrente do comércio se deslocou do Mediterrâneo para o Atlântico, as outrora grandes cidades italianas entraram em declínio e Antuérpia tomou seu lugar. Não era o tamanho que a tornava grande — tinha apenas uma população de cerca de 100 mil habitantes. Era sobretudo o fato de estar livre das restrições de toda natureza. Enquanto as demais cidades na Idade Média dificultavam aos mercadores estrangeiros a prática de negócios dentro de seus muros, Antuérpia os recebia de braços abertos. Era realmente um centro livre, de comércio internacional — todos ali podiam comerciar e todos comerciavam. Sua Municipalidade, onde mercadores, corretores e banqueiros se reuniam para efetuar seus negócios, tinha gravada em seus muros a seguinte epígrafe: “Para uso de mercadores de qualquer nacionalidade e idioma”. O convite foi aceito por mercadores de toda parte do mundo. O comércio de tecidos ingleses estava centralizado em Antuérpia, e Antuérpia era também o mercado mais importante das especiarias da Índia. Quando os venezianos perderam o monopólio do comércio das especiarias, perderam-no para os portugueses, e estes praticamente realizavam todos os seus negócios através de Antuérpia. Aí se desenvolveu um hábito de tremenda importância — o que prova os passos gigantescos dados pela indústria e comércio. Trata-se da venda feita através de amostras de mercadorias padronizadas e reconhecidas. Em vez de ter à mão toda a mercadoria, para passá-la ao comprador, o tipo moderno de corretor e agente entrou em cena. Vendia suas mercadorias através de uma amostra-padrão. As feiras, que deviam sua importância principalmente à suspensão temporária das costumeiras restrições ao comércio, receberam o golpe de morte de um mercado que era sempre livre. O antigo mercado fora superado pelo intercâmbio em bases modernas.
E como Antuérpia era de tão grande importância comercial, tornou-se também o centro financeiro principal. Aí as grandes casas bancárias alemãs e italianas tinham seus depósitos principais, e as transações com dinheiro passaram a ser mais importantes do que o verdadeiro comércio. Foi por essa época, em Antuérpia, que o moderno instrumental de finanças entrou em uso diário. Os banqueiros inventavam formas e meios de efetuar pagamentos para que o intercâmbio de mercadorias se fizesse fácil e rápido. Quando o mercador de um país, a Inglaterra, por exemplo, compra mercadorias de um mercador de um país distante, digamos a Itália, como pagá-las? Enviará o inglês ouro ou prata ao italiano? É perigoso e caro. Algum sistema de crédito devia ser concedido para tornar desnecessários tais embarques de ouro. Assim, concordava-se em.que o inglês, em pagamento de sua dívida ao italiano, lhe entregasse um pedaço de papel estipulando a quantia devida pelas mercadorias compradas. Ou ainda, numa outra transação, talvez algum mercador italiano devesse dinheiro a um mercador inglês por mercadorias pelas quais igualmente enviara ao mercador inglês um pedaço de papel acusando o débito. Com uma câmara de compensação central os dois débitos seriam cancelados — sem que qualquer quantia tivesse sido enviada a longas distâncias, quer da Inglaterra para a Itália, ou da Itália para a Inglaterra. Tal sistema foi projetado séculos atrás. Assim o descreve um escritor do século XVI: “Quanto aos pagamentos dos mencionados países, entre os mercadores de Lyons [ centro financeiro semelhante a Antuérpia] e outros países e cidades, a maioria se faz através de documentos, isto é: de um lado você me deve, de outro lado eu devo a você; cancelamos as dívidas e nos proporcionamos compensações mútuas; e raramente utilizamos dinheiro para efetuar os ditos pagamentos.” 109
E esse milagre de fazer negócios sem ser preciso a transferência de dinheiro também é explicado por Cantillon: “Se a Inglaterra deve à França 100 mil onças de prata, para o balanço do comércio, se a França deve 100 mil onças à Holanda, e 100 mil à Inglaterra, essas três quantias poderão ser encaminhadas através de letras de câmbio entre os respectivos banqueiros desses três Estados, sem qualquer necessidade de se enviar dinheiro a qualquer deles.”110
Tudo isso, por si só não constitui informação de importância. É importante apenas ao mostrar que a maquinaria financeira para enfrentar as necessidades do comércio em expansão foi posta em movimento no século XVI, por mercadores e banqueiros. Sem dúvida, métodos novos e melhores lhe foram acrescidos, desde então, em consonância às novas condições reinantes, mas o alicerce foi construído há centenas de anos.
Com novas terras abertas à exploração, com o comércio avançando aos saltos, mercadores e banqueiros aumentando suas fortunas, era de se esperar que esta Idade dos Fuggers passasse à História como uma época áurea de prosperidade e felicidade para a humanidade. Mas estaríamos enganados se assim pensássemos.
C A P Í T U L O I X
“...Homem Pobre, Mendigo, Ladrão”
A IDADE DOS FUGGERS foi também a Idade dos Mendigos. Os dados sobre o número de mendigos nos séculos XVI e XVII são surpreendentes. Um quarto da população de Paris na década de 1630 era constituído de mendigos, e nos distritos rurais seu número era igualmente grande. Na Inglaterra, as condições não eram melhores. A Holanda estava cheia deles e na Suíça, no século XVI, “quando não havia outra forma de se livrar dos mendigos que sitiavam suas casas ou vagavam em bando pelas estradas e florestas, os homens de bens organizavam expedições contra esses desgraçados heimatlosen (desabrigados)”.111
Qual a explicação dessa miséria generalizada entre as massas, num período de grande prosperidade para uns poucos? A guerra, como sempre, foi uma das causas. A I Guerra Mundial, de 1914.1918, para muitos, bateu todos os “recordes” de ruínas e misérias nas regiões da Europa onde a luta se travou. Mas as guerras do período que estudamos foram ainda mais devastadoras — e talvez não tenhamos experimentado nunca algo tão terrível como a Guerra dos Trinta Anos na Alemanha (1618.1648). Cerca de dois terços da população total desapareceram, a miséria dos que sobreviveram era extremamente grande. Cinco sextos das aldeias do império foram destruídos. Lemos de uma delas, na Palatinado, que em dois anos foi saqueada 28 vezes. Na Saxônia alcatéias de lobos vagavam livremente, pois ao norte cerca de um terço da terra havia sido abandonado. 112
A guerra, portanto, foi uma das causas da intensa miséria e sofrimento do povo. Havia outra. A América. O Novo Mundo teve um papel indireto, mas importante, na criação da Idade dos Mendigos. Como?
Enquanto os mercadores da Inglaterra, Holanda e França amontoavam fortunas enormes no comércio, os espanhóis haviam descoberto uma forma mais simples de aumentar as somas de dinheiro de seu tesouro, Embora seus exploradores não tivessem conseguido descobrir uma rota para as Índias que lhes proporcionasse lucros comerciais, esbarraram com os continentes da América do Norte e do Sul. E no México e Peru havia minas de ouro e prata de grande valor — à disposição deles, para o roubo. Os porões dos galeões espanhóis não eram carregados de mercadorias para serem vendidas com lucro, mas com ouro e prata — especialmente prata. As minas da Saxônia e Áustria há muito produziam grandes quantidades desse metal, mas eram realmente muito pequenas comparadas com a riqueza que se derramava sobre a Espanha, vinda de suas possessões no Novo Mundo. Em 55 anos, de 1545 a 1600, calcula-se que anualmente cerca de dois milhões de libras esterlinas eram levadas da América para os tesouros espanhóis. E parecia que, ao se esgotar uma mina, descobria-se sempre um novo veio, para assegurar o fluxo. A casa da moeda espanhola produziu apenas 45.000 quilos de prata no período de 1500 a 1520; no período de 15 anos, porém, que foi de 1545 a 1560, sua produção aumentou de seis vezes, passando a 270.000 quilos; no período de 20 anos, entre 1580 e 1600, essa produção pulou para 340.000 quilos, ou seja, quase oito vezes o que fora em 1520!
Produção de ouro da casa da moeda espanhola
Ano
1500-1520
1545-1560
1580-1600
E esse enorme suprimento de prata, levado da América para a Espanha, ali ficava? De forma alguma. Circulava por toda a Europa tão logo era desembarcado. Os reis da Espanha travaram uma série de guerras tolas, uma após outra — e pagavam em dinheiro pelo abastecimento e pelos soldados. Os espanhóis compravam mais do que vendiam — não podiam comer prata — e o dinheiro lhes fugia das mãos para os bolsos dos mercadores que os abasteciam.
Que efeito teve sobre a Europa esse afluxo de prata sem precedente? Provocou um aumento sensacional dos preços. Não apenas um tostão ou dois neste ou naquele artigo, mas um aumento espetacular no preço de tudo. Houve uma verdadeira revolução nos preços, tal como ocorrera apenas três ou quatro vezes nos últimos mil anos da história mundial. Os preços das mercadorias em 1600 eram mais de duas vezes superiores ao que foram em 1500, e em 1700 estavam ainda mais altos — mais de três vezes e meia o que haviam sido quando a revolução dos preços teve início.
Explicamos como uma moeda desvalorizada reduz a capacidade aquisitiva do dinheiro, ou, vendo a coisa de outro ângulo, eleva os preços. O aumento no total de dinheiro em circulação teve o mesmo efeito. O dinheiro é como tudo o mais que o povo deseja, e para o qual não há oferta ilimitada. Todos queremos ar, mas ele é tão abundante que não tem valor econômico — não temos de pagar para usá-lo. Não pensamos em comprar e vender água, mas em países secos e quentes, em áreas desertas, a água é vendida porque a oferta é limitada em relação à procura. Se, quando a troca era usada como método de comércio, a colheita da uva fosse boa, e a do trigo má, seria compreensível que tivéssemos de dar mais vinho do que antes para conseguir igual volume de trigo. O mesmo se aplica ao dinheiro. Quando ele se torna abundante em relação às coisas pelas quais é trocado, seu valor cairá em termos dessas coisas — ou seja, os preços se elevarão. Uma queda no valor do dinheiro significa um aumento nos preços, e um aumento no valor do dinheiro representa uma queda nos preços. Essa modificação é provocada pela abundância ou escassez do dinheiro em circulação.
Portanto, em conseqüência do influxo de metais preciosos para a Europa, os preços se elevaram — e quanto! — até que o assunto favorito para as conversas passou a ser: “Lembro-me dos bons dias em que podíamos-comprar manteiga por um quarto do que temos de pagar hoje, e os ovos — eram praticamente de graça!
Os tesouros americanos chegavam primeiro à Espanha, e foi ali que o aumento dos preços se fez sentir primeiro. Nicolas Cleynaerts, holandês que viajou pela Espanha e Portugal em 1536, assustou-se com os altos preços ali vigentes. O custo de uma barba era tão alto que o levou a escrever para casa a seguinte nota alegre: “Em Salamanca, tive de pagar meio-real para fazer a barba, e por isso não me espantei com o fato de haver na Espanha maior número de homens barbados do que em Flandres.”113
Depois que a prata americana se espalhou da Espanha por toda a Europa, os preços altos que surpreenderam tanto os turistas de Flandres vigoravam por toda parte. O homem comum não compreendia a razão. Não sabia que a revolução dos preços era internacional, e que não se limitava à sua região. Protestava, e procurava uma causa, culpando a maldade desta ou daquela pessoa avara. Assim, num Discurso sobre o Bem Comum deste Reino da Inglaterra, escrito no século XVI, o autor mostra como o lavrador atribui os altos preços aos arrendamentos exorbitantes exigidos pelos donos de terras, ao passo que os cavaleiros alegam serem os arrendamentos elevados devidos aos preços exorbitantes pedidos pelos produtos agrícolas:
“Agricultor: Creio que é culpa vossa, senhores, dessa escassez, porque atribuís às vossas terras tal preço que os homens que nela vivem precisam vender caro, ou não poderão pagar o arrendamento.
“Cavaleiro: E eu digo que é culpa vossa, agricultores, de sermos obrigados a elevar nossos arrendamentos, pois temos de comprar tão caro tudo o que nos forneceis, como milho, gado, gansos, porcos, capões, frangos, manteiga e ovos. O que há com todas essas coisas, que são agora vendidas mais caro, com um aumento de mais de metade do preço pelo qual foram vendidas nestes últimos oito anos? Não se recordam os vizinhos desta cidade de que, dentro desses oito anos, podíamos comprar o melhor porco ou ganso por apenas 4 dinheiros, e que hoje me custam 8 dinheiros. E um bom capão por três ou quatro dinheiros, um frango por um dinheiro, uma galinha por dois dinheiros, e que hoje me custam o dobro dessa importância; e o mesmo ocorre com artigos maiores, como carneiro ou carne de boi.” 114
Houve, sem dúvida, pensadores da época que desprezaram o hábito medieval de tratar das questões econômicas em termos apenas do pecado humano. Homens como Jean Bodin e Cantillon tinham consciência de que atrás da elevação dos preços estava a força de uma lei impessoal, não-influenciada pelas pessoas “boas” ou “más”. Bodin escreveu na segunda metade do século XVI: “Considero que a alta de preços que observamos vem de três causas: A causa principal e quase única (que ninguém até agora descobriu) é a abundância de ouro e prata, que neste reino hoje é maior do que foi nos últimos quatrocentos anos.” 115
A ligação entre a elevação dos preços e o influxo de ouro e prata começou a se tornar clara a outros, pouco depois que Bodin escreveu seu grande trabalho. No Tratado do Cancro da Comunidade da Inglaterra, escrito em 1601 por Gerrard de Malynes, mercador, há o seguinte trecho: “... a abundância de dinheiro geralmente encarece as coisas, e a escassez de dinheiro, da mesma forma, faz que as coisas em geral se tornem baratas. De acordo, portanto, com a escassez ou a plenitude do dinheiro, as coisas em geral se tornam mais caras ou baratas, e por isso a grande abundância de dinheiro ou metal em barras que nos últimos anos tem vindo das Índias Ocidentais para a Cristandade encareceu tudo.”116
O que foi motivo de candente controvérsia nos séculos XVI e XVII tornou-se evidente a todos no século XVIII, segundo Cantillon: “Se forem encontradas minas de ouro ou prata e quantidades consideráveis de minério delas forem extraídas, todo esse dinheiro, seja emprestado ou gasto, entrará em circulação e não deixará de elevar o preço dos produtos e mercadorias em todos os canais da circulação em que penetrar... ...Todos concordam em que a abundância de dinheiro aumenta o preço de tudo. A quantidade de dinheiro trazida da América para a Europa nos dois últimos séculos justifica essa verdade pela experiência.” 117
Quais os resultados desse aumento de preços? Quem se beneficia e quem sofre? Os beneficiados foram os mercadores. Embora suas despesas se elevassem, os lucros de seus negócios aumentaram ainda mais. Pagavam mais pelo que compravam, mas cobravam muito mais pelo que vendiam. Outro grupo beneficiado foi o de pessoas cujas despesas permaneciam fixas, mas cujos produtos aumentavam de preço — os que tinham um arrendamento a longo prazo, sob quantia há muito fixada, e que iam vender sua manteiga, ovos, trigo, cevada etc., por preços muito maiores.
Por outro lado, houve vários grupos severamente prejudicados pela revolução nos preços. Os governos, por exemplo, tinham dificuldades cada vez maiores em equilibrar a receita e a despesa. A renda era fixa, ao passo que as despesas aumentavam sempre. Foi um período de modificação, quando o Estado nacional despontava — e a organização financeira dos governos estava desatualizada, sem corresponder às novas condições. Modificava-se lentamente, mas, enquanto isso, rompia-se seriamente em muitos lugares, e a revolução dos preços aumentava suas dificuldades. Os problemas monetários lançavam os reis, cada vez mais, nos braços da classe dos homens ricos, que obtiveram muitas concessões nessa época. As revoluções do período, que trouxeram novo poder político à burguesia, estavam intimamente ligadas à revolução dos preços.
Os salários dos trabalhadores também sofreram. Um período de alta de preços é quase sempre também um período de elevação de salários, e portanto seria de esperar que no fim tudo desse certo. Mas há um senão importante nisso: é que os salários jamais acompanham a elevação dos preços. Os aumentos de salários geralmente têm de ser conquistados com luta. São obtidos por uma ação coletiva deliberada que encontra resistência, ao passo que os preços são elevados pelas operações do mercado. O trabalhador era contra isso. Em fins do século XV o salário de um dia do trabalhador na França correspondia a 4,3 quilos de carne; um século depois valia apenas 1,8 quilo. Um hectolitro de trigo, que lhe custava quatro francos no primeiro período, não poderia ser comprado por menos de 20 francos no segundo. Rogers calcula que na Inglaterra um camponês em 1495 podia, em 15 semanas, ganhar o bastante para abastecer sua casa por um ano; em 1610, porém, não poderia comprar o mesmo volume de provisões nem que trabalhasse todas as semanas sem exceção! E “em 1610... ...um artesão de Rutland (Inglaterra) teria de trabalhar 43 semanas para ganhar o mesmo que um artesão obtinha em 1495 com dez semanas de trabalho”.118 Para o trabalhador isso significa a necessidade de apertar o cinto ou lutar por salários mais altos, para atender ao custo de vida maior, ou tornar-se mendigo. Ocorreram as três coisas, em conseqüência da revolução dos preços.
Outro grupo que sofreu foi o de rendas fixas, a classe dos proprietários, dos que viviam de anuidades, pensões ou da renda de bens que produziam um juro fixo. Tal foi, por exemplo, o caso de uma Srta. Reynerses, que em fins do século XIV empregou seu dinheiro na compra de uma pensão anual vitalícia:
“Nós, o Conselho, alcaide e mestres de corporações da cidade de Halberstadt pelo presente declaramos ter vendido à donzela Altheyde Reynerses uma renda anual de cem marcos... ...pela soma de 500 marcos, que nos foi paga:”
Talvez a Srta. Reynerses tivesse contado com essa soma para viver tranqüila na velhice. Muito bem. Mas se tivesse vivido nesse período de preços em ascensão, teria a infeliz experiência de passar fome, porque, enquanto sua renda permanecia a mesma (cem marcos, no caso), as coisas que podia comprar subiam de preço, diminuindo assim a sua capacidade aquisitiva. A renda nominal continuava a mesma, mas a renda real teria decrescido. Isso sempre ocorre aos que dependem de renda fixa, em período de elevação de preços.
Da mesma forma, as pessoas com rendas fixas, proporcionadas pela terra, sofreram muito. O leitor se lembrará de como o pagamento dos arrendamentos em dinheiro substituiu o costume da prestação de serviços. Isso foi interessante para a nobreza latifundiária até que ocorreu a revolução nos preços. A partir de então, os donos de terra continuavam a receber os mesmos arrendamentos baixos, embora tivessem de pagar os novos preços altos. Estavam num beco sem saída. Que poderiam fazer? Que poderiam fazer os senhores e os ricos, que haviam recebido ou comprado as terras da igreja confiscadas pelo rei, para impedir que os preços continuassem subindo e as rendas permanecessem as mesmas? Sentiam que era necessário arrancar mais dinheiro da terra. Mas como?
Havia duas formas — o fechamento das terras e a elevação dos arrendamentos.
O fechamento ocorreu em certas proporções na Europa, principalmente na Inglaterra. O leitor deve lembrar-se do sistema de campo aberto, que descrevemos no primeiro capítulo. Era um sistema prejudicial, pois o lavrador empreendedor e dinâmico não podia trabalhar num ritmo próprio, ou tentar experiências novas; tinha de se adaptar ao ritmo dos que trabalhavam faixas de terras contíguas à sua. Uns poucos lavradores ignorantes podiam impedir o progresso de toda uma aldeia. Surgiu, por isso, em alguns lugares, o hábito de trocar as faixas, o que permitiu a vários lavradores passar suas propriedades, de 12 hectares de faixas espalhadas em terras de outros, a 4 ou 5 propriedades compactas de dois ou três hectares. Um homem de sorte, ou esperto, poderia conseguir unificar todas as suas faixas, reunindo-as numa única propriedade compacta. A medida seguinte era colocar uma cerca em volta da propriedade ou propriedades. O que antes era campo aberto, tornava-se um campo fechado — isto é cercado. Quem tenha viajado pela Nova Inglaterra se lembrará das paredes de pedra que cercam os campos de cada lavrador. Na velha Inglaterra, onde a pedra era fácil de achar, também se construíram cercas de pedra. E quando não havia pedra, cercavam os campos com sebes. As cercas desse tipo, atrás das quais a terra continuava a ser lavrada, não prejudicavam a ninguém e levavam a um melhoramento na produção. Ninguém levantou objeções, e tanto o agricultor pobre como o rico se beneficiaram com o processo.
Mas havia uma cerca de outro tipo, que prejudicou a milhares de pessoas: a cerca para a criação de ovelhas. Como o preço da lã subira (a lã era a principal exportação da Inglaterra) muitos senhores viram uma oportunidade de ganhar mais dinheiro da terra transformando-a de terra cultivada em pasto de ovelhas. Isso ocorrera antes da revolução dos preços, mas esta veio estimular o movimento, e maior número de senhores cercaram suas terras para criar ovelhas. Enquanto para o senhor isso significava mais dinheiro, significava também a perda do emprego e do meio de vida dos lavradores que haviam ocupado a terra que passava a ser cercada. Para cuidar de ovelhas, e necessário um número de pessoas menor do que para cuidar de uma fazenda — e os que sobravam ficavam desempregados. Muitas vezes, o senhor achava que para reunir numa só área as várias propriedades espalhadas tinha de expulsar os arrendatários de cujas terras necessitava. Assim fazia, e mais gente perdia seu meio de vida. Pelo veemente protesto dos panfletários da época, ficamos sabendo das dificuldades que a cerca para criação trouxe ao lavrador pobre.
Por vezes, o senhor simplesmente cercava a terra em servidão de pastagem. Isso significava que o gado do arrendatário pobre não tinha onde pastar, o que provocava sua ruína. Não tinha direitos o arrendatário? Não podia recorrer à justiça? Sim, podia. Mas recorrer à justiça sempre foi mais fácil para os ricos, que podem pagar as custas; mesmo nos casos em que os arrendatários pudessem ter ganho, faltavam-lhes os meios para continuar a luta. O senhor, que tinha dinheiro, podia manter o processo em tramitação até que o arrendatário fosse obrigado a desistir — e podia então comprar-lhe a terra e acrescentá-la à sua propriedade contínua. É essa a história encerrada na seguinte petição feita à Câmara dos Comuns pelos lavradores de Wootton Bassett “pela restauração dos direitos dos comuns”:
“Que embora o alcaide e os arrendatários livres do dito burgo conservassem um pasto livre para uso comum de toda sorte de animais um certo Sir Francis Englefield fechou o dito parque e isso há muito tempo, e sendo ele muito poderoso, os ditos arrendatários livres não puderam servir-se da lei; pois um certo John Rous, um dos arrendatários livres, foi obrigado a vender toda a sua terra (pelo valor de quinhentas libras) em conseqüência das despesas com a lei, e muitos outros se empobreceram igualmente... ...Ficamos assim privados de toda a terra comum que sempre tivemos, e não nos resta nem meio metro dela... ...Ficamos, portanto, reduzidos a tamanha pobreza, e assim continuaremos a menos que praza aos Céus moverem os corações dessa Honrada Câmara para que se compadeça de nós e aprove alguma lei que nos faça gozar novamente de nossos direitos... [seguem-se vinte e três assinaturas]. Muitas outras assinaturas poderíamos ter conseguido, mas muitos arrendatários temem perder suas terras com isso e não ter de que viver... ...e de outra forma teriam assinado também.” 120
Nem todas as cercas destinavam-se ao pasto de ovelhas. Como era mais fácil e mais barato administrar uma fazenda grande do que um grupo de fazendas pequenas, os senhores freqüentemente cercavam as propriedades também para obter melhores colheitas, Os infelizes arrendatários que tinham faixas de terra ambicionadas pelo senhor viam-se logo entre as fileiras cada vez maiores de pessoas sem teto.
Embora saibamos hoje mais sobre fechamento de terras do que sobre a elevação dos arrendamentos do período, esta última teve maior importância. Os arrendamentos e as taxas pagas quando um novo arrendatário tomava conta de uma propriedade estavam praticamente estacionados. Haviam sido fixados pelo hábito — e, no passado, o hábito tinha força de lei. Mas agora que a revolução das preços exigia maior renda da sua terra, o senhor pôs de lado o hábito que constituíra, no passado, a proteção do camponês. Quando o arrendamento terminava, ao invés de renová-lo nos mesmos termos do arrendamento antigo, de acordo com a tradição, o senhor elevava seu preço, a tal ponto que os arrendatários freqüentemente não podiam pagar e tinham de abandonar a terra. Foi o que aconteceu. Mas embora o arrendamento de uma terra mais tarde se tornasse importante, naquela época a maioria dos camponeses era de foreiros. Isso significava que ocupavam a terra segundo o costume da propriedade, “pela vontade do senhor de acordo com o registro”. Infelizmente para muitos, o costume da propriedade era considerado pelo senhor como a expressão de sua vontade num determinado momento, e o que ele desejava acima de tudo era o dinheiro da terra, ou a terra em si para ser arrendada a algum outro que por ela pagasse mais. Quando um arrendamento mudava de mãos — digamos, pela morte do chefe da família — então o filho deveria tomar conta, pagando pequena taxa habitual. Essa taxa, porém, deixou de ser pequena. O senhor elevou-a tão alto que o camponês não podia pagar, sendo forçado a abandonar seus direitos. O senhor, então, vendia a terra ou a arrendava a alguém que podia e queria pagar a nova escala de preços.
Uma petição, datada de 1553, feita pelos moradores de Whitby mostra como os arrendamentos e taxas foram elevados: 121
Arrenda- mento Antigo | Arrenda- mento Novo | Taxa | |
De Henry Russel | 42 s. 11,5 d. | £4,7 s. 3 d. | £3,6 s. 8 d. |
De Thomas Robynson | 12 s. 11,5 d. | 40 s. 7 d. | 33 s. 4 d. |
De Thomas Coward | 14 s. 9 d. | 31 s. | 2 s. 6 d. |
De William Walker | 7 s. 3 d. | 17 s. | 5 s. |
De Robert Baker | 14 s. 6 d. | 30 s. | 2 s. 8 d. |
Num sermão pregado ante os cortesãos de Eduardo VI, o bispo de Latimer teve a coragem de dar nome aos bois: “Vós, donos de terra, vós que viveis de rendas... vós, senhores não-naturais, tendes pelas vossas possessões uma renda anual excessiva. Pois o que até então era arrendado por 20 ou 40 libras por ano (que é uma proporção honesta de se ter, de graça, a parte do Senhor do suor e trabalho de outro homem) agora passou a custar 50 ou 100 por ano.” 122
Latimer não foi o único a denunciar a ambição dos senhores de terras. Outros oradores e autores da época também se opuseram ao fechamento de terras, elevação dos arrendamentos, multas ou taxas maiores e aos latifundiários que, pelas expulsões, estavam fazendo aumentar o enorme número de desocupados e mendigos. Na Oração dos Senhores de Terras, surgida na época, encontramos o seguinte: “Sinceramente pedimos que eles (que possuem terras, pastos e locais de residências) não possam elevar os arrendamentos de suas casas e terras, nem impor taxas ou pagamentos absurdos... ...Fazei que se possam contentar com o que é suficiente e não juntar casa com casa ou terra com terra para o empobrecimento dos outros...” 123
Mas apesar das orações, os senhores continuaram a fechar as terras e elevar arrendamentos. Aldeias inteiras foram evacuadas, com os habitantes expulsos morrendo de fome, roubando ou mendigando na estrada. Tentou-se, porém, algo mais do que orações. Foram baixadas leis. A Coroa realmente se preocupava. Queria sustar o despovoamento das aldeias. Estava atemorizada, porque o exército era recrutado principalmente entre os camponeses e os pequenos proprietários. Por outro lado, os camponeses cujos meios de vida estavam desaparecendo haviam até então pago impostos e constituíam uma boa fonte de renda para a Coroa. Esses grupos de mendigos constituíam, ainda, um verdadeiro perigo — ocorreram incêndios, derrubadas de cercas, motins. Foram aprovadas, por isso, leis contra o fechamento de terras. A primeira foi baixada em 1489 e as demais durante todo o século XVI. Mas a freqüência com que tais leis apareciam mostra que não eram cumpridas, pois do contrário não haveria necessidade de reiterá-las. Embora alguns dos piores abusos tivessem sido modificados, o fato é que os senhores locais eram também os juízes locais, de forma que a lei não era imposta com rigor. É interessante lembrar que quando os camponeses se levantaram contra o fechamento das terras, não foram eles que violaram a lei — mas sim os latifundiários. Isso não quer dizer, porém, que esses motins não fossem severamente reprimidos. Foram. Sempre o são.
Observe o leitor uma modificação importante nesse período. A velha idéia de que a terra era importante em relação ao total de trabalho sobre ela executado desapareceu. O desenvolvimento do comércio e indústria, e a revolução dos preços, tornaram o dinheiro mais importante do que os homens, e a terra passou a ser considerada como fonte de renda.. As pessoas haviam aprendido a tratá-la como tratam a propriedade em geral — tornou-se um brinquedo de especuladores que compravam e vendiam pela oportunidade de fazer dinheiro.
O movimento de fechamento das terras provocou muito sofrimento, mas ampliou as possibilidades de melhorar a agricultura. E quando a indústria capitalista teve necessidade de trabalhadores, encontrou parte da mão-de-obra entre esses infelizes desprovidos de terra, que haviam passado a ter apenas a sua capacidade de trabalho para ganhar a vida.
C A P Í T U L O X
Precisam-se Trabalhadores — Crianças de Dois Anos
Podem Candidatar-se
A EXPANSÃO do mercado. Repita a frase várias vezes, na ponta da língua. Grave-a em seu cérebro. É uma chave importante para a compreensão das forças que produziram a indústria capitalista, tal como a conhecemos.
Produzir mercadorias para um mercado pequeno e estável, onde o produtor fabrica o artigo para o freguês que vem ao seu local de trabalho e lhe faz uma encomenda, é uma coisa. Mas produzir para um mercado que ultrapassou os limites de uma cidade, adquirindo um alcance nacional, ou mais, é outra coisa inteiramente diferente. A estrutura das corporações destinava-se ao mercado local; quando este se tornou nacional e internacional, a corporação deixou de ter utilidade. Os artesãos locais podiam entender e realizar o comércio de uma cidade, mas o comércio mundial era coisa totalmente diversa. A ampliação do mercado criou o intermediário, que chamou a si a tarefa de fazer com que as mercadorias produzidas pelos trabalhadores chegassem ao consumidor, que podia estar a milhares de quilômetros de distância.
O mestre artesão fora mais do que um simples fabricante de produtos. Tinha também quatro outras funções. Era cinco pessoas numa só. Quando procurava e negociava a matéria-prima que utilizava, era um negociante ou mercador; tendo jornaleiros e aprendizes sob seu mando, era empregador; ao supervisionar o trabalho deles, era capataz; e como vendia ao consumidor, no balcão, o produto acabado, era também um comerciante lojista. 124
Entra em cena o intermediário, e as cinco funções do mestre artesão se reduziram a três — trabalhador, empregador, capataz. Os ofícios de mercador e comerciante deixaram de ser atribuição sua, O intermediário lhe entrega a matéria-prima e recebe o produto acabado. O intermediário coloca-se entre ele e o comprador. A tarefa do mestre artesão passou a ser simplesmente produzir mercadorias acabadas tão logo recebe a matéria-prima.
Esse método, pelo qual o intermediário emprega certo número de artesãos para trabalhar seu material em suas respectivas residências, é denominado sistema de produção “doméstica”. Note-se que na técnica de produção o sistema “doméstico” não difere do sistema de corporações. Deixa o mestre artesão e seus ajudantes em casa, trabalhando com as mesmas ferramentas. Mas embora o método de produção permanecesse o mesmo, a forma de negociar as mercadorias foi organizada em novas bases, pelo intermediário, atuando como negociante.
Embora o intermediário não modificasse a técnica de produção, reorganizou-a para aumentar a produção das mercadorias. Viu, sem demora, as vantagens da especialização. William Petty, famoso economista do século XVII, pôs em palavras aquilo que o intermediário estava fazendo na prática. “A fabricação da roupa deve ficar mais barata quando um carda, outro fia, outro tece, outro puxa, outro alinha, outro passa e empacota, do que quando todas as operações mencionadas são canhestramente executadas por uma só mão.”125 Quando se emprega um grande número de pessoas para fazer certo produto, podemos dividir o trabalho entre elas. Cada trabalhador tem uma tarefa particular a fazer. Executa-a repetidamente e em conseqüência se torna perito nela. Isso poupa tempo e acelera a produção. Outras modificações se impuseram, para atender às necessidades do mercado em expansão. Foi o que pensou o intermediário.
Mas o pessoal das corporações pensava de modo diverso. O leitor se lembrará de como as corporações eram ciosas do monopólio na manufatura e venda de seus produtos. Tão atentas estavam na defesa de seus “direitos” que a Corporação de Mecânicos de Glasgow tentou proibir James Watt de continuar experiências sobre a máquina a vapor — pela única razão de não ser ele membro da Corporação! É evidente que os membros das corporações, há muito acostumados a acreditar que a manufatura deste ou daquele produto era privilégio seu, haviam de protestar quando os intermediários ousavam introduzir modificações nos velhos processos. A tradição era lei para as corporações. Os velhos métodos, o velho mercado, o velho monopólio, os negócios de sempre — isso agradava à maioria de seus membros. Mas não servia ao intermediário dinâmico, que não tinha tempo para a tradição, num período de crescente procura. Queria modificar os velhos métodos, fornecer para o novo mercado e lutar contra o velho monopólio das corporações. Estas, com suas numerosas regras e regulamentos, estavam fora de moda, fora do tempo, e impediam o desenvolvimento da indústria. Tinham de ser derrubadas, e o foram.
Não de uma só vez, nem às claras. (As corporações só foram abolidas legalmente na França depois da Revolução; na Inglaterra, somente em princípios do século XIX perderam seus privilégios.) Os intermediárias freqüentemente trabalhavam dentro da estrutura do sistema de corporações, aceitando-o aparentemente, mas na realidade procurando miná-lo. Por vezes, os mestres ricos de uma corporação tornavam-se empregados de outros mestres, em outras corporações; outras, uma corporação de determinada indústria gradualmente assumia as funções de mercador e encomendava artigos às outras corporações da mesma indústria. Desaparecera a antiga igualdade entre os mestres, que fora fundamental para o sistema.
Sempre que necessário, o intermediário contornava os regulamentos e regras colocando sua indústria fora da jurisdição da corporação, fora das cidades, nos distritos rurais, onde o trabalho podia ser executado pelos métodos que melhor lhe conviessem, sem preocupações de restrições das corporações quanto aos salários, números de aprendizes etc. Foi assim que Ambrose Crowley, ferrageiro de Greenwich, Inglaterra, mudou-se para Durham e ali organizou a produção em grande escala de artigos de ferro, pelo sistema doméstico. “No que fora antes uma pequena aldeia, Crowley plantou uma florescente cidade industrial de 1.500 habitantes, e organizou nela a fabricação de pregos, fechaduras, ferrolhos, talhadeiras, pás e outras ferramentas de aço. As casas, ao que tudo indica, eram de propriedade de Crowley, sendo os instrumentos e materiais entregues por ele aos trabalhadores, depois que estes depositassem ‘um bônus de considerável importância’. Esse depósito dava direito de manter uma oficina e ser mestre operário, trabalhando com sua própria família e empregando um ou dois jornaleiros e um aprendiz. O local de trabalho era a oficina do mestre, que recebia por tarefa executada... ...Feito cavaleiro em 1706, Sir Ambrose Crowley mais tarde tornou-se membro do Parlamento, representando Andover, e nessa época já possuí a uma fortuna de 200.000 libras.”126
É evidente que os membros das corporações opuseram-se a essa modificação orgânica da indústria. Tentaram conservar seus velhos monopólios. Mas os dias áureos das corporações haviam-se acabado. Travavam uma batalha perdida. A expansão do mercado tornara antiquado seu sistema, incapaz de competir com a crescente procura de mercadorias. “Numa reclamação datada de 4 de fevereiro de 1646, eram feitas objeções ao crescimento da indústria de fitas fora dos limites da cidade... ...Os responsáveis por essa indústria replicaram que a situação se havia modificado totalmente desde 1611 O comércio aumentara muito... ...o número de sócios das corporações era muito pequeno para fornecer até mesmo a metade da mercadoria necessária ao movimento de um ano.”127
Os intermediários que se ocupavam da venda de tecidos estavam ansiosos para acelerar a produção porque, durante muito tempo, os tecidos constituíam a principal exportação européia para o Oriente. Um número cada vez maior de empregados era necessário para atender à crescente procura, e por isso tais intermediários levavam sua matéria-prima não apenas aos membros das corporações que, nas cidades, estavam dispostos a trabalhar para eles, mas também para os homens, mulheres e crianças das aldeias.
Para os camponeses que haviam sido prejudicados com o fechamento de terras, essa difusão da indústria pelo campo foi uma oportunidade de aumentar de alguns xelins a sua reduzida renda. Muitos, que de outra forma teriam deixado a aldeia, puderam permanecer nela porque o mercador lhes trazia trabalho. Daniel Defoe, que os leitores conhecem como autor de Robinson Crusoe, escreveu outro livro famoso, em 1724, denominado A Tour Through Great Britain. Descreve alguns desses aldeões empenhados na execução das tarefas que lhes haviam sido confiadas pelo intermediário. “Entre as residências dos patrões estão espalhadas, em grande número, cabanas ou pequenas moradias, nas quais residem os trabalhadores empregados, cujas mulheres e filhos estão sempre ocupados, cardando, fiando etc., de forma que, não havendo desempregados, todos podem ganhar seu pão, desde o mais novo ao mais velho. Quase todos os que têm mais de quatro anos ganham o bastante para si. É por isso que vemos tão pouca gente nas ruas; mas se batemos a qualquer porta, vemos uma casa cheia de pessoas ocupa das, algumas mexendo com tintas, outras dobrando a fazenda, outras no tear... ...todas trabalhando, empregadas pelo fabricante e aparentemente tendo bastante o que fazer...”128
E tal como Crowley, o negociante em artigos de ferro, enriqueceu fornecendo com êxito, para o mercado em crescimento, os artigos procurados, também os industriais dos tecidos enriqueceram. Defoe informa ainda a seus leitores:
“Disseram-me em Bradford que não era difícil haver fabricantes de tecidos naquela região com dez mil a quarenta mil libras cada, e muitas das grandes famílias tiveram sua origem e evoluíram graças a essa nobre indústria... ...E em Newbery conta-se que o famoso Jack de Newbery era um industrial tão grande quando o Rei Jaime encontrou seus vagões carregados de tecidos indo para Londres, e soube de quem eram, disse — se a história é verdadeira — que esse Jack de Newbery era mais rico do que ele Rei...” 129
Esse famoso Jack de Newbery era uma figura importante porque, ao contrário dos outros, que levavam matéria-prima para os artesãos trabalharem em suas casas, ergueu um edifício próprio, com mais de 200 teares, e no qual cerca de 600 homens, mulheres e crianças trabalhavam. Isso ocorreu em princípios do século XVI. Foi ele o precursor do sistema de fábricas que surgiria três séculos mais tarde.
Newbury e os intermediários que levavam a matéria-prima para os artesãos trabalharem em suas próprias casas eram capitalistas.. A eles pertencia o tecido; vendiam-no no mercado e guardavam os lucros. O mestre artesão e os jornaleiros por ele empregados eram assalariados. Trabalhavam em suas casas; dispunham de seu tempo. Eram os donos das ferramentas (embora isso nem sempre ocorresse). Mas já não eram independentes — não tinham a matéria-prima, que lhes era trazida pelos intermediários, pelos industriais (também havia exceções — alguns mestres faziam sua própria matéria-prima). Eram apenas trabalhadores tarefeiros, que não negociavam diretamente com o consumidor. Essa função lhes havia sido tomada pelos capitalistas industriais; estavam reduzidos apenas a manufatores, no sentido preciso da palavra (manu, a mão + factura, ação de fazer — fazer com a mão).
No sistema de corporações, que surgira com a economia urbana, o capitalista tinha apenas um pequeno papel. Com o sistema de produção doméstica, surgido com a economia nacional, o capital passou a ter papel importante. Era necessário muito dinheiro para comprar a matéria-prima para muitos trabalhadores. Era necessário muito dinheiro para organizar a distribuição dessa matéria-prima e sua venda como produto acabado, mais tarde. Era o homem do dinheiro, o capitalista, que se tornava o orientador, o diretor do sistema de produção doméstica.
A maior procura significava a reorganização, em bases capitalistas, das indústrias pesadas que necessitavam de instalações caras. Um bom exemplo disso está na mineração de carvão no século XVI, na Inglaterra. Os veios superficiais se esgotaram, e foi necessária a mineração profunda. Isso representava o investimento de grande soma de dinheiro, e a entrada em cena do capitalista.
Também na mineração de metais foi preciso muito dinheiro para atender à procura de ferro, cobre etc. necessários à indústria, bem como para o fornecimento aos exércitos em guerra. Tão grandes eram as somas requeridas pelas indústrias do metal que grupos de capitalistas organizaram companhias por ações para levantá-las. Isso se fizera antes para as aventuras comerciais — agora, começava a ser feito na indústria.
Com a descoberta de terras até então desconhecidas, era natural que indústrias completamente novas, como a refinação de açúcar, a do tabaco etc., surgissem. Os governos concediam monopólios aos que ousavam arriscar seu dinheiro nessas novas empresas. As nova indústrias foram, desde o início, organizadas em bases capitalistas.
Do século XVI ao XVIII os artesãos independentes da Idade Média tendem a desaparecer, e em seu lugar surgem os assalariados, que cada vez dependem mais do capitalista-mercador-intermediário-empreendedor.
É útil fazermos um sumário das fases sucessivas da organização industrial:
1. Sistema familiar: os membros de uma família produzem artigos para seu consumo, e não para a venda. O trabalho não se fazia com o objetivo de atender ao mercado. Princípio da Idade Média.
2. Sistema de Corporações: produção realizada por mestres artesãos independentes, com dois ou três empregados, para o mercado, pequeno e estável. Os trabalhadores eram donos tanto da matéria-prima que utilizavam como das ferramentas com que trabalhavam. Não vendiam o trabalho, mas o produto do trabalho. Durante toda a Idade Média.
3. Sistema doméstico: produção realizada em casa para um mercado em crescimento, pelo mestre artesão com ajudantes, tal como no sistema de corporações. Com uma diferença importante: os mestres já não eram independentes; tinham ainda a propriedade dos instrumentos de trabalho, mas dependiam, para a matéria-prima, de um empreendedor que surgira entre eles e o consumidor. Passaram a ser simplesmente tarefeiros assalariados. Do século XVI ao XVIII.
4. Sistema fabril: produção para um mercado cada vez maior e oscilante, realizada fora de casa, nos edifícios do empregador e sob rigorosa supervisão. Os trabalhadores perderam completamente sua independência. Não possuem a matéria-prima, como ocorria no sistema de corporações, nem os instrumentos, tal como no sistema doméstico. A habilidade deixou de ser tão importante como antes, devido ao maior uso da máquina. O capital tornou-se mais necessário do que nunca. Do século XIX até hoje.
Uma palavra de advertência:
Pare
Olhe
e
Escute.
O sumário acima é uma orientação, não um evangelho infalível. Seria perigoso aceitá-lo como completo. Não é. Utilizado com reservas, poderá ser útil. Tomado como verdade absoluta, poderá levar-nos a muitos erros.
Seria um erro, por exemplo, acreditar — como o sumário sugere — que todas as indústrias atravessaram essas quatro fases sucessivas. Isso ocorreu a algumas, mas não a todas. Novas indústrias surgiram já na terceira fase. Outras pularam várias.
As épocas mencionadas são apenas aproximações. Quando uma fase predominava, já mostrava indícios de decadência, e as sementes da nova fase começavam a brotar. Assim, no século XIII, quando as corporações estavam no auge, surgiram exemplos do sistema doméstico no Norte da Itália. Da mesma forma, exemplos do sistema fabril, quase que tal como o conhecemos hoje, já eram evidentes no período que o sumário atribui ao sistema doméstico. Lembre-se o leitor de Jack de Newbury, no século XVI.
O contrário também ocorreu. O predomínio de qualquer estágio de desenvolvimento industrial não significa o desaparecimento total do estágio precedente. O sistema de corporações perdurou muito depois de ter aparecido o sistema doméstico. Talvez a melhor prova de que uma fase continua existindo durante muito tempo, dentro da fase seguinte, nos é proporcionada pela citação seguinte sobre o trabalho doméstico, ou seja, o sistema doméstico. “Um levantamento do trabalho doméstico realizado para a indústria de metal pré-fabricado... ...Os produtos incluem ganchos, colchetes, alfinetes de segurança, alfinetes de cabeça e botões de metal. A colocação de cordões ou arames às etiquetas é outra operação realizada por alguns dos trabalhadores domésticos pesquisados.
Distribuição dos trabalhadores segundo O salário-hora médio | Número De famílias |
1 centavo ou menos de 2 centavos | 5 |
2 centavos “ “ “ 3 “ | 9 |
3 “ “ “ “ 4 “ | 15 |
4 “ “ “ “ 5 “ | 9 |
5 “ “ “ “ 6 “ | 14 |
6 “ “ “ “ 7 “ | 8 |
7 “ “ “ “ 8 “ | 5 |
8 “ “ “ “ 9 “ | 15 |
9 “ “ “ “ 10 “ | 14 |
10 “ “ “ “ 11 “ | 13 |
11 “ “ “ “ 12 “ | 5 |
12 “ “ “ “ 13 “ | 2 |
13 “ “ “ “ 14 “ | 5 |
14 “ “ “ “ 15 “ | 3 |
15 “ ou mais | 7 |
“... A família média trabalha, portanto, um total de 35 homens/hora por semana, pelo que recebe $1,75...
“Casas superlotadas, sujas e em mau estado, roupas esfarrapadas, e reclamações freqüentes sobre a comida insatisfatória, tanto na quantidade como na qualidade, caracterizam os lares pesquisados...
“Crianças de menos de 16 anos trabalhavam em 96 das 129 famílias estudadas... ...Metade delas tinha menos de 12 anos. Trinta e quatro tinham 8 anos e menos, e doze tinham menos de cinco anos...”
Distribuição das crianças empregadas, segundo a idade:
Idade | Número de crianças empregadas |
2 - 3 anos | 2 |
3 - 4 “ | 2 |
4 - 5 “ | 8 |
5 - 6 “ | 2 |
6 - 7 “ | 7 |
7 - 8 “ | 13 |
8 - 9 “ | 15 |
9 - 10 “ | 19 |
10 - 11 “ | 23 |
11 - 12 “ | 21 |
12 - 13 “ | 40 |
13 - 14 “ | 26 |
14 - 15 “ | 29 |
15 - 16 “ | 35 |
Desconhecida | 4 |
Chocante, não é? Pensar em crianças de dois e três anos trabalhando! Será isso um relatório sobre o sistema doméstico entre os séculos XVI e XVIII? Na verdade, não. Qual a época e o local das condições acima descritas?
Época: Agosto de 1934.
Local: Connecticut, Estados Unidos.
C A P Í T U L O X I
“Ouro, Grandeza e Glória”
OQUE que faz rico um país? O leitor tem alguma sugestão? Faça uma lista desses elementos e veja se correspondem ao que pensavam os homens inteligentes dos séculos XVII e XVIII. Estavam eles muito interessados no assunto porque pensar em termos de um Estado nacional, de todo um país ao invés de uma cidade, apresentava novos problemas. Era preciso considerar não o que seria melhor para a cidade de Southampton ou a cidade de Lyons ou a cidade de Amesterdã, mas o que seria melhor para a Inglaterra, a França ou a Holanda. Queriam transferir para o plano nacional os princípios que haviam tornado as cidades ricas e importantes. Tendo organizado o Estado político, voltaram suas atenções para o Estado econômico. As coisas que escreveram e as leis que defenderam tinham, todas, um conteúdo nacional. Os governos aprovaram leis que, no seu entender, trariam riqueza e poder a toda a nação. Na busca de tal objetivo, mantinham o olho em todos os aspectos da vida diária e deliberadamente modificavam, moldavam e regulavam todas as atividades de seus súditos. As teorias expressas e as leis baixadas foram classificadas pelos historiadores definidamente como “sistema mercantil”. Na verdade, porém, não constituíam um sistema. O mercantilismo não era um sistema em nosso sentido da palavra, mas antes um número de teorias econômicas aplicadas pelo Estado num momento ou outro, num esforço para conseguir riqueza e poder. Os estadistas se ocupavam do problema não porque lhes agradasse pensar nele, mas porque seus governos estavam sempre extremamente interessados na questão — sempre quebrados e precisando de dinheiro. O que torna rico um país não era, portanto, uma pergunta ociosa. Era coisa real. E tinha de ser respondida.
A Espanha foi, no século XVI, talvez o mais rico e poderoso país do mundo. Quando os homens inteligentes de outros países perguntavam a razão disso, julgavam encontrar a resposta nos tesouros que ela recebia das colônias. Ouro e prata. Quanto mais tivesse, tanto mais rico o país seria — o que se aplicava às nações e também às pessoas. O que fazia as rodas do comércio e indústria girarem mais depressa? Ouro e prata. O que permitia ao monarca contratar um exército para combater os inimigos de seu país? Ouro e prata. O que comprava a madeira necessária para fazer navios, ou o cereal para as bocas famintas, ou a lã que vestia o povo? Ouro e prata. O que tornava um país bastante forte para conquistar um país inimigo — que eram os “nervos da guerra”? Ouro e prata. A posse de ouro e prata, portanto, o total de barras que possuísse um país, era o índice de sua riqueza e poder.
A maioria dos autores da época se apega à idéia de que “um país rico, tal como um homem rico, deve ser um país com muito dinheiro; e juntar ouro e prata num país deve ser a mais rápida forma de enriquecê-lo”.131
Já em 1751 Joseph Barris, no An Essay Upon Money and Coins, escrevia: “Ouro e prata, por muitas razões, são os metais mais adequados para acumular riqueza; são duráveis, podem ser transformados de qualquer modo sem prejuízo, e de grande valor em proporção ao volume. Sendo o dinheiro do mundo, representam a forma de troca mais imediata para todas as coisas, e a que mais rápida e seguramente se aceita em pagamento de todos os serviços.“ 132
Já que os governos acreditavam nessa teoria de que quanto mais ouro e prata houvesse num país, tanto mais rico este seria, o passo seguinte era óbvio. Baixaram-se leis proibindo a saída desses metais do país. Um governo após outro tomou essa medida, e as “Leis contra a exportação de ouro e prata” tornaram-se comuns. Eis uma delas, na Inglaterra: “Ordena-se pela autoridade do Parlamento, que ninguém leve, ou faça levar, para fora deste Reino ou Gales ou qualquer parte do mesmo, qualquer forma de dinheiro da moeda deste Reino, ou de dinheiro, e moedas de outros remos, terras ou senhorias, nem bandejas, vasilhas, barras ou jóias de ouro guarnecidas ou não, ou de prata, sem a licença do Rei.”133
As notícias enviadas pelos agentes dos Fuggers ao banco central da Casa podem ser comparadas às da Associated Press, hoje. Em todos os pontos importantes eram colocados correspondentes que transmitiam notícias sobre os grandes acontecimentos tão logo deles tomavam conhecimento. Eis algumas amostras do noticiário dos Fuggers:
“Veneza, 13 de dezembro de 15%. O Rei da Espanha ordenou severamente que nenhum ouro ou prata seja exportado do reino, ou usado com objetivos de comércio.”
“Roma, 29 de janeiro de 1600. O camarista papal mandou avaliar novamente todas as moedas de prata, locais e estrangeiras, decretando que no futuro ninguém poderá levar para fora daqui mais de cinco coroas.” 134
Tais medidas podiam conservar no país o ouro e a prata já existentes nele. E países que dispunham de minas dentro de suas fronteiras, ou que, como a Espanha, tinham sorte de possuir colônias com ricas minas de ouro e prata, podiam aumentar constantemente suas reservas de metais. Mas como se haviam os países que não dispunham de nenhum desses recursos? Como poderiam enriquecer — supondo, como faziam alguns mercantilistas, que o dinheiro significava riqueza?
Para tais países, os mercantilistas ofereciam uma solução feliz. Uma “balança de comércio favorável” era a sua resposta. Que se entendia por “balança de comércio favorável”?
Num trabalho de 1549, intitulado Policies to Reduce this Realm of England unto a Prosperous Wealth and Estate encontramos a resposta: “A única maneira de fazer com que muito ouro seja trazido de outros reinas para o tesouro real é conseguir que grande quantidade de nossos produtos seja levada anualmente além dos mares e menor quantidade de seus produtos seja para cá transportada... ...Se isso puder ser feito, não será impossível nem improvável mandar para além-mar anualmente, em mercadorias, o valor de um milhão e cem mil libra; e receber de volta, em todos os tipos de mercadorias, apenas o valor de seiscentas mil libras. Não se segue necessariamente que receberíamos então as outras quinhentas mil libras, seja em ouro ou em moeda inglesa?”135
Os países poderiam aumentar sua reserva de ouro dedicando-se ao comércio exterior — diziam os mercantilistas — tendo sempre a cautela de vender aos outros mais do que deles compravam. A diferença no valor de suas exportações, em relação às importações, teria de ser paga em metal.
A Companhia Inglesa das Índias Orientais tinha em seus estatutos uma cláusula que lhe dava o direito de exportar ouro. Quando no século XVI muitos panfletários atacaram-na por enviar riquezas para fora da Inglaterra, Thomas Mun, um dos diretores, defendeu a Companhia num livro famoso, intitulado England’s Treasure by Foreign Trade. O título indica a essência da defesa. Mun argumentava que embora a Companhia realmente enviasse ouro e prata ao Oriente para a aquisição de mercadorias, essas mercadorias eram reexportadas da Inglaterra para outros países, ou nelas trabalhadas e mais tarde revendidas além-mar. Em ambos os casos, mais dinheiro voltava à Inglaterra, o que justificava a exportação dos metais preciosos. Argumentava ainda que o modo realmente importante de aumentar a riqueza do Estado era vender aos países estrangeiros mais do que deles se comprava, mantendo uma balança de comércio favorável. “O recurso comum, portanto, para aumentar nossa riqueza e tesouro é pelo comércio exterior, no qual devemos observar esta regra: vender mais aos estrangeiros, anualmente, do que consumimos de seus artigos... ...porque a parte de nosso estoque que não nos for devolvida em mercadorias deverá necessariamente ser paga em dinheiro... ...Qualquer medida que tomemos para obter a entrada de dinheiro neste Reino, este só permanecerá conosco se ganharmos na balança de comércio.” 136
O negócio, portanto, era exportar mercadorias de valor, e importar apenas o que fosse necessário, recebendo o saldo em dinheiro sonante. Isso significa estimular a indústria por todos os meios possíveis, porque seus produtos valiam mais que os da agricultura, e portanto obteriam mais dinheiro nos mercados estrangeiros. E o que era também importante, ter indústria produzindo as coisas de que o povo necessitava significava não ser necessário comprá-las do estrangeiro. Era um passo na direção da balança de comércio favorável, bem como no sentido de tornar o país auto-suficiente, independente de outros países.
Os países começaram, portanto, a se ocupar do importante problema de qual a melhor forma de ajudar as velhas indústrias a prosperarem e estimular a organização de novas. Na Baviera de Maximiliano I, em 1616, foi nomeada uma comissão especial para examinar a questão: “Resolve-se que pessoas especiais sejam nomeadas, que em dias fixos da semana se reunirão para diligentemente discutir e deliberar... ...os meios pelos quais mais comércio e oficio serão exercidos no país, e como poderão continuar existindo com utilidade.”137
Quais os meios imaginados por essa comissão, e outras semelhantes em vários países, para fomentar a indústria? Foram muitos.
Houve, por exemplo, os prêmios dados pelo governo pelos produtos manufaturados para exportação. Se o leitor fosse fabricante de facas e recebesse de seu governo uma soma de dinheiro para cada dúzia de facas exportada, naturalmente tentará fabricar um número sempre maior desse artigo. E os fabricantes de chapéus, mantas, munições, linho etc., provavelmente pensariam da mesma forma. Os prêmios governamentais sobre a produção destinavam-se a estimular a manufatura.
O mesmo ocorre com a tarifa protetora. Essa tarifa, cuja finalidade foi proteger as indústrias nascentes e ainda na “infância”, é um recurso tão antigo como os mercantilistas, provavelmente mais velho ainda. Eis aqui um pedido de ajuda de uma indústria nascente, feito na Inglaterra muito antes de nascer o criador dessas tarifas na América, Alexander Hamilton: “Creio ter, Senhor, demonstrado que a manufatura do linho... ...está apenas em sua infância na Grã-Bretanha e Irlanda, e portanto é impossível para nosso povo vender tão barato... ...como os que têm essa manufatura há muito estabelecida, e, que, por essa razão, não podemos realizar qualquer progresso grande ou rápido nessa manufatura, sem estímulo público.”138
O estímulo público solicitado veio na forma de proteção contra a competição estrangeira, através de altos impostos sobre produtos manufaturados importados. Em certos casos, os governos chegaram mesmo a proibir a importação de determinados artigos, em quaisquer circunstâncias.
Não só se estimulava a indústria pelos prêmios e pelas tarifas elevadas, como também se procurava, de todos os modos possíveis, atrair os trabalhadores estrangeiros habilidosos, capazes de introduzir no país novos ofícios ou novos métodos. Eram eles tentados com privilégios, como isenção de impostos, moradia de graça, monopólio por determinado número de anos no ramo a que se dedicassem, ou empréstimos de capital para adquirir o equipamento necessário. Quando não podiam ser induzidos a mudar de país voluntariamente, os governos costumavam recorrer à prática do rapto. Colbert, que foi o Mussolini de sua época, ocupando vários postos do gabinete na França do século XVII, interessava-se particularmente em atrair artesãos estrangeiros para viver e trabalhar na França. Colocava agentes em outros países com a tarefa exclusiva de recrutar trabalhadores — por qualquer meio. A 28 de junho de 1669, escrevia ele a M. Chassan, embaixador francês em Dresden: “Continue a ajudá-lo [o agente recrutador] de todas as formas possíveis para que sua missão seja coroada de êxito, e fique certo de que o bom tratamento dispensado aos ferreiros que já trouxe para a França lhe permitirá atrair outros para os nossos fabricantes.” 139
Medidas rigorosas eram tomadas para evitar que voltassem à pátria, tal como se tomavam precauções para impedir que os artesãos locais procurassem outros países e revelassem ou vendessem seus segredos comerciais. Uma compensação dramática dessa política era, no entanto, a expulsão por motivos religiosos de grupos inteiros de pessoas industriosas, capazes, habilitadas em vários ofícios e comércios. De um lado, a França fazia todos os esforços para atrair trabalhadores capacitados, e no entanto, de outro, a expulsão dos huguenotes no século XVII afastava, pela força, muitos dos seus melhores artesãos.
Uma prova interessante de que os governos realmente se preocupavam com o bem-estar dos trabalhadores estrangeiros nos é dada por uma carta da Rainha Elisabete, escrita em 1566 para os juízes de Cumberland e Westmoreland. Numa época em que marcar com ferro em brasa, cortar orelhas, pernas e braços, ou enforcar, eram castigos comuns para delitos vulgares — numa época em que a vida era desprezada, vejam os leitores como a rainha se preocupava com o assassinato de um único alemão: “Considerando que alguns alemães, a quem outorgamos cartas patentes nossas com nosso selo da Inglaterra, com seu grande trabalho, habilidade e gasto de dinheiro, conseguiram, para seu grande mérito, recuperar recentemente das montanhas e rochas de nossos condados de Cumberland e Westmoreland grande quantidade de minerais, com o propósito de continuarem a fazê-lo, foram recentemente assaltados, em violação de nossas leis e paz, por grande número de desordeiros dos ditos condados, o que provocou o assalto e morte de um dos ditos alemães, com desestímulo para todo o grupo, ordenamos, por isso, que prendais. conservando-os presos, todos os que provocaram tais distúrbios ou morte. E também que cuidadosamente façais com que todos os ditos alemães, doravante, sejam tratados cordial e pacificamente... ...O não-cumprimento desta ordem representará um grande risco para vós.”140
Assim como os estrangeiros cujos conhecimentos seriam úteis à indústria deviam ser protegidos, também os inventores de novos processos eram amparados pelo governo. Quando Jehan de Bras de Fer inventou um novo tipo de moinho, em 1611, o governo concedeu-lhe monopólio por 20 anos, semelhante às patentes de hoje: “Permitimos que ele e seus associados construam os moinhos de acordo com sua dita invenção, em todas as cidades e aldeias de nosso reinado. Proibimos a todos, de qualquer qualidade ou condição, construir moinhos dessa invenção, seja no todo ou em parte, sem sua permissão expressa e seu consentimento, sob pena de pagar uma multa de 10.000 libras e ter os ditos moinhos confiscados.”141
Certos países não só concediam o monopólio aos inventores, como também ofereciam prêmios aos que se dedicassem ao estudo do problema de fomentar a indústria pela descoberta de métodos novos e melhores. Na França, Colbert organizou institutos de educação técnica, mantidos pelo Estado, bem como fábricas administradas também pelo Estado. Na Baviera, em fins do século XVI, as fábricas estatais de tecidos empregavam dois mil operários. Tais fábricas deviam servir de modelos, inspiração, laboratório. Era nessas empresas em grande escala, não sujeitas a restrições das corporações, que se podiam realizar livremente experiências e progresso, difíceis para o artesão isolado.
Mas embora difícil, não era impossível. E o Estado estava sempre pronto a estimular a indústria, subsidiando-a diretamente ou de qualquer um dos modos já mencionados. As indústrias têxteis francesas, quando Colbert estava no governo, receberam cerca de oito milhões de libras de subsídios, de um tipo ou de outro. A um grupo que pretendia fundar uma fábrica para manufatura de seda e tecido de ouro e prata, na França do século XVII, o governo concedeu muitos privilégios de valor, bem como ajuda direta em dinheiro: “Um dos principais meios de atingir essa finalidade [o bem-estar comum de nossos súditos] é o estabelecimento de artes e manufaturas, com a esperança de que proporcionem enriquecimento e progresso a este reino, para que não tenhamos mais de procurar nossos vizinhos como se fossemos mendigos... ...buscando aquilo que não temos, e também por que é um meio fácil e bom de limparmos nosso reino dos vícios da ociosidade, e a única forma pela qual deixaremos de ter de mandar para fora do reino o ouro e a prata para enriquecer nossos vizinhos... ...[Faz uma relação de nomes, estipulando o prazo de 12 anos]... durante o dito tempo ninguém mais, na mencionada cidade de Paris, pode ter ou montar as ditas fábricas... ...a menos que seja com sua permissão e consentimento... ...e a fim de ajudá-los no grande investimento necessário a esse estabelecimento, concedemos aos ditos industriais.. ...a soma de 180.000 libras, que lhes será atribuída sem qualquer demora, soma essa que conservarão por 12 anos sem pagamento de juros, e no fim desse tempo serão chamados a nos devolver apenas 150.000 libras, e as 30.000 restantes lhes serão dadas como prêmio em consideração das enormes despesas que compreendemos serem necessárias e que terão de fazer, por seu risco, a fim de montar o dito estabelecimento.”142
Esse edito apresenta outra vantagem ressaltada pelos mercantilistas em seus argumentos a favor do fomento da indústria. Assinalam continuamente que o crescimento da indústria não só representava um aumento nas exportações, que por sua vez ajudava uma balança de comércio favorável, mas também provocava aumento de emprego. T. Manley, escrevendo em 1677, dizia que “uma libra de lã, manufaturada e exportada, é mais interessante para nós, porque emprega nossa gente, do que dez libras exportadas em bruto por duas vezes o preço atual”. 143Num período em que os mendigos e desempregados constituíam problema e custavam boas somas na assistência social, tal argumento tinha valor considerável. Para o rei, que se preocupava com o bem de seu povo, para os pensadores mercantilistas, que acima de tudo estavam interessados em consolidar o poder e a riqueza nacionais, a necessidade de manter em boa forma os homens do país — a carne de canhão — era evidente. Portanto, a indústria que lhes desse emprego devia ser estimulada. Dedicou-se também grande atenção à produção de cereais, para assegurar alimento ao povo, para que estivesse forte — quando chegasse a guerra. Era evidente a todos que um abastecimento adequado de alimentos tinha a maior importância no caso de uma guerra, e por isso a Inglaterra concedia prêmios para estimular a produção de cereais. Uma nação auto-suficiente em alimentos durante uma guerra, e dispondo de combatentes fortes e bem alimentados, era um dos principais objetivos das várias leis sobre cereais baixadas nos diferentes países.
Combatentes. Tempos de guerra. Quem pensasse nesses termos naturalmente se preocuparia com o número e a qualidade dos navios, necessários tanto para defender a pátria como para atacar um país inimigo. E assim como julgavam que o fomento da indústria era vital para uma balança de comércio favorável, os mercantilistas também consideravam essencial a construção de uma marinha mercante, pelo mesmo motivo. Os governos davam ênfase, na proporção de seu interesse pelo comércio exterior, à importância de recursos marítimos adequados para transportar seus produtos industriais a outros países. Voltavam sua atenção, portanto, para o estímulo à navegação com o mesmo zelo demonstrado no fomento da indústria. Os construtores de navios recebiam prêmios governamentais; os produtos necessárias à indústria naval, alcatrão, piche, madeiras fortes, etc., eram buscados e podiam entrar no país sem pagar taxas; os homens eram obrigados a ingressar na marinha — na França, os juízes deviam condenar os criminosos às galés, sempre que possível. Na Inglaterra, a indústria da pesca era estimulada por constituir uma escola de treinamento para os homens do mar. Convencia-se o povo a comer mais peixe e, sem dúvida, a máquina de propaganda da época funcionava para convencer a todos de que o peixe continha elementos que não só eram bons para a saúde, como absoluta mente necessários para assegurar uma existência prolongada.
Com o declínio da Espanha em fins do século XVI, a pequena Holanda passou ao primeiro lugar como potência da época. Era pequena, mas rica e forte, e uma das razões de sua força era a capacidade marítima. Os habitantes da Holanda, como os de Veneza, eram obrigados, pelas suas condições geográficas, a saber tudo sobre embarcações. O mar do Norte, com seu maravilhoso tesouro de peixes, atraía constantemente o holandês. A corrente de produtos do norte que ia para o Mediterrâneo, e vice-versa, passava quase que exatamente no meio da Holanda — e sem dúvida os dinâmicos holandeses aproveitaram a oportunidade. Lançaram-se ao mar e tornaram-se os transportadores das mercadorias mundiais. Barcos holandeses iam a toda parte — levando mercadoria de todo mundo a todo lugar.
Mas Inglaterra e França não estavam satisfeitas de ver as mercadorias inglesas e francesas sendo transportadas pelos navios holandeses. Parte de seu plano de auto-suficiência incluía a construção de frotas próprias. Não lhes agradava pagar bom dinheiro aos marinheiros holandeses para servir de transportadores de seus produtos. As Leis de Navegação Inglesas, tão famosas, tinham co mo um dos objetivos principais tomar aos holandeses o controle dos serviços de transportes marítimos. Esse objetivo é evidente numa das Leis, datada de 1660, que diz: “Para o andamento dos navios e estímulo à navegação desta nação... ...fica estipulado que a partir do primeiro dia de dezembro de 1660... ...nenhum artigo ou mercadoria de qualquer espécie será importado ou exportado de nossas terras, ilhas, plantações nu territórios de propriedade ou posse de Sua Majestade... ...na Ásia, África ou América, em qualquer outro navio ou navios de qualquer tipo, mas nos navios que realmente e sem fraude pertencerem apenas ao povo da Inglaterra ou Irlanda [ou] Domínio de Gales ou... ...construídos e pertencentes a qualquer das ditas terras, ilhas, plantações ou territórios, como verdadeiros proprietários, e dos quais o mestre e três quartos dos marinheiros pelo menos sejam ingleses.” 144
Afastem-se!
Nessa política, a metrópole e as colônias deviam agir como um todo, unidas na luta comum contra o estrangeiro intruso. Foi para os colonos americanos uma grande vantagem ter essa defesa contra os interesses marítimos holandeses, mais fortes. Esse aspecto das Leis de Navegação ajudaram os americanos a construir sua marinha mercante, de modo que os barcos ianques tornaram-se, sem demora, familiares a todos os portos do mundo. Ter parte do monopólio do transporte marítimo do crescente Império britânico deu riqueza aos construtores, armadores e marinheiros norte-americanos.
Mas havia outros aspectos das Leis de Navegação que não eram vantajosos para as colônias. Fazia parte do pensamento mercantilista a crença de que as colônias eram outra fonte de renda para a metrópole.
Baixaram-se, portanto, leis proibindo aos colonos iniciar qualquer indústria que pudesse competir com a indústria da metrópole. Os colonos não podiam fabricar gorros, chapéus, ou artigos de lã ou ferro. A matéria-prima desses produtos existia na América, mas os colonos deviam mandá-la para a Inglaterra, onde seria beneficiada, e comprá-la de volta na forma de produtos acabados.
Essa a atitude da Inglaterra — não apenas para com a América, mas para com todas as suas colônias. A Irlanda, por exemplo, era colônia inglesa. Quando os irlandeses começaram a transformar em tecido a lã, foi baixada uma lei proibindo sua indústria têxtil. Poderiam eles, então, exportar livremente a lã bruta? Não, tinham de vendê-la à Inglaterra apenas, que usaria o necessário e reexportaria o resto. Como a Inglaterra podia, com isso, ditar o preço, grande número de irlandeses se empobreceu. Dessa forma, a política mercantilista teve seu papel na luta dos irlandeses pela independência do domínio britânico, tal como ocorreu na América.
A chave para compreender o atrito surgido entre a metrópole e as colônias está no fato de que enquanto a metrópole julgava que as colônias existiam para ela, estas julgavam que existiam para si mesmas. Sir Francis Bernard, governador real de Massachusetts, deixou bem clara a noção da relação entre metrópole e colônias: “Os dois grandes objetivos da Grã-Bretanha em relação ao comércio americano devem ser: 1) obrigar seus súditos americanas a comprar apenas na Grã-Bretanha todas as manufaturas e mercadorias européias que ela lhes puder fornecer; 2) regular o comércio exterior dos americanos de tal forma que os lucros dele oriundos se centralizem finalmente na Grã-Bretanha, ou sejam aplicados à melhoria de seu próprio império.”145
Eis uma afirmação clara de que as colônias existiam apenas para ajudar a metrópole em sua luta pela riqueza e pelo poderio nacional. Isso ocorria não só na Inglaterra, mas na França, na Espanha, em toda metrópole da era mercantilista. É importante lembrar isso.
É também importante lembrar que “riqueza nacional” e “poderio nacional” são frases ocas. É uma coincidência interessante serem as medidas sugeridas por muitos autores como as melhores para tornar “nosso país” rico, também as mais indicadas para torná-los, e à sua classe, ricos. Isso não significa que auferissem lucros diretos. Nada disso. Era natural, apenas, que identificassem seus interesses com os de todo o país. Em nenhuma época, talvez, foi mais evidente a ligação entre o interesse econômico e a política nacional.
O leitor se lembrará das dores de cabeça que os reis tiveram para levantar dinheiro. Não havendo um sistema de impostos amplo e bem desenvolvido, não podiam nunca ter certeza de conseguir o dinheiro de que precisavam, no momento justo. O tesouro não podia contar com o afluxo permanente de dinheiro. Era por isso que o rei arrendava sua receita a coletores de impostos que lhe pagavam adiantadamente (e arrancavam todo o centavo que podiam dos pobres contribuintes). Era por isso que o rei vendia postos aos mais ricos e concedia monopólio por altas somas. Era por isso que, por menos que quisesse, era obrigado a vender terras da Coroa. Era por isso que se via obrigado a pedir empréstimos aos banqueiros e mercadores. Era por estarem sempre em dificuldades monetárias que os governos davam tamanha importância ao amontoamento de metais preciosos. E como acreditavam também que o tesouro podia ser obtido pelo comércio, era natural considerarem os interesses do Estado e da classe de mercadores ou comerciantes como idênticos. Foi assim que o Estado tomou como sua tarefa principal o apoio e estímulo ao comércio e a tudo que se relacionasse com ele.
Foi pelo comércio que o Estado se tornou grande, e conseguiu sua cota na expansão dos negócios e territórios. O mercantilismo era o regime dos mercadores.
Os mercantilistas acreditavam que, no comércio, o prejuízo de um país era lucro de outro — isto é, um país só podia aumentar seu comércio a expensas de outro. Não consideravam o comércio como algo que proporciona benefício mútuo — uma troca vantajosa — mas como uma quantidade fixa, da qual todos procuravam tirar a maior parte. O. autor que, no século XVIII, escreveu The Dictionary of Trade and Commerce assim se expressou sobre o assunto: “Parece haver apenas uma limitada quantidade de comércio na Europa. Suponhamos que no comércio da indústria de lã... ...a Inglaterra seja o canal exportador e fornecedor no valor de 15 milhões; se, em qualquer ano, ela fornecer 20 milhões, isso se fará a expensas e diminuição das vendas dos outros.”145
E Colbert escreveu a M. Pomponne, embaixador francês em Haia, em 1670: “Como o comércio e a manufatura não podem diminuir na Holanda sem passar às mãos de algum outro país... ...não há nada mais importante e necessário para o bem geral do Estado que, ao mesmo tempo em que vemos crescer nosso comércio e indústria dentro do nosso reino, vejamos também sua diminuição real e efetiva nos Estados da Holanda.”147
Vemos que a crença de que “não há nada mais importante e necessário para o bem geral do Estado” do que a redução do comércio e indústria de um Estado rival sé poderia levar a uma coisa: guerra. O fruto da política mercantilista é a guerra. A luta pelos mercados, pelas colônias — tudo isso mergulhou as nações rivais numa guerra após outra. Algumas foram travadas abertamente como guerras comerciais. O objetivo de outras foi disfarçado com nomes pomposos, como acontece freqüentemente ainda hoje. Mas dizia o Arcebispo de Canterbury em 1690, que “em todas as lutas e disputas que nos últimos anos ocorreram nesta parte do Mundo, julgo que, embora alegassem objetivos altos e espirituais, o fim e o objetivo verdadeiro era o Ouro, a Grandeza e a Glória secular.” 148
Tomemos a última frase do Arcebispo — Ouro, Grandeza e Glória — como um resumo preciso do que buscavam os mercantilistas.
C A P Í T U L O X I I
Deixem-nos em Paz!
1776 foi um ano de revolta. Ano notável. Aos norte-ame-ricanos, ele lembra a Declaração da Independência, a revolta contra a política colonial mercantilista da Inglaterra; aos economistas de todo o mundo, lembra a publicação da Riqueza das Nações, de Adam Smith — súmula da nascente rebelião contra a política mercantilista — restrição, regulamentação, contenção. Um número cada vez maior de pessoas não concordava com a teoria nem com a prática mercantilista. Não concordava porque sofria com elas. Os comerciantes queriam uma parte dos enormes lucros das companhias monopolizadoras privilegiadas. Quando tentaram participar delas, foram excluídos como intrusos. Os homens que tinham dinheiro desejavam usá-lo como, quando e onde lhes aprouvesse Queriam aproveitar todas as oportunidades proporcionadas pela expansão da indústria e do comércio. Sabiam o poder que lhes dava o capital e desejavam exercê-lo livremente. Estavam cansados do “podem fazer isso, não podem fazer aquilo”. Estavam enojados das “Leis contra... Impostos sobre... Prêmios para...”. Queriam o comércio livre.
Os governos desejavam ajudar a indústria. Muito bem. Parecia porém que não podiam ajudar uma classe sem prejudicar a outra. E a classe prejudicada não gostava disso. Protestava. Na Prússia, em 1700, os produtores de lã não podiam exportar seu produto. Isso tinha por objetivo estimular a manufatura de tecidos, assegurando aos fabricantes bastante matéria-prima — a preço barato. Os industriais viam com bons olhos essa proibição de exportar lã. Mas os produtores de lã protestavam. Em 1721 fizeram uma petição ao rei solicitando que a lei fosse abolida: “... ...segundo confessam os manufatores, os armazéns estão cheios de grandes estoques de lã... ...É também evidente que a produção de lã deste ano... ...não terá nem sua metade vendida. A graciosa intenção de Vossa Real Majestade de fazer com que não haja falta de lã para os industriais, que com isso a indústria seja estimulada... ...já está plenamente realizada; por outro lado, no entanto, o prejuízo causado aos que criam ovelhas aumenta, pois com o abarrotamento dos estoques, tem de vender sua lã ao preço que lhes impõe o comprador... ...O país, em sua totalidade, está sofrendo com essa redução legal dos preços ainda mais da lã (que baixará ainda mais se a proibição de exportar continuar)... ...as ovelhas dão mais despesas do que lucro, e muitos criadores poderão ter a idéia de deixar que seus rebanhos desapareçam.”
Mas o Rei Frederico Guilherme I apegou-se à política de restrição. Eis como respondeu à petição: “Sua Majestade o Rei da Prússia... ...considera necessário manter a proibição da exportação de lã... pois a experiência mostra que outras potências, particularmente a Inglaterra, que também não permitem a exportação de sua lã, com isso estão agindo bem, e o país enriquece.”149
Talvez o rei da Prússia tivesse razão quanto ao enriquecimento da Inglaterra. Mas. os mercadores daquele país teriam discordado da razão por ele atribuída ao enriquecimento. Sabemos que também os mercadores não estavam satisfeitos com as restrições mercantilistas. Queriam modificações que melhorassem seus negócios. Tomaram aos mercantilistas o processo de expor seus argumentos — ou seja, diziam defender a política que melhor traria riqueza e prosperidade ao país. Um erro antigo e perdoável, esse de confundir os interesses pessoais com os interesses do país. Na ata da Câmara dos Comuns, do dia 8 de maio de 1820, encontramos sua defesa do comércio livre: “Uma petição dos Mercadores da Cidade de Londres foi apresentada e lida; dizia ela que o comércio exterior conduz acentuadamente à riqueza e prosperidade do país, permitindo-lhe importar as mercadorias para cuja produção o solo, clima, capital e indústria de outros países são aptos, e exportar em pagamento os artigos que melhor produz; que a liberdade de qualquer limitação se destina a dar a maior expansão ao comércio exterior, e a melhor direção ao capital e indústria do país; que a máxima de comprar no mercado mais barato e vender no mais caro, bússola de todo comerciante em seus negócios individuais, é rigorosamente aplicável, como melhor regra de comércio, a toda a nação; que uma política baseada nesses princípios tornaria o comércio do mundo um intercambio com vantagens mútuas, e difundiria o aumento de fortuna e melhor vida entre os habitantes de todos os paises... ...que os preconceitos existentes em favor do sistema de proteção, ou restritivo, podem ser atribuídos à suposição errônea de que toda importação de mercadorias estrangeiras provoca uma diminuição ou desestímulo.de nossa própria produção, na mesma proporção — de forma que se o raciocínio em que se baseiam tais regulamentos fosse seguido com coerência, acabaríamos excluídos de todo o comércio com o estrangeiro.”150
O Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, de Adam Smith, foi um desses livros que dominam a imaginação do público e varrem país após país. Ao contrário de autores anteriores, para os quais o Estado devia seguir esta ou aquela política para tornar-se poderoso, Adam Smith se ocupava mais do estudo das causas que influenciam a produção e distribuição da riqueza. A maioria dos mercantilistas tinha interesses a defender, mas os ocultava dizendo que o país se tornaria mais rico defendendo precisamente esses interesses. Smith, ao contrário, interessou-se mais pela análise do que pelas sugestões práticas, e abordou o assunto de forma científica. Parte de seu famoso livro é dedicada ao estudo da doutrina mercantilista, que desmascarou.
Houve outros, antes dele, que a desmascararam também. Nos dias áureos do mercantilismo, alguns pensadores atacaram seus princípios. Toda medida mercantilista teve seus críticos.
Vejamos, por exemplo, o imposto e a proibição de importação de mercadorias estrangeiras. Já em 1690 Nicholas Bardon, no A Discourse of Trade, escrevia: “A proibição do comércio é a causa de sua decadência, pois todos os produtos estrangeiras são trazidos pela troca com as mercadorias locais, assim, proibindo-se qualquer mercadoria estrangeira, impedem-se o fabrico e exportação de parte correspondente da mercadoria nacional, que pela primeira costumava ser trocada. Os artífices e mercadores que trabalham em tais mercadorias perdem seu comércio...”151
Ou tomemos o conhecido argumento da “balança de comércio”. Em 1691 Dudley North se lançava contra ele, num famoso livro denominado Discourses Upon Trades. “Não há muito, houve grande agitação com pesquisas sobre a balança de exportação e importação, e com a balança de comércio, como diziam. Imaginava-se que, se trouxéssemos mais mercadorias do que mandávamos para fora, estávamos a caminho da ruína. Pode parecer estranho ouvirmos dizer, hoje, que todo o mundo é, quanto ao comércio, apenas uma nação ou um povo, e que as nações são como pessoas... ...Que não pode haver comércio sem lucros para o público, pois quando não há lucros, o comércio é abandonado... ...Que nenhuma lei pode estabelecer prêmios, ao comércio, pois estes devem vir por si mesmos. E, quando essas leis são baixadas em qualquer país, constituem um empecilho ao comércio, e, portanto, são prejudiciais.”152
Também Joseph Tucker, em 1749, combateu a política mercantilista dos monopólios: “Nossos monopólios, companhias públicas e companhias por ações são um prejuízo e destruição para o comércio livre... Toda a Nação sofre em seu comércio, e fica privada do comércio com mais de três quartos do Globo, para enriquecer alguns diretores ambiciosos. Eles se enriquecem dessa forma, ao passo que o público se torna pobre.”153
Tucker também atacou a política colonial mercantilista: “Nossa condenada política e ciúme natural do comércio e das manufaturas da Irlanda, é outro enorme empecilho à expansão do nosso comércio. Se a Irlanda enriquecer, que acontecerá? A Inglaterra também será rica, e a França mais pobre. A lã, que agora é contrabandeada .da Irlanda para a França e ali manufaturada, e mandada ao mercado para competir com o nosso produto, será manufaturada na Irlanda. As rendas das propriedades dos Senhores irlandeses aumentará, e o dinheiro encontrará, sem demora, o caminho da Inglaterra.” 154
E a noção mercantilista da importância que para um país tinha o estoque de ouro e prata? David Hume, amigo de Adam Smith, destruiu-a em 1742. Mostrou que um grande tesouro não traz vantagens duradouras para o país. Sua teoria era que, em conseqüência do comércio internacional, todo país com um dinheiro metálico consegue o volume de ouro que estabelece seus preços de modo a equilibrar as importações e as exportações. Como?
O leitor se lembrará da explicação sobre a elevação e redução de preços de acordo com a quantidade do dinheiro cm circulação. Hume partiu desse ponto. “Se considerarmos qualquer reino em si, é evidente que a maior ou menor abundância de dinheiro não tem importância: pois o preço das mercadorias é sempre proporcional à abundância do dinheiro.”155
O que acontece ao comércio de um país quando os preços se elevam? Evidentemente, os consumidores noutro país comprarão menos suas mercadorias, porque estas se tornam mais caras. Isso significa que o país exportará menos. Portanto, suas exportações não corresponderão às importações. O país comprará de outros quantidade de mercadoria maior do que estes lhe compram. Mas a diferença tem de ser paga de uma forma ou de outra. Se suas exportações não pagam as importações, a diferença terá que ser paga em dinheiro, o que implica a perda de ouro para o país cujos preços se elevaram. Essa perda reduzirá o total de dinheiro em circulação, e os preços, portanto, cairão novamente; os outros países verificam que podem novamente comprar barato as mercadorias, e com isso as exportações se elevam outra vez, equilibrando-se com as exportações. A recíproca é também verdadeira, evidentemente. Se os preços caem, num país, devido ao decréscimo do dinheiro em circulação, outros países lhe comprarão mais mercadorias, porque serão mais baratas. O país exportará então mais do que importa, e a diferença será paga em dinheiro. Esse aumento do ouro no país elevará, ainda uma vez, os preços.
Essas são apenas, é claro, as linhas mestras da situação. Na realidade, a coisa não se processa com essa rapidez, e leva bastante tempo — a exposição só é válida “como tempo”. Mas a explicação de Hume realmente derrubou a importância dada pelos mercantilistas às grandes reservas de metais preciosos.
Uma após outra, as teorias mercantilistas foram atacadas por vários autores no momento mesmo em que estavam sendo formuladas. A questão do comércio livre, particularmente, foi defendida pelos fisiocratas na França.
Era de esperar que a oposição à restrição e regulamentação mercantilista surgisse mais acentuadamente na França, pois foi nesse país que o controle estatal da indústria atingiu o máximo. A indústria estava ali cerceada por uma tal rede de “pode” e “não pode” e por um exército de inspetores abelhudos que impunham os regulamentos prejudiciais, que é difícil compreender como se conseguia fazer qualquer coisa. As regras e regulamentos das corporações já eram bastante prejudiciais. Continuaram em vigor, ou foram substituídos por outros regulamentos governamentais, ainda mais minuciosos, e que se destinavam a proteger e ajudar a indústria da França. De certa forma, ajudaram. Mas ainda quando tinham utilidade, aborreciam aos industriais. Podia o fabricante de tecidos, por exemplo, fabricar o tipo de fazenda que lhe agradasse? Não. Os tecidos tinham de ser de uma qualidade determinada, e nada mais. Podia o fabricante de chapéus atrair a procura do consumidor, produzindo chapéus feitos de uma mistura de castor, pele e lã? Não. Só podia fazer chapéus todos de castor ou todos de lã, e nada mais. Podia o fabricante usar uma ferramenta nova e talvez melhor na produção de suas mercadorias? Não. As ferramentas tinham que ser de determinado tamanho e forma, e os inspetores apareciam sempre para verificar isso. 156116
O resultado natural desse avanço excessivo numa direção seria um movimento igualmente profundo na outra. O controle demasiado da indústria estimulou a luta pela ausência total de controle. Um dos pioneiros dessa luta foi um comerciante francês chamado Gournay. Dele escreveu Turgot, famoso ministro das Finanças da França: “Espantou-se ele ao verificar que um cidadão não podia fazer nem vender nada sem ter comprado o direito disso, conseguindo, por alto preço, sua admissão numa corporação... ...Nem havia imaginado que um reino onde a ordem de sucessão fora estabelecida apenas pela tradição... ...o governo teria condescendido em regulamentar, por leis expressas, o comprimento e largura de cada peça de tecido, o número de fios de que deve ser formada, e consagrar com o selo da legislatura quatro volumes in-quarto cheios desses detalhes importantes, bem como baixar numerosas leis ditadas pelo espírito monopolista. Não o surpreendeu menos ver o governo ocupar-se da regulamentação do preço de cada mercadoria, proibindo um tipo de indústria com a finalidade de fazer florescer outro e julgar que assegurava a abundância do cereal, tornando a situação do agricultor mais incerta e desgraçada do que a de todos os outros cidadãos.”157
Gournay estava mais do que surpreendido com essa regulamentação excessiva. Queria que a França se livrasse dela. Imaginou a frase que se tornaria o grito de batalha de todos os que se opunham às restrições de toda sorte: “Laissez-faire”. Uma tradução livre dessa frase famosa seria: “Deixem-nos em paz!”
Laissez-faire tbornou-se o lema dos fisiocratas franceses que viveram na época de Gournay. Eles são importantes porque constituem a primeira “escola” de economistas. Formavam um grupo que, a partir de 1757, se reunia regularmente sob a presidência de François Quesnay para examinar problemas econômicos. Os membros da escola escreveram livros e artigos pedindo a eliminação das restrições, defendendo o comércio livre, o laissez faire. Quando Mirabeau, fisiocrata famoso, recebeu de Carlos Frederico, governador de Baden em 1770, pedido de conselho sobre como administrar o reino, escreveu: “Ah, Monseigneur, sede o primeiro a dar a vossos Estados a vantagem de um porto livre e um comércio justo, e que as primeiras palavras ouvidas em vosso território, depois de vosso amado e respeitado nome, sejam as três palavras nobres: Independência, Imunidade, Liberdade! Vossos Estados se tornarão rapidamente a habitação privilegiada do homem, a rota natural do comércio, o ponto de encontro do universo.” 158
Os fisiocratas chegaram à sua fé no comércio livre por um caminho indireto. Acreditavam, acima de tudo, na inviolabilidade da propriedade privada, particularmente na propriedade privada da terra. Por isso, acreditavam na liberdade — o direito do indivíduo fazer de sua propriedade o que melhor lhe agradasse, desde que não prejudicasse a outros. Atrás de sua argumentação a favor do comércio livre está a convicção de que o agricultor devia ter permissão para produzir o que quisesse, para vender onde desejasse. Naquela época, não só era proibido mandar cereais para fora da França sem pagar imposto, como o próprio trânsito do produto de uma parte do país para outra era taxado. A isso se opunham os fisiocratas. Mercier de la Rivière, autor da melhor exposição dos princípios defendidos pelos fisiocratas, assinalou que a liberdade completa era essencial ao gozo dos direitos de propriedade: “Não poderá haver grande abundância de produção sem grande liberdade... ...Não é verdade que um direito que não pode ser exercido deixa de ser um direito? Portanto, é impossível pensar nos direitos de propriedade sem liberdade... ...O homem não empreende nada se não tiver o estímulo do desejo de desfrutar o que faz; ora, esse desejo não nos pode atingir, se for separado da liberdade de desfrutar.”159
Os fisiocratas abordavam todos os problemas sob o ângulo de seus efeitos na agricultura. Argumentavam ser a terra a única fonte de riqueza, e o trabalho na terra o único trabalho produtivo. Em sua correspondência com Carlos Frederico, Mirabeau disse: “Nosso camponês, em sua capacidade de lavrador, dedica-se ao trabalho produtivo e é apenas desse trabalho que procuramos lucro, descontadas as despesas; em sua qualidade de tecelão, o trabalho que executa é estéril; desempenha uma parte na totalidade dos serviços, mas nada produz” 160
Diziam os fisiocratas que somente a agricultura fornece as matérias-primas essenciais à indústria e comércio. Embora concordassem que os artesãos podiam ter um papel útil na transformação da matéria-prima em produto acabado, julgavam que ele não contribuía para aumentar a riqueza. Depois de trabalhada, a matéria-prima valia mais, mas o seu aumento de valor não era igual ao total gasto para pagar ao artesão seu trabalho. Não havia aumento de riqueza. Isso não ocorria com a agricultura, diziam eles. Enquanto a indústria era estéril, a agricultura era proveitosa. Muito acima do custo do trabalho agrícola e do lucro do dono da terra,. havia um produto líquido — devido à generosidade da Natureza — que representava um verdadeiro aumento de riqueza. O excedente agrícola superior aos gastos, o produit net, diziam, podia variar de ano para ano. Era grande ou pequeno, segundo as estações.
Embora os economistas de hoje discordem de muitos aspectos da teoria fisiocrata, atribuem-lhe o mérito de mostrar que a riqueza de um país não deve ser estimada como uma soma fixa de mercadorias acumuladas, mas sim pela sua renda, não como um estoque, mas como um fluxo.
Adam Smith tinha o seguinte a dizer sobre as teorias dos fisiocratas: “Esse sistema, porém, com todas as suas imperfeições, é talvez o que mais se aproxima da verdade, dentre os já publicados sobre a questão da Economia Política... ...Embora ao representar o trabalho da terra como o único produtivo, as noções que inculca são talvez demasiado estritas e confinadas; no entanto, ao representar a riqueza das nações como formada não das riquezas de dinheiro, que não podem ser consumidas, mas pelos bens consumíveis anualmente reproduzidos pelo trabalho da sociedade, e ao representar a liberdade perfeita como o único recurso eficiente para aumentar a produção anual da melhor forma possível, sua doutrina parece ser, sob todos os pontos de vista, tão exata quanto generosa e liberal.” 161
Embora os fisiocratas se tivessem antecipado a Adam Smith na defesa da “liberdade perfeita”, a influência deste último foi muito maior. Sua Wealth of Nations teve edições consecutivas. Foi muito lida durante sua vida, e continuou a ser depois de morto. Na derrubada da teoria mercantilista, seus golpes foram os decisivos. Assim liquidou ele os partidários do muito ouro: “O país que não tem minas próprias deve, sem dúvida, obter seu ouro e prata dos países estrangeiros, tal como o país que não tem vinhas precisa obter seu vinho. Não parece necessário, porém, que a atenção do governo se deva voltar mais para um problema do que para outro. O país que tiver meios para comprar vinho, terá sempre o vinho que desejar; e o país que tiver meios de comprar ouro e prata terá sempre abundância desses metais. Eles são comprados por determinado preço, como todas as outras mercadorias.” 162
Sua opinião sobre a política colonial dos mercantilistas resumiu-se na frase seguinte: “O monopólio do comércio da colônia, portanto, como todos os outros expedientes mesquinhos e malignos do sistema mercantilista, deprime a indústria de todos os outros países, mas principalmente a das colônias, sem que aumente em nada — pelo contrário, diminui — a indústria do país em cujo benefício é adotado.”163
A primeira frase do livro de Smith começa com uma defesa do comércio livre. Diz-nos que “o maior melhoramento na capacidade produtiva do trabalho parece ter sido o efeito da divisão do trabalho”. E por divisão do trabalho Smith entendia, já em 1776, o mesmo que entendemos hoje: Especialização. Manter o trabalhador na mesma função, até que se torne um perito nela: “Tomemos o exemplo de uma manufatura sem importância, mas na qual a divisão do trabalho tem sido observada: a manufatura de alfinetes. O trabalhador não-preparado para esse ramo... ...nem conhecedor das máquinas nele utilizadas... ...talvez não pudesse, com toda a sua indústria, fazer um alfinete por dia, e certamente não faria vinte. Mas na forma pela qual a indústria funciona, não só todo o trabalho adquire uma forma peculiar, como é dividido em certo número de ramos, que também se tornam peculiares, em sua maioria. Um homem puxa o fio, outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto o afina, um quinto prepara-lhe a cabeça: para fazer esta são necessárias duas ou três operações; encaixá-la é tarefa distinta, pratear o alfinete é outra; até colocá-los no papel constitui uma ocupação própria. E, dessa forma, a tarefa importante de fazer um alfinete é dividida em 18 operações distintas, que em algumas fábricas são realizadas por diferentes mãos, embora em outras o mesmo homem costume realizar duas ou três delas. Vi uma pequena fábrica desse tipo em que dez homens apenas trabalhavam, e conseqüentemente alguns executavam duas ou três operações diferentes... ...Podiam, quando desejavam, fazer entre eles cerca de seis quilos de alfinetes por dia. Há em cada quilo mais de oito mil alfinetes de tamanho médio. Essas dez pessoas podiam fazer, entre si 48 mil alfinetes diariamente. Cada pessoa, portanto, fazendo a décima parte de 48 mil alfinetes, pode ser considerada como tendo feito 4.800 alfinetes. Mas se tivessem trabalhado separada e independentemente, e sem que nenhuma delas estivesse preparada para a sua tarefa, certamente não fariam, cada, nem 20, nem talvez um alfinete por dia. Ou seja, nem uma parte infinitesimal do que são capazes de fazer em conseqüência da adequada divisão e combinação de suas diferentes operações. 164
E daí? Suponhamos que concordemos com Adam Smith em que a divisão do trabalho, devido à maior habilidade, economia de tempo, eficiência geral etc., aumenta a produtividade do trabalho. Que tem isso a ver com o comércio livre?
Tem muito. Porque a divisão do trabalho é determinada pelo tamanho do mercado, disse Adam Smith: “Como é a capacidade de troca que dá ocasião à divisão do trabalho, assim essa divisão deve ser sempre limitada pelas proporções dessa capacidade ou, em outras palavras, pelo tamanho do mercado. Quando este é muito pequeno, ninguém terá estímulo para se dedicar inteiramente a um emprego, por falta de capacidade de trocar toda a parte excedente do produto de seu trabalho, que estiver acima de seu consumo, pelas partes do produto do trabalho de outro homem, segundo a oportunidade.”165
Se a maior produtividade é proporcionada pela divisão do trabalho, e a divisão do trabalho é limitada pelo tamanho do mercado, então, quanto maior este, tanto maior o aumento da produtividade — isto é, tanto maior a riqueza da nação. E como com o comércio livre os mercados se ampliam ao máximo possível, temos também a máxima divisão do trabalho possível, e, portanto, um aumento da produtividade também ao máximo possível. Portanto o comércio livre é desejável.
Isto está meio complicado. Eis uma simplificação:
1. O aumento da produtividade ocorre com a divisão do trabalho.
2. A divisão do trabalho aumenta ou diminui segundo o tamanho do mercado.
3. O mercado se amplia ao máximo possível pelo comércio livre. Portanto, o comércio livre proporciona a maior produtividade.
Mais uma coisa, O comércio livre entre países representa a divisão do trabalho levada ao seu mais alto ponto. Apresenta as mesmas vantagens em escala mundial que a divisão observada na fábrica de alfinetes de Adam Smith. Permite a cada país especializar-se nas mercadorias que pode produzir a menor custo, e com isso aumenta a riqueza total do mundo.
Mas foi como um revoltado contra a restrição, regulamentação e contenção que apresentamos Adam Smith no começo deste capítulo. Que disse ele sobre a interferência na indústria? Na citação seguinte, condena a interferência governamental e pede a liberdade: “Cada sistema que procura, seja pelas estímulos especiais, atrair para determinada espécie de indústria uma parte maior do capital da sociedade do que seria natural; ou pelas restrições extraordinárias, afastar de uma espécie de indústria parte do capital que de outro modo nela seria empregado, é em realidade subversivo ao grande propósito que pretende realizar. Retarda, ao invés de acelerar, o progresso da sociedade no sentido da verdadeira riqueza e grandeza; e diminui, ao invés de aumentar, o verdadeiro valor do produto anual de sua terra e trabalho.
“Todos os sistemas, seja de preferência ou contenção, portanto, devem ser afastados, estabelecendo.se o simples e óbvio sistema de liberdade natural. Todo homem, desde que não viole as leis da justiça, fica perfeitamente livre de procurar atender a seus interesses, da forma que desejar, e colocar tanto sua indústria como capital em concorrência com os de outros homens, ou ordem de homens.” 166
Releiamos a última frase e veremos prontamente por que The Wealth of Nations tornou-se a Bíblia dos homens de negócios num período em que os negócios eram muitos, mas prejudicados a todo momento pelos regulamentos restritivos.
C A P Í T U L O X I I I
“A Velha Ordem Mudou...”
QUE pensaria o leitor de um governo que taxasse os pobres, mas não os ricos? Totalmente louco, seria seu primeiro pensamento; refletindo, poderia ocorrer-lhe que, de certa forma, é o que o governo dos Estados Unidos está fazendo hoje. Haverá naturalmente muita gente para discordar disso — gente que procuraria provar que os ricos nos E. U. A. pagam uma proporção de impostos mais do que justa Mas quanto ao fato de que o governo francês do século XVIII realmente cobrava impostos dos pobres, e não dos ricos, não pode haver discordância.
E não pode haver porque as próprias classes privilegiadas admitiam estarem isentas praticamente de todas as taxas da época. O clero e a nobreza julgavam que seria fim do país se, como a gente comum, tivessem de pagar impostos. Quando o governo da França estava em má situação financeira, com as despesas se acumulando rapidamente e deixando muito longe a receita, ocorreu a alguns franceses que a única saída dessa dificuldade era cobrar impostos dos privilegiados. Turgot, Ministro das Finanças em 1776, tentou pôr em prática algumas reformas — muito necessárias — do sistema fiscal. Mas os privilegiados não queriam saber disso. Cerraram fileiras em torno do Parlamento de Paris, que assim definiu, claramente, sua posição: “A primeira regra da justiça é preservar a alguém o que lhe pertence: essa regra consiste não apenas da preservação dos direitos de propriedade, mas ainda mais da preservação dos direitos da pessoa, oriundos de prerrogativas de nascimento e posição... ...Dessa regra de lei e eqüidade segue-se que todo sistema que, sob a aparência de humanitário e beneficente, tenda a estabelecer uma igualdade de deveres e destruir as distinções necessárias levará dentro em pouco à desordem (resultado inevitável da igualdade) e provocará a derrubada da sociedade civil. A monarquia francesa, pela sua constituição, é formada de vários Estados distintos. O serviço pessoal do clero é atender às funções relacionadas com a instrução e o culto. Os nobres consagram seu sangue à defesa do Estádo e ajudam o soberano com seus conselhos. A classe mais baixa da Nação, que não pode prestar ao rei serviços tão destacados, contribui com seus tributos, sua indústria e seu serviço corporal. Abolir essas distinções é derrubar toda a constituição francesa.”167
O clero e a nobreza eram as classes privilegiadas. Chamavam-se de Primeiro Estado e Segundo Estado, respectivamente. O clero tinha cerca de 130.000 membros, e a nobreza aproximadamente 140.000. Embora fossem as classes privilegiadas, nem sempre eram ricos ou viviam na ociosidade. Havia bispos muito ricos e nobres muito ricos. Havia sacerdotes que trabalhavam muito e nobres também. Como havia ociosos na Igreja e na nobreza. E, em meio destes, havia também outros grupos.
A classe sem privilégios era o povo, a gente comum, que tinha o nome de Terceiro Estado. Da população de 25 milhões de habitantes da França, representavam mais de 95%. E, tal como havia diferença de riqueza e modo de vida entre as classes privilegiadas, também havia diferença entre os sem privilégios. Cerca de 250.000 destes, constituindo a classe média superior, ou burguesa, estavam relativamente bem, em comparação com o restante dos membros do Terceiro Estado. Outro grupo consistia de artesãos vivendo em pequenas aldeias e cidades. Seu número se elevava a 2 milhões e meio. Todo o resto, cerca de 22 milhões, eram camponeses que trabalhavam na terra. Pagavam impostos aos Estados, dízimos ao clero e taxas feudais à nobreza.
Eu e o leitor organizamos nossa vida de modo que nossos gastos são determinados pela nossa renda. Os governos, de modo geral, procuram fazer o mesmo. Mas o governo da França no século XVIII agia de modo oposto. Gastava o dinheiro totalmente, extravagantemente, sem sistema, e corruptamente. Um exemplo mostrará isso. O Livre Rouge era um Livro Vermelho contendo a lista de todas as pessoas a quem o governo dava pensões. Entre elas estava o nome de Ducrest, um barbeiro. Por que tinha ele direito a uma pensão de 1.700 libras anuais? Por que havia sido o cabeleireiro da filha do Conde d’Artois. O fato de que essa filha tivesse morrido cedo, antes de ter cabelos para pentear, não tinha importancia. Ducrest recebia sua pensão.”168
Esse é um exemplo da forma insensata pela qual as finanças francesas eram administradas. Há milhares de outros. Ao invés de regular a despesa pela receita, a receita era determinada pela despesa. Gastos ociosos, sem finalidades, significavam a necessidade de recolher maior quantidade de dinheiro com impostos. E como as classes privilegiadas não contribuíam com sua parte (pelo contrário, impunham aos plebeus taxas próprias), e como os membros mais ricos do Terceiro Estado conseguiam, por tortuosos caminhos, isentar-se dos impostos diretas, todo o peso recaía sobre os pobres. Era um peso difícil. Um quadro verdadeiro do período mostraria o camponês curvado carregando em suas costas o rei, o padre e o nobrc.
Um francês famoso, De Tocqueville, mostrou o que representava esse peso dos impostos na vida diária do camponês: “Imagine o leitor um camponês francês do século XVIII... ...apaixonadamente enamorado da terra, ao ponto de gastar todas as suas economias para adquiri-la... ...Para completar essa compra, ele tem primeiro de pagar um imposto Finalmente, a terra é dele; seu coração nela está enterrado, com as sementes que semeia... ...Mas novamente seus vizinhos o chamam do arado, obrigam-no a trabalhar para eles sem pagamento. Tenta defender sua nascente plantação contra as manobras dos senhores de terra; estes novamente o impedem. Quando ele cruza o rio, esperam-no para cobrar uma taxa. Encontra-os no mercado, onde lhe vendem o direito de vender seus produtos; e quando, de volta a casa, ele deseja usar o restante do trigo para sua própria alimentação... ...não pode tocá-lo enquanto não o tiver moído no moinho e cozido no forno dos mesmos senhores de terras. Uma parte da renda de sua pequena propriedade é gasta em pagar taxas a esses senhores... ...Tudo o que fizer, encontra sempre esses vizinhos em seu caminho... e quando estes desaparecem, surgem outros com as negras vestes da Igreja, para levar o lucro líquido das colheitas A destruição de parte das instituições da Idade Média tornou cem vezes mais odiosa a parte que ainda sobrevivia.” 169
Isso parece a descrição do sistema feudal do século XI. Não houve, então, modificações nos sete séculos que se seguiram? Sim, houve. Dos 22 milhões de camponeses existentes na França na época de 1700, apenas 1 milhão era de servos, no sentido antigo. Os outros se haviam elevado na escala, desde a servidão até a liberdade completa. Mas isso não significava que as velhas taxas e serviços feudais tivessem desaparecido. Algumas foram-se, mas outras continuavam. Continuavam apesar de ter sido abolida há muito a causa de sua origem. Os nobres que recebiam taxas e serviços feudais pelo fato de darem proteção militar já não constituíam o exército real — sua função militar acabara. Não ajudavam o governo como um grupo — apenas individualmente — nem tinham qualquer função política ou administrativa. Não trabalhavam a terra, não se dedicavam aos negócios — não tinham função econômica. Recebiam sem dar. Na maioria dos casos, tornavam-se ociosos, parasitas, passando o tempo na corte, muito longe de suas propriedades. Não obstante, ainda exigiam e ainda recebiam pagamentos e serviços dos camponeses. Eram um peso morto que os camponesa carregavam. E como De Tocqueville mostra, na última frase da citação acima, o simples fato de que algumas das taxas existentes haviam desaparecido apenas tornava as remanescentes mais odiadas.
Qual, exatamente, a proporção de sua renda que o camponês pagava em impostos? A resposta surpreenderá. Calculou-se que nada menos de 80% dos seus ganhos eram pagos aos vários coletores de impostos! Dos 20% que restavam, ele tinha que alimentar, abrigar e vestir sua família. Não é de espantar que o camponês reclamasse. Não é de espantar que uma colheita má o deixasse à beira da fome. Nem que muitos de seus vizinhos vagassem pelas estradas como mendigos, famintos.
A Revolução Francesa estourou em 1789. Mas não se conclua com isso que os camponeses estivessem, no século XVIII, em pior situação do que no século XVII. Não estavam. Talvez estivessem até melhor. Na verdade, de uma forma ou de outra, os camponeses haviam poupado bastante de sua insignificante renda, depois de pagas as muitas taxas, para comprar a terra. Por cem anos ou mais antes da Revolução, os camponeses compraram propriedades, de forma que, quando o ano de 1789 chegou, cerca de um terço das terras da França estava em suas mãos. Isso, porém, apenas os deixou mais descontentes do que antes. Por quê?
Eram famintos de terra. Puderam satisfazer um pouco dessa fome. Que impedia seu avanço? O peso esmagador que lhes impunham o Estado e as classes privilegiadas. Passaram a ver, com maior clareza, que, se atirassem fora o fardo, poderiam ficar eretos — elevar-se da situação de animal para a de homem. O simples fato de ter sua posição melhorada um pouco abriu-lhes os olhos para o que poderiam ser, se... 170
Isso não queria dizer que os camponesa da França (e de outros países da Europa ocidental) não tivessem pensado em acabar com os pagamentos e restrições feudais. Pensaram. Houve revoltas camponesas, antes. Embora não tivessem conseguido derrubar todas as regulamentações feudais, melhoraram a sorte dos camponeses. Mas para se libertarem totalmente, estes precisavam de auxílio e liderança.
Encontraram-nos na nascente classe média.
Foi essa classe média, a burguesia, que provocou a Revolução Francesa, e que mais lucrou com ela. A burguesia provocou a Revolução porque tinha de fazê-lo. Se não derrubasse seus opressores, teria sido por eles esmagada. Estava na mesma situação do pinto dentro do ovo que chega a um tamanho em que tem de romper a casca ou morrer. Para a crescente burguesia os regulamentos, restrições e contenções do comércio e indústria, a concessão de monopólios e privilégios a um pequeno grupo, os obstáculos ao progresso criados pelas obsoletas e retrógradas corporações, a distribuição desigual dos impostos, continuamente aumentados, a existência de leis antigas e a aprovação de novas sem que fosse ouvida, o grande enxame de funcionários governamentais bisbilhoteiros e o crescente volume da dívida governamental — toda essa sociedade feudal decadente e corrupta — era a casca que devia ser rompida. Não desejando ser asfixiada até morrer penosamente, a classe média burguesa que surgia tratou de fazer que a casca fosse rompida.
Quem era a burguesia? Eram os escritores, os doutores, os professores, os advogados, os juízes, os funcionários — as classes educadas; eram os mercadores, os fabricantes, os banqueiros — as classes abastadas, que já tinham direito e queriam mais. Acima de tudo, queriam — ou melhor, precisavam — lançar fora o jugo da lei feudal numa sociedade que realmente já não era feudal. Precisavam deitar fora o apertado gibão feudal e substituí-lo pelo folgado paletó capitalista. Encontraram a expressão de suas necessidades no campo econômico, nos escritos dos fisiocratas de Adam Smith; e a expressão de suas necessidades, no campo social, nos trabalhos de Voltaire, Diderot e dos enciclopedistas. Laissez-faire no comércio e indústria teve sua contrapartida no “domínio da razão” na religião e na ciência.
Nada mais enlouquecedor do que ver alguém que não dispõe de nossa capacidade de trabalho colher os frutos desse trabalho simplesmente porque teve um “impulso” qualquer. A burguesia estava mais ou menos nessa posição. Tinha o talento. Tinha a cultura. Tinha o dinheiro. Mas não tinha na sociedade a situação legal que tudo isso lhe devia conferir. “Barnave tornou-se revolucionário no dia em que sua mãe teve de deixar o camarote que ocupava no teatro em Grenoble para dar lugar a um nobre. Mme. Roland queixa-se de que ao ser convidada para jantar no Castelo de Fontenay com sua mãe, serviram-lhe a comida na mesa dos empregados. Quantos se tornaram inimigos do velho regime por terem seu orgulho ferido!”171
A burguesia quase não possuía terras, mas tinha o capital. Emprestara dinheiro ao Estado. Queria.o, agora, de volta. Conhecia o bastante das questões do governo para ver que a estúpida e perdulária administração do dinheiro público poderia levar à bancarrota. Alarmava-se com a perspectiva de perder suas economias.
A burguesia desejava que seu poder político correspondesse ao poder econômico que já tinha. Era dona de propriedades — queria agora os privilégios. Queria ter certeza de que sua propriedade estaria livre das restrições aborrecidas a que estivera sujeita na decadente sociedade feudal. Queria ter certeza de que os empréstimos feitos ao governo seriam pagos. Para isso, tinha de conquistar não somente uma voz, mas a voz no governo. Sua oportunidade chegou — e ela soube aproveitá-la.
A oportunidade chegou porque a França estava em tamanho caos que já não era possível as coisas continuarem como antes. Com isso concordava até um membro da nobreza, o Conde de Calonne. Sua posição no importante posto de Ministro das Finanças permitia-lhe ver claramente a situação. “A França é um reino composto de Estados e países separados com administrações mistas, cujas províncias nada sabem umas das outras, onde certos distritos estão completamente livres de fardos cujo peso total recai sobre outros, onde a classe mais rica é a que menos imposto paga, onde o privilégio perturbou todo o equilíbrio, onde é impossível ter um governo constante ou uma vontade unânime: necessariamente, é um reino muito imperfeito, cheio de abusos, e, na sua condição presente, impossível de governar.”172
Observem-se particularmente as três últimas palavras. Um membro da classe dominante admite ser impossível continuar governando; acrescente-se a isso as massas descontentes, e ainda uma classe inteligente e em ascensão, ansiosa de tomar o poder, e teremos dessa mistura uma revolução, que rebentou em 1789. Seu nome: Revolução Francesa.
Uma descrição simples dos objetivos dos revolucionários foi feita por um de seus líderes, o Abbé Sieyès, num folheto popular intitulado O que é o Terceiro Estado?: “Devemos formular três perguntas:
“Primeira: O que é o Terceiro Estado? Tudo.
“Segunda: O que tem ele sido em nosso sistema político? Nada.
Terceira: O que pede ele? Ser alguma coisa.” 173
Embora seja verdade que todos os membros do Terceiro Estado, artesãos, camponeses e burguesia, estivessem tentando “ser alguma coisa”, foi principalmente o último grupo que conseguiu o que queria. A burguesia forneceu a liderança, enquanto os outros grupos realmente lutaram. E foi a burguesia quem mais lucrou. Durante o curso da revolução teve várias oportunidades para enriquecer e fortalecer-se. Especulou nas terras tomadas da igreja e da nobreza, e amontoou fortunas imensas através de contratos fraudulentos com o exército.
Marat, o porta-voz da classe trabalhadora mais pobre, descreveu o que ocorria durante a Revolução, com as seguintes palavras: “No momento da insurreição o povo abriu caminho por sobre todos os obstáculos pela força do número; mas, por muito poder que tenha conseguido inicialmente, foi por fim derrotado pelos conspiradores da classe superior, cheios de astúcia, artimanhas e habilidade. Os integrantes educados e sutis da classe superior a princípio se opuseram aos déspotas; mas isso apenas para voltar-se contra o povo, depois de se ter insinuado na confiança e usado seu poder, para se colocarem na posição privilegiada da qual os déspotas haviam sido expulsos. A revolução é feita e realizada por intermédio das camadas mais baixas da sociedade, pelos trabalhadores, artesãos, pequenos comerciantes, camponeses, pela plebe, pelos infelizes, a que os ricos desavergonhados chamam de canalha e a que os romanos desavergonhadamente chamavam de proletariado. Mas o que as classes superiores ocultam constantemente é o fato de que a Revolução acabou beneficiando somente os donos de terras, os advogados e os chicaneiros.”174
É uma descrição exata do que ocorreu. Depois que a Revolução acabou, foi a burguesia quem ficou com o poder político na França. O privilégio de nascimento foi realmente derrubado, mas o privilégio do dinheiro tomou seu lugar. “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” foi uma frase popular gritada por todos os revolucionários, mas que coube principalmente à burguesia desfrutar.
O exame do Código Napoleônico deixa isso bem claro. Destinava-se evidentemente a proteger a propriedade — não a feudal, mas a burguesa. O Código tem cerca de 2.000 artigos, dos quais apenas 7 tratam do trabalho e cerca de 800 da propriedade privada. Os sindicatos e as greves são proibidos, mas as associações de empregadores permitidas. Numa disputa judicial sobre salários, o Código determina que o depoimento do patrão, e não do empregado, é que deve ser levado em conta. O Código foi feito pela burguesia e para a burguesia: foi feito pelos donos da propriedade para a proteção da propriedade.
Quando o fumo da batalha se dissipou, viu..se que a burguesia conquistara o direito de comprar e vender o que lhe agradasse, como, quando, e onde quisesse. O feudalismo estava morto.
E morto não só na França, mas em todos os países conquistados pelo exército de Napoleão. Este levou consigo o mercado livre (e os princípios do Código Napoleônico) em suas marchas vitoriosas. Não é de surpreender que fosse bem recebido pela burguesia das nações conquistadas! Nesses países, a servidão foi abolida, as obrigações e pagamentos feudais foram eliminados, e o direito dos camponeses proprietários, dos comerciantes e industriais, de comprar e vender sem restrições, regulamentos ou contenções, se estabeleceu definitivamente.
Um excelente sumário dessa fase da Revolução Francesa foi escrito por Karl Marx em 1852, no Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte: “Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis e os partidos e massas da grande Revolução Francesa... ...terminaram a tarefa da época — que foi a libertação da burguesia e o estabelecimento da moderna sociedade burguesa. Os jacobinos revolveram o terreno no qual o feudalismo tinha raízes, e abalaram a estabilidade dos magnatas feudais que nelas se apoiavam. Napoleão estabeleceu por toda a França as condições que tornaram possível o desenvolvimento da livre concorrência, a exploração das terras depois da divisão das grandes propriedades, e a plena utilização da capacidade de produção industrial do país. Através das fronteiras, por toda parte, fez uma derrubada das instituições feudais...” 175
As revoluções são geralmente sangrentas. Muita gente se choca com a violência e o terror do modelo francês. É interessante que os mais fortes adversários da Revolução Francesa fossem os ingleses. O fato é especialmente notável porque a luta da burguesia inglesa para conquistar o poder político correspondente ao seu poder econômico ocorrera um século antes da Revolução Francesa, e a violência que a acompanhara já fora esquecida.
Houve, porém, uma diferença. Enquanto na França o Comércio teve de dar no Nascimento um violento golpe, do qual este jamais se recobrou, na Inglaterra a vitória foi conquistada por uma decisão, e não com luta. Parece que na Inglaterra, Comércio e Nascimento se conheciam bem e se entendiam melhor do que nos outros países. A burguesia inglesa pôde tornar-se uma aristocracia rural, e a aristocracia rural dedicou-.se aos Negócios sem se preocupar muito com o preconceito de “estar acima dessas coisas”. Não obstante, os anos de 1640-1688 marcam, na história inglesa, um período de luta — que só cessou quando a burguesia conquistou o direito de participar do governo.
O leitor se lembrará do nome de Edmund Burke, o grande estadista britânico que tão habilidosamente defendeu os colonos americanos na questão da “taxação sem representação”. Quando escreveu uma série de artigos condenando amargamente os revolucionários franceses, outro inglês lembrou-lhe a “Gloriosa Revolução” da própria Inglaterra, cem anos antes: “Em nome da humanidade, em nome do homem, em nome do bom senso... ...qual a ofensa irremediável, o crime imperdoável, que o povo da França cometeu contra este país? Terá sido pela modificação feita em seu governo pela Revolução de 1789? Ele difere de nós nessa questão apenas pelo fato de estar com um século de atraso. Será por sujeitarem o monarca ao controle? A nação britânica deu o exemplo.”176
Na Inglaterra, em 1689, e na França, em 1789, a luta pela liberdade do mercado resultou numa vitória da classe média. O ano de 1789 bem pode ser considerado como o fim da Idade Média, pois foi nele que a Revolução Francesa deu o golpe mortal no feudalismo. Dentro da estrutura da sociedade feudal de sacerdotes, guerreiros e trabalhadores, surgira um grupo da classe média. Através dos anos, ela foi ganhando força. Havia empreendido uma luta longa e dura contra o feudalismo, marcada particularmente por três batalhas decisivas. A primeira foi a Reforma Protestante; a segunda foi a Gloriosa Revolução na Inglaterra, e a terceira, a Revolução Francesa. No fim do século XVIII era pelo menos bastante forte para destruir a velha ordem feudal. Em lugar do feudalismo, um sistema social diferente, baseado na livre troca de mercadorias com o objetivo primordial de obter lucro, foi introduzido pela burguesia.
A esse sistema chamamos — capitalismo.
PARTE II
DO CAPITALISMO. . . ?
C A P Í T U L O X I V
De Onde Vem o Dinheiro?
DOIS homens esperam na fila para comprar entradas para o espetáculo. Cada um paga $9,90 por três poltronas. Ao se afastar da bilheteria, um deles se reúne a seus dois amigos. Entram no teatro, sentam-se e esperam que o pano se levante. O outro homem deixa a bilheteria, coloca-se no passeio em frente ao teatro e, com as entradas na mão, aborda os transeuntes. “Quer um lugar no centro para hoje?” — pergunta. Pode ser que acabe vendendo as entradas (por $4,40 cada) ou pode ser que não venda. Não importa.
Há alguma diferença entre os seus $9,90 e os do outro homem? Há, sim. O dinheiro do Sr. Espectador é capital, o dinheiro do Sr. Freqüentador do Teatro, não. Onde está a diferença?
O dinheiro só se torna capital quando é usado para adquirir mercadorias ou trabalho com a finalidade de vendê-los novamente, com lucro. O Espectador não queria ver o espetáculo. Pagou $9,90 com a esperança de tê-los de volta — com acréscimo. Portanto, seu dinheiro tinha a função de capital. O Sr. Freqüentador do Teatro, por outro lado, pagou seus $9,90 sem pensar em consegui-los de volta — simplesmente desejava ver o espetáculo. Seu dinheiro não tinha a função de capital.
Da mesma forma, quando o pastor vendia sua lã a dinheiro, a fim de comprar pão para comer, não estava usando esse dinheiro como capital. Mas quando o negociante pagava o dinheiro de lã com a esperança de vendê-la novamente a um preço mais elevado, usava o dinheiro como capital. Quando o dinheiro é empregado num empreendimento ou transação que dá (ou promete dar) lucro, esse dinheiro se transforma em capital. E a diferença entre vender para comprar para uso (fase pré-capitalista) e comprar para vender com objetivo de ganhar (fase capitalista).
Mas o que é que o capitalista compra para vender com lucro? Entradas de teatro? lã? carros? chapéus? casas? Não. Não é nenhuma dessas coisas, e ao mesmo tempo é parte de todas elas. Converse com um trabalhador na indústria. Ele lhe dirá que o patrão lhe paga salário pela sua capacidade de trabalhar. É a força de trabalho do operário que o capitalista compra para vender com lucro, mas é evidente que o capitalista não vende a força de trabalho de seu operário. O que ele realmente vende — e com lucro — são as mercadorias que o trabalho do operário transformou de matérias-primas em produtos acabados. O lucro vem do fato de receber o trabalhador um salário menor do que o valor da coisa produzida.
O capitalista é dono dos meios de produção — edifícios, máquinas, matéria-prima etc.; compra a força de trabalho. É da associação dessas duas coisas que decorre a produção capitalista.
Observe o leitor que o dinheiro não é a única forma de capital. Um industrial de hoje pode ter pouco ou nenhum dinheiro, e não obstante ser possuidor de grande volume de capital. Pode ser dono de meios de produção. Isso, o seu capital, aumenta na medida em que ele compra a força de trabalho.
Uma vez iniciada uma indústria moderna, ela obtém seus lucros e acumula seu capital muito depressa. Mas de onde veio inicialmente o capital — antes de começar a indústria moderna? É uma pergunta importante, porque, sem a existência do capital acumulado, o capitalismo industrial, tal como o conhecemos, não teria sido possível. Nem teria sido possível sem a existência de uma classe trabalhadora livre e sem propriedades — gente que tinha de trabalhar para os outros para viver. Como se criaram essas duas condições?
Poderíamos dizer que o capital necessário para iniciar a produção capitalista veio das almas cuidadosas que trabalharam duro, gastaram apenas o indispensável e ajuntaram as economias aos poucos. Houve sempre quem economizasse, é verdade, mas não foi dessa forma que se concentrou a massa de capital inicial. Seria bonito se assim fosse, mas a verdade é bem diversa. A verdade não é tão bonita.
Antes da idade capitalista, o capital era acumulado principalmente através do comércio — termo elástico, significando não apenas a troca de mercadorias, mas incluindo também a conquista, pirataria, saque, exploração.
Não foi em vão que as cidades-Estados italianas se prontificaram a ajudar a Europa ocidental nas Cruzadas, O término dessas guerras “religiosas” encontrou Veneza, Gênova e Pisa controlando um rico império. E os conquistadores italianos aproveitaram ao máximo sua oportunidade. Uma corrente de riqueza do Oriente para as mãos de seus comerciantes e banqueiros. Uma das melhores autoridades no assunto, John A. Hobson, disse sobre esse comércio italiano com o Oriente: “Assim, muito cedo foram lançadas as bases do comércio lucrativo que proporcionou à Europa ocidental a riqueza necessária para a posterior expansão dos métodos capitalistas de produção.”177
Se Hobson está certo, devemos então procurar o início da organização capitalista na península italiana. E ali, nos séculos XIII e XIV, e mesmo antes, é exatamente onde vamos encontrar esse início.
Mas por maior que fosse esse tesouro do Oriente, não era bastante. Um afluxo novo e maior de capital era necessário antes que a idade da produção capitalista realmente pudesse começar a existir. Foi a partir do século XVI que se começou a reunir capital em volume bastante grande para satisfazer a essa necessidade. Karl Marx, outra eminente autoridade sobre a questão da evolução do capitalismo moderno, assim a resume: “A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, escravização e sepultamento, nas minas, da população nativa, o início da conquista e saque das Índias Orientais, a transformação da África num campo para a caça comercial aos negros, assinalaram a aurora da produção capitalista. Esses antecedentes idílicos constituem o principal impulso da acumulação primitiva.”178
É verdade que Cortez e Pizarro, os conquistadores do México e Peru, eram espanhóis, e que os espanhóis são conhecidos há muito pelo tratamento impiedoso que dão às suas colônias. Mas e os holandeses? Sem dúvida seus métodos eram diferentes?
Sir T. S. Rafles, que foi Vice-Governador da ilha de Java, diz que “não”. Descreve sua história da administração colonial da Holanda como “uma das mais extraordinárias relações de traições, subornos, massacres e mesquinharias”.179 Calculou ele que os lucros da Companhia Holandesa das Índias Orientais de 1613 a 1653 foram de cerca de 640.000 florins, anualmente.
Eis um exemplo dos métodos holandeses de acumular capital. “Para conseguir Malaca, os holandeses subornaram o governador português. Ele os deixou entrar na cidade em 1641. Correram à sua casa e o assassinaram para ‘abster-se’ do pagamento de 21.875 libras, o preço da traição. Onde punham o pé, provocavam a devastação e o despovoamento. Banjuwangi, província de Java, tinha em 1750 mais de 80.000 habitantes, em 1811 apenas 18.000. Belo comércio!” 180
Assim a Holanda acumulou o dinheiro que precisava para se tornar a principal nação capitalista do século XV
Depois da Holanda, a Inglaterra era o mais importante país capitalista. Onde e como conseguiram os ingleses o capital necessário para isso? Pelo trabalho árduo, vida comedida e longa poupança? Nem pense nisso.
W. Howitt, em seu Colonization and Cbristianity, publicado em Londres em 1838, cita um colaborador do Oriental Herald que disse o seguinte sobre os britânicos na Índia:
“Nosso império não é um império de opinião, não é nem mesmo um império de leis; foi conquistado e ainda é governado... ...pela influência direta da força. Nenhum pedaço do país foi voluntariamente cedido... ...permitiram-nos a princípio desembarcar no litoral para vender nossos produtos pela fraude... ...derrubamos os antigos soberanos da terra, tomamos aos nobres todo o seu poder, e, por um saque contínuo na indústria e nos recursos do povo, tomamos deles toda a riqueza excedente e disponível.” 181
O autor disso parece irritado, não? Bem, é provável que o leitor também se irritasse, se tivesse vivido na Índia em 1769-1770. Teria visto, nesta época, milhares de nativos morrendo de fome. Por que não havia bastante arroz? Absolutamente; o arroz era abundante. Então, por que a fome? Simplesmente porque os ingleses haviam comprado todo o arroz e não se dispunham a vendê-lo — senão por preços fabulosos, que os miseráveis nativos não podiam pagar.
O comércio com as colônias trouxe riqueza à metrópole. Fez as primeiras fortunas dos comerciantes europeus. Particularmente interessante como fonte de acumulação de capital foi o comércio em seres humanos, os negros nativos da África. Em 1840 o Professor H. Merivale pronunciou uma série de conferências em Oxford sobre “Colonização e Colônias”. No curso de uma dessas conferências, formulou duas perguntas importantes, e deu-lhes uma resposta igualmente importante: “O que transformou Liverpool e Manchester de cidades provincianas em cidades gigantescas? O que mantém hoje sua indústria sempre ativa, e sua rápida acumulação de riqueza?... ...Sua presente opulência se deve ao trabalho e sofrimento do negro, como se suas mãos tivessem construído as docas e fabricado as máquinas a vapor.” 182
É moda hoje fazer pouco dos pronunciamentos dos professores. Estaria então o Professor Merivale exagerando? Não. Provavelmente havia lido a petição encaminhada à Câmara dos Comuns pelos comerciantes de Liverpool em 1788, em resposta a algumas pessoas mal orientadas que haviam tido o mau gosto de sugerir que esse comércio horrível de seres humanos vivos era indigno de um país civilizado: “Os suplicantes vêem, portam; com real preocupação, as tentativas que estão sendo feitas atualmente para obter a abolição total do comércio de escravos da África, que... ...há muitos anos vem constituindo e ainda continua a formar um ramo bem grande do comércio de Liverpool... ...Os suplicantes pedem humildemente que sejam ouvidos... ...contra a abolição dessa fonte de riqueza.”
Os portugueses começaram o comércio de escravos negros em princípios do século XVI. As outras nações civilizadas da Europa cristã seguiram-lhes imediatamente o exemplo. (O primeiro escravo negro levado para os Estados Unidos chegou num navio holandês, em 1619.) O primeiro inglês a imaginar a idéia de que podia ganhar muito dinheiro apoderando-se, pela traição, de negros africanos e os vendendo como “matéria-prima” para trabalhar até estourar nas plantações do Novo Mundo foi John Hawkins. A “Boa Rainha Bess” achou tão boa a idéia desse assassino e raptor que o fez cavalheiro após sua segunda expedição negreira. Foi portanto como Sir John Hawkins, que escolhera por brasão um negro em cadeias, que ele orgulhosamente se gabava a Richard Hakluyt de sua exploração desse tráfico inumano. Eis aqui como Halduyt reproduz as palavras de Hawkins sobre sua primeira viagem, em 1562-1563: “E além de outras coisas, que os negros eram mercadoria muito boa na Holanda, e que podiam ser facilmente obtidos na costa da Guiné, razão pela qual resolveu fazer uma experiência, e comunicou a decisão aos seus amigos de Londres... ...E todas as pessoas gostaram tanto da intenção que se tornaram contribuintes e liberais participantes da ação. Para tal objetivo arranjaram três navios imediatamente abastecidos... ...Dirigiu-se então a Serra Leoa, na costa da Guiné, onde permaneceu algum tempo, entrando na posse, em parte pela força e em parte por outros meios, de 300 negros pelo menos, além de outras mercadorias do país. Com essa carga velejou para o oceano... ...e [vendeu] o número total de seus negros: pelo que recebeu em troca tal quantidade de mercadorias que não só encheu seus três navios com couros, gengibre, açúcar e quantidades de pérolas, mas fretou ainda mais dois navios... ...E assim, com próspero êxito e muito lucro para si e para os acima mencionados aventureiros, retornou à pátria.”184
A Rainha Elisabete impressionou-se com “seu próspero êxito e muito lucro”. Quis ser sócia de quaisquer lucros no futuro. Por isso, na seunda expedição, aprestou um navio para o negreiro Hawkins. O nome desse navio era Jesus.
Comércio — conquista, pirataria, saque, exploração — essas as formas, portanto, pelas quais o capital necessário para iniciar a produção capitalista foi reunido. Não é sem razão que Marx escreveu: “Se o dinheiro... ‘vem ao mundo com uma mancha congênita de sangue numa das faces’, o capital vem pingando da cabeça aos pés, de todos os poros, sangue e lama.”185 Comércio conquista, pirataria, saque, exploração — esses os recursos eficientes. Produziram lucros enormes, somas fabulosas — um suprimento de capital que aumentava cada vez mais.
Era necessário, porém, algo mais do que o capital acumulado, antes que a produção capitalista em grande escala pudesse começar. O capital não pôde ser usado como capital — isto é, para dar lucro — enquanto não houver o trabalho necessário para proporcionar esse lucro. Portanto, era necessária também uma oferta de trabalho adequada.
No século XX, com o desemprego em toda parte, com trabalhadores ansiosos e dispostos a aceitarem qualquer emprego, é difícil compreender que houve um tempo no qual arranjar trabalhadores para a indústria constituísse uni verdadeiro problema. Parece-nos “natural” que exista uma classe de pessoas ansiosa para entrar numa fábrica, a fim de trabalhar em troca de salários. Mas isso não é absolutamente “natural”. Um homem só trabalha para outro quando é obrigado. Enquanto tiver acesso à terra, onde produzir para si, não trabalhará para mais ninguém. A história dos Estados Unidos prova isso. Enquanto houve terra barata ou de graça no Oeste, houve uma Marcha para Oeste, de gente ansiosa de terra, o que significava dificuldade de arranjar braços no Leste. A mesma coisa ocorreu na Austrália: “Quando a colônia de Swan River foi fundada o Sr. Peel levou consigo 50.000 libras e 300 pessoas das classes trabalhadoras; mas estas estavam fascinadas pela perspectiva de obter terra e em pouco tempo ele ficou sem um criado para fazer-lhe a cama, ou trazer-lhe água do rio.”186 Lamentemos o Sr. Peel, que teve de fazer sua cama simplesmente por não compreender que, enquanto os trabalhadores têm acesso aos seus próprios meios de produção — no caso, a terra — não trabalham para outra pessoa.
O que ocorre com os trabalhadores para os quais a terra é o meio de produção ocorre também para aqueles cujo meio de produção é a oficina e as ferramentas. Enquanto esses trabalhadores puderem usar suas ferramentas para fabricar artigos que possam ser vendidos por uma quantia suficiente para lhes atender as necessidades, não trabalharão para outro. Por que trabalhariam?
Somente quando os trabalhadores não são donos da terra e das ferramentas — somente quando foram separados desses meios de produção — é que procuram trabalhar para outra pessoa. Não o fazem por gosto, mas porque são obrigados, a fim de conseguir recursos para comprar alimentos, roupa e abrigo, de que necessitam para viver. Destituídos dos meios de produção, não têm escolha. Devem vender a única coisa que lhes resta — sua capacidade de trabalho, sua força de trabalho.
A história da criação de uma oferta necessária à produção capitalista deve, portanto, ser a história de como os trabalhadores foram privados dos meios de produção: “O processo que abre caminho para o sistema capitalista não pode ser senão o processo que toma ao trabalhador a posse de seus meios de produção; um processo que transformará, de um lado, os meios sociais de subsistência e produção no capital, e, do outro, os produtos imediatos em trabalhadores assalariados... ...O produtor imediato, o trabalhador, só podia dispor de sua pessoa depois de libertado do solo e depois que deixasse de ser escravo, o servo, dependendo de outrem. Para tornar-se um livre vendedor de sua força de trabalho, que leva sua mercadoria a qualquer lugar onde encontre mercado, ele precisava livrar-se antes do regime de corporações, de suas regras para aprendizes e jornaleiros, e de restrições dos regulamentos de trabalho... ...Esses novos libertos só se tornaram vendedores do próprio trabalho quando se viram destituídos de seus meios de produção e de todas as garantias de vida proporcionadas pela velha organização feudal. E a história disso, de sua expropriação, é escrita nos anais da humanidade em letras de sangue e fogo.”187
Foi na Inglaterra que o capitalismo em grande escala se desenvolveu a princípio, e por isso suas origens ali são mais evidentes. Vimos nos capítulos anteriores como o fechamento de terras e a elevação dos arrendamentos, no século XVI, expulsaram muitos camponeses de suas plantações para as estradas, onde se tornaram mendigos, vagabundos, ladrões. Assim criou-se cedo uma classe trabalhadora livre e sem propriedades.
O fechamento de terras ocorreu novamente no século XVIII e em princípios do século XIX. Foi então muito mais amplo, e dessa forma o exército de infelizes sem terra, que tinham de vender sua força de trabalho em troca de salário, aumentou tremendamente. Enquanto os fechamentos do século XVI encontraram muita resistência, não só dos prejudicados, mas também do governo, receoso de violência da parte das massas levadas à fome, os fechamentos do século XVIII foram realizados com a proteção da lei. “Leis de Fechamento” baixadas por um governo de latifundiários e para os latifundiários eram a ordem do dia. O trabalhador com terra tornou-se o trabalhador sem terra — pronto, portanto, a ir para a indústria como assalariado.
Embora o movimento de fechamento seja mais típico na Inglaterra, ocorreu em proporções menores também no continente europeu. Prova disso é a queixa seguinte dos camponeses de Cheffes, na França, feita aos seus deputados nos Estados-Gerais em 1790: “Os camponeses de Cheffes, em Anjou, tomam a liberdade de vos apresentar... ...seus desejos, necessidades e reclamações em relação às terras comuns de sua região, de que certos indivíduos, ricos e poderosos, ou ambiciosos, se apropriaram injustamente... ...A comunidade dessa aldeia foi delas privada pelo julgamento do Conselho, que se manifestou a favor dos senhores de Cheffes... ...Os camponeses só tem as ditas terras para o pastoreio do gado, e, delas privados presentemente, não têm recursos, ficando reduzidos à extrema pobreza. Um novo sistema criado pelos economistas procura fazer crer ao povo que as terras comuns não são boas para a agricultura; senhores poderosos, homens com dinheiro, se enriqueceram com os espólios das regiões invadindo suas terras comuns... ...Nada é mais precioso a certas aldeias do que as terras de pasto; sem elas, os agricultores não podem ter gado, sem gado não podem arar, e como poderão esperar boa colheita sem arar?” 187
A perda dos direitos comuns, de que se queixam esses camponeses franceses, também atingiu duramente os ingleses. Para uma boa plantação é necessário prover a manutenção de animais. Quando os camponeses perderam o direito às terras comuns, isso para eles foi um desastre. Naturalmente sentiram-se irritados contra os senhores que lhes roubavam esse direito, e contra o governo que impunha medidas para expulsá-los da terra. Seu ressentimento se evidencia nessa canção, popular na época:
As leis prendem o ladrão
Que rouba um ganso aos comuns.
Mas deixam solto o outro
Que rouba a terra do ganso.
Não se pense que os donos de terra estavam expulsando os camponesa para proporcionar uma força de trabalho à indústria. Isso jamais lhes ocorreu. Estavam interessados apenas em arrancar maiores lucros da terra. Se pudessem ganhar mais dinheiro não fechando as propriedades, não teriam fechado. Ocorria, porém, o contrário. Arthur Young, em sua viagem por Shropshire em 1776, assinala isso: “As rendas, com o fechamento, geralmente se duplicam... ...A cinco quilômetros de Daventry, perto de Bramston, foi feito um fechamento que tem apenas um ano... ...O campo aberto dava 6 a 19 xelins o acre; agora, a renda é (por arrendamento) de 20 a 30 xelins.”189
Talvez o mais impressionante exemplo de expulsão dos desgraçados trabalhadores da terra que se conheça seja o da Duquesa de Sutherland, na Escócia. Marx nos conta sua história: “Quando não há mais camponeses independentes para expulsar, começa a “limpeza” das casas; assim, os trabalhadores agrícolas não encontram no solo por eles cultivado nem o lugar necessário à sua própria casa Como exemplo do método, no século XIX, a “limpeza” feita pela Duquesa de Sutherland nos basta. Essa pessoa, conhecendo economia, resolveu transformar todo o campo, cuja população já fora, por processos semelhantes, reduzida a 15.000 habitantes, numa pastagem de ovelhas. De 1814 a 1820 esses 15.000 habitantes, cerca de 3.000 famílias, foram sistematicamente caçados e expulsos. Todas as suas aldeias foram destruídas e incendiadas, e seus campos transformados em pastagens. Soldados britânicos impuseram essa expulsão, e entraram em choque com os habitantes. Uma velha, que se recusara a abandonar sua cabana, foi queimada. Dessa maneira, a Duquesa se apropriou de 794.000 acres de terra que, desde épocas imemoriais, pertenciam ao clã.” 190
Do século XVI até princípios do século XIX, na Inglaterra, o processo de privar o camponês da terra teve continuação. Na França, cresceu a classe do pequeno camponês proprietário, mas na Inglaterra, onde o capitalismo industrial se desenvolveu mais rapidamente do que em qualquer outro lugar, o pequeno proprietário desapareceu quase totalmente. O Dr. R. Price, autor inglês do século XVIII, conta-nos o que lhe ocorreu: “Quando essa terra cai nas mãos de uns poucos grandes fazendeiros, a conseqüência é que os pequenos fazendeiros são transformados num grupo de homens que ganham o sustento trabalhando para outros... ...Cidades e indústrias aumentam, porque mais pessoas irão à procura delas, em busca de lugares e emprego... ...No todo, as circunstâncias das classes mais baixas são modificadas, para pior, sob quase todos os aspectos. De pequenos ocupantes da terra são reduzidos à condição de trabalhadores diaristas e assalariados.” 191
É uma descrição exata da situação. Expulsas da terra, “as classes mais baixas” tiveram de se tornar assalariadas, O fechamento foi, portanto, uma das principais formas de obter o necessário suprimento de mão-de-obra para a indústria.
Houve outros meios. Um deles não foi tão espetacular nem tão evidente, mas atingiu muito maior número de pessoas. Foi o próprio sistema fabril, que finalmente divorciou o trabalhador dos meios de produção na indústria, tal como já o divorciara da terra.
Nos anais da Câmara dos Comuns, relativos ao ano de 1806, o relatório da comissão nomeada para “examinar o estado da manufatura da lã na Inglaterra” afirma que “há algumas fábricas na vizinhança... ...Essas vêm sendo há algum ,tempo objeto de grande ciúme dos Tecelões Domésticos. Tem-se manifestado grande apreensão de que o sistema fabril venha a acabar gradualmente com o Doméstico; e que o pequeno Mestre Manufator independente, que trabalha por sua conta, venha a se tornar um jornaleiro, trabalhando por salário.” 192
O que nesse relatório de 1806 era “grande apreensão”, tornou:se realidade mais tarde. Podemos ver facilmente por quê. O sistema fabril, com suas máquinas movidas a vapor e a divisão do trabalho, podia fabricar os produtos com muito mais rapidez e mais barato do que os trabalhadores manuais. Na competição entre trabalho mecanizado e trabalho manual, a máquina tinha de Vencer. E venceu — milhares de “pequenos mestres manufatores independentes” (independentes porque eram donos .dos instrumentos do meio de produção) decaíram à situação de “jornaleiros, trabalhando por salário”. Muitos passaram fome durante longo tempo, antes de se resignarem, mas no fim tiveram de ceder.
Outro relatório da Câmara dos Comuns, do assistente da Comissão dos Tecelões Manuais, contêm outra prova, mostrando por que era inútil aos tecelões manuais insistirem em seus obsoletos meios de produção: “A concorrência, a grande causa da redução de salários, provocada... ...na tentativa de conquistar os fregueses vendendo mais barato do que os outros, tem provocado grandes modificações. Os negócios do tecelão, que, ajudado por sua família e outros, fabricava apenas algumas peças foi absorvido pelos grandes industriais. Muitos dos antigos mestres foram reduzidos a jornaleiros. A pobreza a isso os obrigara.” 193193
Talvez a prova mais convincente do fato de que o trabalhador manual foi liquidado pela queda dos preços provocada pela concorrência da máquina esteja nesse trecho do famoso livro de Philip Gaskell, publicado em 1836: “Desde a época da introdução da máquina a vapor, ocorreu uma extraordinária e dolorosa modificação das condições do tecelão manual, e seu trabalho bem se pode dizer que foi esmagado pela máquina a vapor... ...Os preços pagos para tecer um determinado tecido, como se vê pela tabela seguinte, mostram a depreciação extraordinária que ocorreu no valor desse tipo de trabalho:
1795 39/9
1810 15/0
1830 5/0
“Não se trata de um exemplo isolado: é um exemplo de todo trabalho ligado à indústria do tear.”194
Esse declínio nos preços pagos pelo trabalho manual nos conta a triste história. Não podendo ganhar a vida, o tecelão vendia (se possível) seu tear, seu meio de produção. O passo seguinte tinha de ser a fila, em frente da escritório de uma fábrica, à procura de trabalho. Ali se reuniam trabalhadores de outros ramos, que haviam sofrido a mesma experiência. Assim a produção mecanizada, que. não pode ser exercida sem um grande suprimento de força de trabalho, assegurou por sua própria influência esse suprimento, arruinando o trabalhador manual.
Dessa forma, começou a existir a classe trabalhadora, sem propriedades, que com a acumulação do capital torna-se essencial ao capitalismo industrial.
Quando ocorreu a revolução dos modos de produção e troca, que denominamos de modificação do feudalismo ao capitalismo o que aconteceu à velha ciência, ao velho direito, à velha educação, ao velho governo, à velha religião? Também se modificaram. Tinham de modificar-se. O direito do ano 1800 era totalmente diferente do direito do ano 1200. O mesmo ocorreu com o ensino religioso. O mundo dominado pelos comerciantes, fabricantes, banqueiros, exigiu um conjunto de preceitos religiosos diferentes dos do mundo dominado pelos sacerdotes e guerreiros. Numa sociedade em que o objetivo do trabalho era apenas conseguir um sustento adequado para si e para a família, a Igreja podia denunciar os aproveitadores. Mas numa sociedade em que o principal objetivo do trabalho era o lucro, então a Igreja tinha de adotar uma linguagem diferente. E se a Igreja Católica, engrenada numa economia feudal e manual, em que o artesão trabalhava simplesmente para viver, não podia modificar seus ensinamentos de forma bastante rápida para enquadrar-se na economia capitalista, onde o industrial trabalhava para ter lucro, então a Igreja Protestante podia. Ela dividiu-se em muitas seitas diferentes, mas em todas, e em graus variados, o capitalista interessado nos bens materiais podia encontrar consolo.
Tomemos por exemplo os puritanos. Enquanto os legisladores católicos advertiam que o caminho da riqueza podia ser a estrada do inferno, o puritano Baxter dizia a seus seguidores que se não aproveitassem as oportunidade de fazer fortuna, não estariam servindo a Deus. “Se Deus vos mostra o caminho pelo qual podeis ganhar mais, legalmente, do que em qualquer outro (sem dano para a nossa alma ou para qualquer outra) e se recusais, escolhendo o caminho menos 1ucrativo estareis faltando a uma de vossas missões, e rejeitando a orientação divina, deixando de aceitar Seus dons para usá-los quando Ele o desejar; podeis trabalhar para serdes ricos para Deus, embora não para a carne e o pecado.” 195
Ou tomemos os metodistas. Wesley, seu famoso líder, escreveu: “Não devemos impedir as pessoas de serem diligentes e frugais; devemos estimular todos os cristãos a ganhar tudo o que puderem, e a economizar tudo o que puderem; ou seja, na realidade, a enriquecer.” 196
Ou tomemos os calvinistas. A Reforma Protestante ocorreu no século XV período em que as oportunidades para acumulação de capital, tão necessária para a posterior produção capitalista em grande escala, foram maiores do que nunca. Os ensinamentos de Calvino estavam particularmente dentro do espírito da empresa capitalista. Ao passo que a Igreja Católica vira antes com suspeita o comerciante, como alguém cuja “ambição de ganho” era um pecado, o protestante Calvino escrevia: “Por que razão a renda com os negócios não deve ser maior do que a renda com a propriedade da terra? De onde vêm os lucros do comerciante, senão de sua diligência e indústria?”197
Nos Estados Unidos conhecem-se melhor os puritanos, os adeptos de Calvino que se instalaram na Nova Inglaterra. Os livros de história americana cantam louvores àquele bando disposto que tinha como objetivo na vida a glorificação de Deus. Sabemos como trabalharam para esse objetivo, levando uma vida disciplinada, na qual a poupança e o trabalho árduo eram louvados, e o luxo, extravagância e ociosidade, condenados. Vejamos isso agora de um outro ângulo. Que qualidades poderiam ser mais propícias a um sistema econômico — no qual a acumulação de riqueza; de um lado, e os hábitos de trabalho firmes, por outro, constituíam as pedras fundamentais — do que esses mesmos ideais religiosos transformados em prática quotidiana pelos adeptos de Calvino? Era melhor cristão o homem cujas atividades fossem mais adequadas à aquisição de fortuna — ao espírito do capitalismo. Uma união perfeita.
Benjamin Franklin é um exemplo destacado de pessoa em ue esse espírito estava bem vivo. Em seu Poor Richard’s Almanack colocou em frases simples e triviais a chave puritana para a melhor vida justa:
“Não houve homem glorioso que não fosse trabalhador.”
“Esperança do ganho minora a dor.”
“Mantém tua oficina e ela te manterá?”198
E no Advice to Young Tradesmen:
“Em suma, o caminho da riqueza, para quem o deseja, é tão fácil como o caminho do mercado. Depende principalmente de duas palavras, indústria e frugalidade; ou seja, não desperdice tempo nem dinheiro... Aquele que ganha tudo o que pode, honestamente, e poupa tudo o que pode, certamente se tornará rico?” 199
Esse é o espírito capitalista. Para o calvinista, tal ensinamento não era um conselho, no sentido comum, mas um ideal de conduta cristã. A melhor forma de trabalhar para a glória de Deus era colocá-lo em prática.
Da próxima vez que alguém lhe disser que é da “natureza humana” o desejo de lucro, o leitor poderá mostrar como tal desejo se transformou em natureza humana. Mostrar que a poupança e o investimento, praticamente desconhecidos na sociedade feudal, se tornaram um dever na sociedade capitalista, para a glória de Deus. Quando o século XIX teve início, “Economizar e investir tornaram-se ao mesmo tempo o dever e o prazer de uma grande classe. As economias raramente eram desfalcadas e, com a acumulação do juro composto, foi possível o triunfo material que todos hoje conhecemos. A moral, a política, a literatura e a religião da idade reuniram-se numa grande conspiração para promoção da poupança. Deus e Mamon se reconciliaram. Paz na Terra aos homens de bons recursos. O rico podia, no final das contas, entrar no Reino dos Céus — apenas se economizasse.” 200
A acumulação de capital, que veio do comércio primitivo, mais a existência de uma classe de trabalhadores sem propriedades, prenunciavam o início do capitalismo industrial. O sistema fabril em si proporcionou a acumulação de uma riqueza ainda maior. Os donos dessa nova riqueza, educados na crença de que o Reino dos Céus era deles, se economizassem e reinvestissem suas economias, empregavam novamente seu capital em fábricas. Assim, o sistema moderno, tal como o conhecemos começou a existir.
97 E Levasseur, Histoire des classes ouvriéres et de l’industrie em France avant 1789, vol. 1, p. 685. Rousseau, Paris, 1900/1901.
98 Monroe, pp. 92, 95.
99 Cantillon, Essai sur Ia Nature du Commerce en Générat, 1755.
100 Traictie de La premiére Invention das Monnoies de NicoIe Oresme et Traité de la Monnote de Copernic, publicados e anotados por M. L. Wolowaki, p. 49. Guillaumin, Paris, 1864.
102 Statutes of the Realm, op. cit., vol. III, p. 454.
103 Recueil Général, op. cit., vol. XII, parte, I, pp. 179-183.
104 Cf. W. R. Scott, The Constitution and Finance of English, Scottish and Irish Joint Stock Companies to 1720, 3 vols., vol. 1, p. 81. Cambridge , 1910-1912.
105 The Fugger News Letter. Compilação de V. Von Klarwill. Traduzido por P. de Chary, 1.ª série, 1924; 2ª série, 1926; 2ª série, nº. II. Bodley Head, Londres.
107 R. Ehrenberg, Capital and Finance in the Age of the Renaissance, p. 80. Harcourt, Brace and Company, Inc., N. York .
108 C. J. Hayes, A Political and Social History of Modern Europe, 2 vols., p. 66, nota. The Macmillan Company, N. York . Edição revista, 1921
109 In Levasseur, op. cit., vol. II p. 45.
110 Cantillon op. cit., p. 257.
111 G. Renard e G. Weulesse, Life and Work in Modern Europe (Fifteenth to Eighteenth Centuries). Alfred A. Knopf, N. York, 1926, p. 287.
112 Citado em Hayes, op. cit., p. 229.
114 A Discourse of the Common Weal of this Realm of England (1581).
116 Tudor, Economic Documents, op. cit., vol. III, pp. 386-7.
117 Cantillon. op. cit., p. 159.
118 J. E. Thorold Rogers, Six Centuries af Work and Wages, G. P. Putnam’s Sons, N. York, 1884, p. 389.
119 Urkundenbuch der Stadt Halberstadt, vol. I, p. 523, Bearbeited von G. Schmidt, Halle , 1878.
120 Bland, Brown e Tawney, op. cit., pp. 255-258.
121 Ibid., pp. 252-3
122 Citado em E. P. Cheyney , Social Changes in England in the 18th Century, Ginn and Company, Boston. 1885, p. 45
123 R. Crowley , Select Works, Introdução, p. XXII. Compilação de J. M. Cowper. Londres, 1872.
124 Cf. G. Unwin, Industrial Qrganization in the Sixteenth and Seventeenth Centuries, Clarendon Press, Oxford , 1904, p. 10.
125 W, Petty, Eeonomic Writings, vol. I, p. 260. Compilação de C. H. Hull. Cambridge University Press, 1899.
127 E. Thurkauf, Verlang und Heimarbeit in der Basler Seidenbandindustrie, Kohlhammer, Stuttgart , 1909. pp. 12-13.
128 Daniel Defoe, A Tour Thro’ The. Whole Island of Great Britain (1724-1726). Peter Davies, Londres, 1921. vol. II p. 602.
129 Defoe, op. cit., vol. I, pp. 282, 290.
130 Report on Homework in the Fabricated Metal Industry in Connecticut, State Department of Labor, Minimum Wage Division, Hartford , Connecticut , setembro de 1934.
131 Adam Smith, Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (1776), vol. I, p. 396. Methuen & Co., Londres. 1930.
132 Citado por J Viner, “English Theories of Foreign Trade Before Adam Smith”, em The Journal of Political Economy, vol. 38, junho, 1930.
134 The Fugger News Letter, op. cit., 1.ª série, n.os 176, 209.
135 Tudor Economics Documents, op. cit., p. 321.
136 T. Mun , England ’s Treasure by Foreign Trade (1664) The Macmillan Company, N. York , 1895, pp. 7-8, 52.
137 L. Memmert, Die offentliche Forderung der powerblichen Produktionsmethoden zur Zeit des Merkantilismus in Bayern, Leipizig. 1930.
138 Citado por J. Viner. op. cit., agosto, 1930, p. 417.
139 P. Boissonnade, Colbert, Riviére, Paris, 1932, p. 292.
140 Tudor Eeonomics Documents, op. cit., I, p. 249.
141 Recueil Général, op. cit., vol. 16, pp. 18-21.
142 Reeueil Général, op. cit., vol. 15, pp. 283-7.
143 T. Manley, A Discourse Showing that the Exportation of Wooll Is Destructive to this Kingdom, Londres, 1877.
144 Bland, Brown e Tawney, op. cit., pp. 670-1.
145 Citado por Charles e Mary Beard, The Rise of American Civilization, The Macmillan Company, N. York, 1933, vol. 1, p. 115. (O grifo é meu.)
145 Savary de, Bruslons, Universal Dictionary of Trace and Commerce translated from the French with Additions and Improvement by Malachy Postelthwayt, vol. II, p. 6. Londres, 1757.
148 Citado em C. J. Hayes , Essays of Nationalism, p. 31. The Macmillan Company, N. Y., 1926.
149 G. Hinrichs, Die Wollindustrie in Peussen, pp 377-8, Parey, Berlim, 1933
151 N. Bardon, A Discourse of Trade (1690). Baltimore , 1905
153 J. Trucker, Brief Essay on the Advantages and Disadvantages which Respectively Attend France and Great Britain with Regard to Trade. p. 25. Londres, 1749.
154 Ibid., p. 28
155 D. Hume, Essays, Moral, Politicalt and Literary. Organizados por T. H. Green e T. H. Grose, Londres, 1875. Ensaios originalmente publicados em 1742.
156 Cf. Renard e Weulersse, op. cit., pp. 180-182.
158 Carl Friedrichs von Baden Brieflicker Verkehr mit Mirabeau und Du Pont, vol. 1, Heidelberg , 1892, p. 27.
159 Le Mercier de la Rivière , L’Ordre Natuvel et Essentiel des Sociétes Politlques (1767), Geuthner, Paris, 1910, p. 24.
162 Ibid., vol. I, p. 407.
163 Ibid., vol. II, p. 111
165 Ibid., vol. 1. p. 19.
166 Ibid., Vol. II, p. 184.
167 C. D. Hazen, The French Revolution, vol. I, pp. 125-9. Henry Holt and Company. Inc., N. York , 1932.
168 Cf. Cambridge Modern History, vol. VIII, p. 72
169 A. de Tocqueville, The State of Society in France before the Revoltution of 1789. Traduzido para o inglês por H. Reeve. Murray, Londres. 1856. pp. 54-55.
170 Cf L. Madelin, The French Revolution, William Heinemann, Londres, 1922, p. 11.
171 A. Mathiez, The French Revolution, Alfred A. Knopf, N. York , 1928, p. 13.
173 E. J. Sieyès, Qu’Est-ce Que Le Tiers Etat? (1769). Paris , 1888
174 History of Working Class, Lesson I, Course 2. International Publishers, N. York
175 Karl Marx, O Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte (1852).
176 Ralph Broome, Strictures on Mr. Burke’s Two Letters, Filadélfia, 1797.
177 J. A. Hobson, The Evolution of Modern Capitalism. (1894). Ed. revista. Walter Scott Pub1ishing Co., Ltd., Londres, 1926, p. II.
178 Karl Marx, O Capital, vol. I.
179 Citado por Karl Marx op. cit.
180 Karl Marx. op. cit.
181 W. Howitt. Colonization and Chiistianisty, Longman, Orme, Brown, Green and Longmans, Londres, 1838, pp. 296-7.
182 H. Merivale, Lectures on Colonization and Colonies (feitas em 1839, 1840 e 1841). Oxford University Press, 1928, p. 302.
183Documents Illustrative of the History of the Slave Trade to America , Elizabeth Donnan. Carnegie Institute of Washington , 1930/2. Vol. II pp. 574-5.
184 Documents of the Slave Trade, op. cit., vol. 1, pp. 46-47.
186 Marivale, op. cit., p. 256.
187 Karl Marx, O Capital, vol. I
187 Collections de documentas Inédits sur l’Histoire Economique de la Revolution Française. Les Comités de Droits Féodaux et la Législation et l’Abolition du Régence Seigneurial, 1789-1793. Documentos publicados por P. Sagnac e P. Caren. lmprimerie Nationale, Paris, 1907.
190 Karl Marx, O Capital, vol I.
191 Ibid., vol. 1.
192 Journals of the House of Commons, 1808, vol. 61, p. 698.
194 Gaskell, Artisans and Machinery, Parker, Londres, 1836, pp. 35-38.
195 Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. Allen and Unwin, Londres, 1620, p. 162.
196 Ibid., p. 171
197 R. H. Tawney, Religion and the Rise of Capitalism. op. cit.. p. 105.
199 B. Franklin , The Way to Wealth. To which are Added his Advice to Young Tradesmen (1757), Windsor , Vt. , 1826, p. 30.
200 J. M. Keynes, A Tract on Monetary Reform, Macmillan & Co., Ltd., Londres, 1923, p. 7.