O que fez o Brasil Brasil cap 5, 6,7, 8 e final

O que fez o Brasil Brasil

Capítuos 5, 6, 7 e 8 e final

 Capítulo 5

O carnaval, ou o mundo  como teatro e prazer

Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos,
trabalho e festa, corpo e alma, coisas dos homens e assunto dos
deuses, períodos ordinários — onde a vida transcorre sem problemas
— e as festas, os rituais, as comemorações, os milagres e as ocasiões
extraordinárias, onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma,
posição, perspectiva, ângulo...
Vivemos sempre entre esses momentos, como passageiros que
estão saindo de um evento rotineiro para a ocorrência fora do
comum que, por sua vez, logo pode tornar-se novamente rotineira e
fazer parte da paisagem do nosso irreflexivo cotidiano.
A viagem da rotina para o extraordinário, porém, depende de
uma série de fatores. Ela pode variar de sociedade para sociedade e
pode ser realizada tanto coletiva quanto individualmente. Nossa
biografia se faz precisamente pela alternância de situações que foram
esquecidas com situações que “guardamos” como tesouros ou
cicatrizes em nossa cabeça e que formam o que denominamos
“memória”. De fato, tal idéia traduz, de maneira muito precisa,
essa verdadeira dialética entre o que é lembrado com saudade
como maravilhoso, formidável ou poético, ao lado de tudo que foi
vivido como doloroso, trágico e ruim (aquilo que na nossa existência
entra como extraordinário, positiva ou negativamente valorizado), e
os outros eventos que simplesmente não são lembrados, perdendo-se
nas sombras do passado e do tempo vivido e jamais recuperado. Há,
pois, um tempo lembrado, que vira memória e saudade; e um tempo
simplesmente vivido, que se vai e morre na distância do passado.
As sociedades e os grupos fazem coisas parecidas. E a memória
social (isso que vulgarmente se chama “tradição” ou “cultura”),
que é sempre feita de uma história com H maiúsculo, é também
marcada por meio desses momentos que permitem alternâncias
certas entre o que foi concebido e vivido como rotineiro e habitual e
tudo aquilo que foi vivenciado como crise, acidente, festa ou
milagre. Pois o homem é o único animal que se constrói pela
lembrança, pela recordação e pela “saudade”, e se “desconstrói”
pelo esquecimento e pelo modo ativo com que consegue deixar de
lembrar.
No Brasil, como em muitas outras sociedades, o rotineiro é
sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a
obrigações e castigos... a tudo que se é obrigado a realizar; ao passo
que o extra-ordinário, como o próprio nome indica, evoca tudo que
é fora do comum e, exatamente por isso, pode ser inventado e
criado por meio de artifícios e mecanismos. Cada um desses lados
permite “esquecer” o outro, como as duas faces de uma mesma
moeda. E, no entanto, os dois fazem parte e constituem expressões
ou reflexões de uma mesma totalidade, uma mesma coisa. Ou
melhor: tanto a festa quanto a rotina são modos que a sociedade
tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver a
sua “alma” ou o seu coração. Na nossa sociedade, temos grande
consciência dessa alternância, de tal modo que a vida, para a
maioria de nós, se define sempre pela oscilação entre rotinas e festas,
trabalho e feriado, despreocupações e “chateações”, dias felizes e
momentos dolorosos, vida e morte, os dias de “dureza” e “trabalho
duro” do mundo “real” e os dias de alegria e fantasia desse “outro
lado da vida” constituído pela festa, pelo feriado e pela ausência de
trabalho para o outro (o patrão, o Governo, o chefe, o dono do
negócio etc). Realmente, na festa, comemos, rimos e vivemos o mito
ou utopia da ausência de hierarquia, poder, dinheiro e esforço físico.
Aqui, todos se harmonizam por meio de conversas amenas e, na
construção da festa, a música que congrega e iguala no seu ritmo e
na sua melodia é algo absolutamente fundamental no caso brasileiro.
No trabalho, porém, estamos martelando e construindo, batendo
massa ou “batendo perna” para a companhia, para a família, para
a mulher e os filhos, “para a honra da firma” ou de alguma coisa que
efetivamente exige o nosso sacrifício. Para nós, brasileiros, a festa é
sinônimo de alegria, o trabalho é eufemismo de castigo, dureza, suor.
O trabalho sempre indica a idéia (ou ideal) da construção do
homem pelo homem. Um controle da vida e do mundo pela
sociedade. Todas as rotinas produtivas, sobretudo nas sociedades
protestantes e plenamente industrializadas, são marcadas pela
previsão e pela racionalidade. Há um mínimo de interferência de
fatores internos (as emoções de quem trabalha são inteiramente
controladas) e externos (o tempo e o espaço são igualmente
mapeados com grande precisão, de modo que o local de trabalho
fica longe da casa. É algo produzido para o próprio trabalho, como
uma fábrica ou usina...).
Até mesmo no caso da produção agrícola, ocorre essa
diagramação, de modo que a tentativa é sempre de criar uma
seqüência onde o controle é total. Não deve haver surpresas, não
deve haver acidentes, não deve haver coisa alguma de
extraordinário, exceto, obviamente, o aumento da produção.
Quando ocorre algo que não diga respeito a esse fator, então foi
porque um acidente ocorreu. E os acidentes aqui são medidos e
estudados dentro da ideologia de segurança e controle que preside
a todo triunfo da economia no nosso sistema. De fato, dentro dessa
perspectiva, pode-se até mesmo dizer que o grande acidente que
hoje atinge uma fábrica é a greve; ou seja, o extraordinário criado
por um dos fatores de produção, a força de trabalho...
Na sociedade industrial, a ausência de movimento é sintoma de
mal-estar social. O acidente — aquilo que não foi planejado ou
previsto — é também sinal de que algo está indo mal. Apesar de
todas as medidas contra o extra-ordinário, contra o acidente e
contra a coincidência negativa, porém sabemos que ela acontece. A
palavra catástrofe, que tanto usamos para definir tais situações,
significa precisamente “reviravolta”, de modo que é perfeita para
esses casos. Aqui, conforme estamos percebendo, estamos diante
de extraordinários não-planejados e não-previstos pela sociedade.
Escapando do seu controle consciente, esses eventos surgem como
tragédias que nos atingem, como catástrofes que colocam em causa
nossa capacidade de organização e nossa possibilidade de
sobrevivência como coletividade. Furacões, tempestades, enchentes,
terremotos, pestes, inundações e coisas do gênero são situações fora
da rotina, mas são situações não-planejadas. Quando o mundo é
vivido desse modo, ele deixa de fazer o sentido comum, dando a
impressão de que está no fim. É a reviravolta do Dia do Juízo,
podemos pensar. Mas é preciso acentuar que tais situações também
promovem o encontro e a solidariedade entre os homens. De fato,
diante da revolta imensa da natureza, todos podem unir-se fora de
suas posições sociais e políticas rotineiras e, assim fazendo, podem
encontrar-se como irmãos de infortúnio, ou seres humanos fazendo
face à tremenda indiferença da natureza em relação à sociedade, e
não mais como patrões e empregados, ricos e pobres, homens e
mulheres, oprimidos e opressores...
Ao lado, porém, desses extra-ordinários que são acidentais, que
ninguém desejou e que não foram planejados pela sociedade,
existem momentos especiais que o próprio grupo planeja, constrói,
inventa e espera. Ambos, é claro, constroem a memória da
sociedade, mas são os segundos que servem como as verdadeiras
roupagens pelas quais a sociedade cria e recria sua identidade social
e suas tradições. O momento fora do comum que é planejado e tem
tempo marcado para acontecer, portanto, é um espelho muito
importante pelo qual a sociedade se vê a si mesma e pode ser vista
por quem quer que deseje conhecê-la.
Todos os sistemas constroem suas festas de muitos modos. No
caso do Brasil, a maior e mais importante, mais livre e mais criativa,
mais irreverente e mais popular de todas é, sem dúvida, o carnaval.
Aliás, nessa festa, a própria definição já perturba, pois exclui de modo
sistemático todos os elementos que nenhuma festa pode dispensar e
que são importantes para o seu próprio desenrolar. Quero referir-me a
todos os elementos de ordem, de economia e política que o carnaval
certamente implica — como todo evento especial —, mas que ficam
necessariamente excluídos de sua definição. De fato, conforme
sabemos como brasileiros, o carnaval não pode ser sério. Senão não
seria um carnaval...
Mas como definir o carnaval? Não seria exagero dizer, é uma
ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e, por causa
disso, um momento extraordinário é inventado. Ou seja: como toda
festa, o carnaval cria uma situação em que certas coisas são
possíveis e outras devem ser evitadas. Não posso realizar um carnaval
com tristeza, do mesmo modo que não posso ter um funeral com
alegria. Certas ocasiões sociais requerem determinados sentimentos
para que possam ocorrer como tais. Tragédias são definidas como
eventos tristes e tudo que nelas ocorre de cômico deve ser inibido ou
simplesmente ignorado. Carnavais e comédias, ao contrário, são
episódios em que o triste e o trágico é que devem ser banidos do
evento, como as roupas do rei que estava nu e não podia ser visto
como tal...
Mas como é que o povo define e vê o Brasil no carnaval? Qual a
receita para o carnaval brasileiro?
Sabemos que o carnaval é definido como “liberdade” e como
possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria,
trabalho, obrigações, pecado e deveres. Numa palavra, trata-se de
um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e
castigo. É, no fundo, a oportunidade de fazer tudo ao contrário:
viver e ter uma experiência do mundo como excesso — mas agora
como excesso de prazer, de riqueza (ou de “luxo”, como se fala no
Rio de Janeiro), de alegria e de riso; de prazer sensual que fica —
finalmente — ao alcance de todos. A “catástrofe” que o carnaval
brasileiro possibilita é a da distribuição teórica do prazer sensual para
todos. Tal como o desastre distribui o malefício ou a infelicidade para
a sociedade, sem escolher entre ricos e pobres, como acontece
normalmente, o carnaval faz o mesmo, só que ao contrário. O Rei
Momo, Dionísio, o Rei da Inversão, da Antiestrutura e do
Desregramento, coloca agora uma possibilidade curiosa e, por isso
mesmo, carnavalesca e impossível no mundo real das coisas sérias e
planificadas pelo trabalho. E que ele sugere um universo social onde a
regra é praticar sistematicamente todos os excessos!
Entre nós, brasileiros, realizar isso é poder descobrir que o
carnaval é percebido como algo que vem de fora, como uma
onda irresistível que nos domina, controla e, melhor ainda, seduz
inapelavelmente. Algo que chega até nós periodicamente sem que
haja possibilidade de resistir. É também descobrir que, por causa disso
mesmo, todos são iguais — ou podem ser iguais — perante o carnaval.
Desse modo, o carnaval, com suas regras de inversão, fica como que
deslocado da realidade cotidiana, podendo ser vivido como algo de
fora e, daí, como algo que surge como uma regra ou lei natural que
teria validade para todos, independentemente de sua posição na
estrutura social. Ou apesar dela... Ou por causa dela...
Mas que é isso que o carnaval consegue fazer com o Brasil? Que
extraordinário é esse que chamamos coletivamente de carnaval?
Penso que o carnaval é basicamente uma inversão do mundo.
Uma catástrofe. Só que é uma reviravolta positiva, esperada,
planificada e, por tudo isso, vista como desejada e necessária em
nosso mundo social. Nele, conforme sabemos, trocamos a noite pelo
dia; ou, o que é ainda mais inverossímil: fazemos uma noite em pleno
dia, substituindo os movimentos da rotina diária pela dança e pelas
harmonias dos movimentos coletivos que desfilam num conjunto
ritmado, como uma coletividade indestrutível e corporificada na
música e no canto. No carnaval, trocamos o trabalho que castiga o
corpo (o velho tripalium ou canga romana que subjugava escravos)
pelo uso do corpo como instrumento de beleza e de prazer. No
trabalho, estragamos, submetemos e gastamos o corpo. No carnaval,
isso também ocorre, mas de modo inverso. Aqui, o corpo é gasto
pelo prazer. Daí por que falamos que “nos esbaldamos” ou
“liquidamos” no carnaval. Aqui, usamos o corpo para nos dar o
máximo de prazer e alegria...
Pela mesma lógica, o carnaval permite a troca e a substituição
dos uniformes pelas fantasias. Sabemos que o uniforme (como todas
as vestes formais do mundo diário) cria a ordem. O uniforme é uma
roupa que “uniformiza”, isto é, faz com que todos fiquem iguais,
sujeitos a uma mesma ordenação ou princípio de governo. Mas a
fantasia permite a invenção e a troca de posições. Note-se que, no
Brasil, não falamos em máscaras, mas em fantasias. O nosso termo é
mais abrangente em pelo menos dois sentidos muito precisos. Primeiro,
ele diz mais do que algo que serviria apenas para tapar ou disfarçar o
rosto ou o nariz. Depois, porque a palavra “fantasia” tem duplo
sentido. É algo em que se pode pensar acordado, o sonho que se
tem quando a rotina mais nos escraviza e revolta; e também a roupa
que só se usa no carnaval ou para uma situação carnavalizadora.
Assim, ela permite que possamos ser tudo o que queríamos, mas que a
“vida” não permitiu. Com ela — e jamais com o uniforme —,
conseguimos uma espécie de compromisso entre o que realmente
somos e o que gostaríamos de ser. O uniforme achata, ordena e
hierarquiza. A fantasia liberta, des-constrói, abre caminho e promove
a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite e
ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que
o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e
dos preconceitos estabelecidos. Ê a fantasia que permite passar de
ninguém a alguém; de marginal do mercado de trabalho a figura
mitológica de uma história absolutamente essencial para a criação
do momento mágico do carnaval. Se no mundo diário estamos todos
limitados pelo dinheiro que se ganha (ou não se ganha...), pelas leis
da sociedade, do mercado, da casa e da família, no carnaval e na
fantasia temos a possibilidade do disfarce e da liberação. Há a
possibilidade de virar onipotente e ser tudo o que se tem vontade.
Ora, é precisamente por estar vivendo num mundo assim constituído,
onde as regras do mundo diário estão temporariamente de cabeça
para baixo, que posso ganhar e realmente sentir uma incrível
sensação de liberdade. Sensação de liberdade que me parece
fundamental numa sociedade cuja rotina é dominada pelas
hierarquias que sujeitam a todos a uma escala complexa de direitos e
deveres vindos de cima para baixo, dos superiores para os inferiores,
dos “elementos” que entram na fila e das “pessoas” que jamais são
vistas em público como comuns.
Realmente, se no mundo diário somos governados pelo ditado
e pela lógica social que diz “cada macaco no seu galho” e também
“um lugar pra cada coisa, cada coisa em seu lugar”, no carnaval
criamos um cenário e uma atmosfera social onde tudo isso pode ser
trocado de lugar, invertido e subvertido pelas leis que comandam o
reinado de Momo. Não é por simples acaso que chamamos o
carnaval e a cena carnavalesca de “loucura”! O termo loucura aqui
surge porque, no carnaval, tudo estaria fora de lugar —
carnavalizado, como diz Bakhtin, que introduziu esse conceito no
estudo das manifestações do carnaval europeu para exprimir
intelectualmente suas múltiplas vozes e textos. De fato, no caso do
Brasil, andamos pelas ruas do centro comercial de nossas cidades
com a roupa que queremos e em pleno dia, sem a menor
preocupação de sermos atropelados ou vistos por nossos patrões,
pais ou amigos aristocráticos. Muito pelo contrário, ao sermos vistos,
eles é que correm o risco de serem seduzidos pela nossa investida
carnavalesca. Comemos e bebemos nas ruas, trocando a casa pelo
mundo público e ali realizando ações que são banidas do mundo
social aberto. Dormimos no asfalto, em plena rua: local perigoso e
maldito, com seu cotidiano cruel e movimentado, mas
estranhamente pacífico e seguro no carnaval. Podemos até mesmo
fazer amor com proteção oficial e policial, pois Governo e polícia,
que durante todo o ano nos cobrem de impostos e compostura,
agora nos defendem e compreendem com simpatia o nosso desejo e
a nossa humanidade carnavalesca, ou melhor, protegida pelo
carnaval. No carnaval nós cantamos e nos harmonizamos,
movimentando nossos corpos em ritmos acasalados, em vez de
reclamar, discursar ou escrever. Aqui, a mensagem deixa de ser
importante e o que vale é também o canto pelo canto, a música
pela música, a alegria pela alegria. Como os fogos de artifício que
explodem para o deleite dos olhos, o discurso carnavalesco está
também auto-referenciado. Todos podemos, assim, virar poetas. Além
disso, o carnaval obriga a uma grave sinceridade. Não se pode
freqüentar o carnaval sem vontade. De fato, posso ir a uma cerimônia
oficial, como uma formatura, posse ou casamento, sem sentir nada,
até mesmo achando tudo aquilo aborrecido e maçante. Mas não
posso fazer o mesmo se vou a um baile de carnaval, onde corpo e
alma devem estar juntos e serei punido se me mostrar “bemcomportado”.
No carnaval, nós, brasileiros, cantamos e, geralmente,
podemos fazer o que cantamos, o que permite que as pessoas se
olhem e, subitamente, se vejam em sua unidade como “pessoas” e
em sua diversidade como membros de uma comunidade social e
politicamente diferenciada. O diverso, o diferente — o universo da
individualidade —, que é tão temido na vida diária, é moeda corrente
no carnaval, onde todos podem surgir como indivíduos e como
singularidade, exercendo o direito de interpretar o mundo do seu
“jeito” e a seu modo. Igualmente, a crítica social, que pode dar em
prisão e censura, é realizada abertamente, tanto quanto a
competição, que todos temem como algo monstruoso, mas é
também aceita em todos os carnavais brasileiros, feitos de inúmeros
concursos. De fato, essa competição é tão aberta que há
competição para tudo: músicas, fantasias, maior capacidade de
exibir-se e, naturalmente, a disputa dos blocos e escolas de samba,
sobretudo no caso do Rio de Janeiro. Aqui, o mundo fica mesmo de
cabeça para baixo. Não somente porque as “escolas” são de gente
pobre e que vive nos morros e subúrbios do Rio, zonas que
congregam a massa dos subempregados locais, mas talvez por
estarmos aqui para assistira um monumental concurso público, a uma
fantástica competição onde tanto os jurados oficiais quanto o
público em geral conhecem todas as regras e todos os meios de
perder e vencer. Coisa do outro mundo? Algo extraordinário? Claro
que sim. Numa sociedade que jamais vive a si mesma como um jogo
ou concurso em que as pessoas podem mudar de lugar pelo próprio
desempenho, tudo isso é fora do comum. Basta observar que nós,
brasileiros, somos um povo marcado e dividido pelas ordens
tradicionais: o nome de família, o título de doutor, a cor da pele, o
bairro onde moramos, o nome do padrinho, as relações pessoais, o
ser amigo do Rei, Chefe Político ou Presidente. Tudo isso nos classifica
socialmente de modo irremediável. Jamais utilizamos o concurso
público e a competição como algo normal entre nós, daí o trabalho
que é fazer uma eleição honesta e disputada. Ela implica, inclusive,
algo que evitamos: dar opiniões e disputar vontades, revelando
abertamente as nossas mais legítimas (e ocultas) diferenciações
sociais. Mas que coisa milagrosa! Agora, em plena festa
carnavalesca, podemos finalmente nos abrir para as nossas aspirações
e associações, revelando legitimamente os nossos desejos e vontades.
É o que faz esse concurso de escolas de samba que, sabemos, só
pode ser ganho no pé. Na base do desempenho, do élan e da
vontade de vencer. Aqui, os apadrinhamentos são policiados e o
povo age como jamais pode realmente operar: como juiz supremo
que conhece as regras do jogo e as aplica com gana e justiça.
Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade
marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem
horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que permite trocar
efetivamente de posição social. É exibição numa ordem social
marcada pelo falso recato de “quem conhece o seu lugar” — algo
sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as
situações. É feminino num universo social e cosmológico marcado
pelos homens, que controlam tudo o que é externo e jurídico, como
os negócios, a religião oficial e a política. Por tudo isso, o carnaval é a
possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na
estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria,
à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos
perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu
justo e exato oposto...






Capítulo 6

As festas da ordem

As festas permitem descobrir oscilações entre uma visão alegre e
uma leitura soturna da vida. Permitem igualmente inventar
temporalidades diferenciadas, pois promovem uma duração muito
rápida — com tudo podendo acontecer no momento da festa,
como é o caso do carnaval — ou muito lenta e pesada, como
acontece com quase todos os rituais da ordem, ou formalidades.
Todas as festas — ou ocasiões extraordinárias — recriam e resgatam o
tempo, o espaço e as relações sociais. Nelas, aquilo que passa
despercebido, ou nem mesmo é visto como algo maravilhoso ou
digno de reflexão, estudo ou desprezo no quotidiano, é ressaltado e
realçado, alcançando um plano distinto. Assim, é na festa que
tomamos consciência de coisas gratificantes e dolorosas. Que não
podemos comparecer porque não somos da mesma classe social;
que não podemos desempenhar papel importante porque não somos
daquela corporação; que somos bons dançarinos e que valsamos
com graça e leveza, pois na festa alguém assim nos disse; que aquela
moça é realmente linda porque assim se apresentou no baile de
formatura; que nosso amigo é excelente orador porque foi a festa
que o destacou como tal. Como se observa, são inúmeras as
situações em que a festa promove a descoberta do talento, da
beleza, da classe social, do preconceito e da alegria. Não seria
possível esgotá-las. Mas posso distinguir, e assim devo proceder, as
festas da ordem daquelas que promovem a “desordem” ou a orgia,
que fica no limite do crime e da revolta.
Sustento que, no caso brasileiro, todas as solenidades permitem
ligar a casa, a rua e outro mundo. Só que cada uma delas faz essa
ligação de modo específico e a partir de posições diferentes. O
carnaval liga casa, rua e outro mundo querendo e propondo a
abertura de todas as portas e de todas as muralhas e paredes. Os ritos
cívicos e religiosos — as festas da ordem por excelência — fazem o
mesmo, mas suas propostas são diferentes. De fato, nos carnavais e
orgias, o propósito básico parece ser o de igualar e juntar. Seu
objetivo é abolir todas as diferenças, ou pelo menos foi assim que viu
Bakhtin nas sociedades hierarquizadas. Mas no caso das festas da
ordem, ou seja, das formalidades sociais em que se celebram as
relações sociais tal como elas operam no mundo diário, as diferenças
são mantidas. Aqui, ao contrário do carnaval, o que se está
celebrando é a própria ordem social, com suas diferenças e
gradações, seus poderes e hierarquias. Não se deseja virar o mundo
de pernas para o ar, colocando-o de cabeça para baixo, mas o que
se pretende é precisamente celebrar o mundo tal como ele é no
quotidiano. Daí por que, em outro lugar (no meu livro Carnavais,
malandros e heróis), chamei os carnavais de “ritos de inversão” e os
festivais da ordem de “ritos de reforço”. Minha idéia era salientar essas
propriedades estruturais de um e outro momento solene: o carnaval
promovendo a igualdade e a supressão de fronteiras, e as festas
cívicas e religiosas promovendo a sua glorificação e manutenção.
Desse modo, os rituais religiosos partem de igrejas e locais
sagrados, pretendendo ordenar o mundo de acordo com os valores
que são ali articulados como os mais básicos. O mundo de Deus —
representado pela Igreja Católica e pelas formas de religiosidade que
a ela se referem — é um universo onde as coisas se ordenam de modo
plenamente vertical. De cima para baixo e de baixo para cima. Com
Deus, a Virgem Maria, os santos, os anjos, os mártires, os beatos, os
sacerdotes e os fiéis formando uma cadeia: do altar-mor, onde essa
verticalidade está instituída, até o adro da igreja, onde as pessoas se
espalham, misturando o profano com o sagrado. Aqui, a ordem é
paradoxalmente salientada e ao mesmo tempo negada, pois —
conforme sabemos — a Igreja declara explicitamente que seu reino
não é deste mundo, mas do outro. E Deus, os santos e a Virgem
podem interceder e agraciar com sua ajuda qualquer pessoa. Eles
são patrocinados pelas igrejas, mas a Igreja (ou igrejas) não os possui
nem pode controlar suas ações. Ela pode interpretá-los, mas suas
vozes têm códigos próprios que a própria Igreja pode desconhecer,
embora deva saber reconhecer. Desse modo, o espaço religioso
demarca uma área onde é possível encontrar o rico e o pobre, o
poderoso e o fraco, o sadio e o aleijado, o homem e a mulher, o
adulto e a criança, o santo e o pecador, o crente fervoroso e o
freqüentador esporádico e distante.
O patrocínio ou patronagem dos santos e deuses cria essas
regiões neutras, mas hierarquicamente ordenadas, onde existe uma
espécie de carnaval devoto ou terra de ninguém, já que todos
podem encontrar-se com todos dentro desse espaço. Mas é preciso
acentuar que essa carnavalização (ou troca de lugar) nada tem a ver
com excessos ou com a possibilidade de virar o mundo de cabeça
para baixo. Ao contrário, nos ritos da ordem em geral, e nos rituais
religiosos em particular, o comportamento é marcado pela contrição
e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e
verbais. O corpo, então, na Igreja e nas solenidades da ordem é
marcado pela rigidez dos gestos e por formas obrigatórias de
gesticulação. São maneiras de marcar a contenção e de promover a
uniformidade e a tranqüila obediência dos fiéis ou servidores, já que
tudo isso conduz a uma visão ordenada da própria ocasião formal.
Também é possível que tais formas de ritualização pretendam
assegurar o respeito a qualquer preço, pois a contenção do corpo
significa, de certo modo, a liberdade do espírito, que pode ou não
estar presente com a mesma convicção na solenidade. Assim, eu
posso estar ajoelhado numa igreja, mas ter meu espírito, muito longe
dali, o que no caso de um ritual orgiástico é impossível, dada a
solicitação em que o corpo e o espírito estão implicados. De fato,
num almoço com os amigos ou num baile de carnaval, não posso
deixar de me envolver. A festa carnavalesca requer tudo de mim:
meu corpo e minha alma, minha vontade e minha energia. Mas as
festas da ordem parecem dispensar essa motivação totalizada. Daí,
talvez, essas regras rígidas de contenção corporal, verbal e gestual
nos ritos da ordem.
O poder do sagrado, conforme dizia o sociólogo francês Émile
Durkheim, é um poder que permite distinguir o mundo diário, com
suas rotinas automáticas e que tendem a uma inércia e uma
indiferenciação cada vez maiores, esse sistema de coisas que eram
chamadas de “profanas”, das coisas e do universo de Deus e do Alto.
Para separar um dos outros, nada melhor que os sinais de respeito e
de contenção física e social: andar na ponta dos pés, falar baixinho,
usar uma linguagem diferente — exótica ou morta, como o latim ou o
hebraico —, vestir roupas especiais também antigas ou totalmente
diferentes dos costumes do mundo diário — roupas que transformam
o masculino em algo ambíguo ou o feminino em alguma coisa neutra.
A leitura da sociedade facultada pelos ritos da ordem, então, é
uma leitura onde o corpo deve ser contido ou até mesmo
neutralizado. A continência militar é excelente exemplo disso, pois os
ritos da ordem incluem também as grandes comemorações militares,
como as paradas — que são formas típicas de comemoração social
em que o universo da sociedade é lido ou apresentado a partir do
código do Estado na sua vertente mais forte, mais ordenada e, talvez
por isso mesmo, mais patriótica: a de suas Forças Armadas, que
desfilam em saudação formal às autoridades constituídas. De acordo
com isso, lembro que a palavra “continência” significa um ato cujo
sentido profundo é precisamente o de conter-se, controlar-se,
dominar-se...
Tudo isso é salientado com precisão em todos os ritos da ordem
— sejam cívicos ou religiosos — onde a idéia de sacrificar o corpo (um
centro de prazer dado imediatamente pela experiência humana)
pela pátria, por Deus ou por um partido político acaba se exprimindo
pela noção de dever, de devoção e de ordem. O que contrasta
tremendamente com os rituais carnavalescos, onde ocorre
exatamente o oposto, já que no carnaval os valores salientados são
o prazer pelo corpo (daí sua capacidade igualitária e grotesca) e,
com isso, a desordem obtida através dele, que conduz a uma radical
transformação, temporária mas intensa, da estrutura social.
Nas festas da ordem, a ênfase é sempre colocada na ordem,
na, regularidade, na repetição, na marcha ordeira, no cântico
cadenciado, no controle do corpo que, repito, remete à idéia de
sacrifício e disciplina, esses dois ingredientes básicos da promessa.
Aqui, o mundo é englobado e apresentado pelas posições sociais
que a sociedade considera importantes. Seu foco é nas autoridades:
de Deus, Pátria, Saúde, Educação e Instrução. Nisso, eles revelam,
ampliando,as diferenciações sociais já existentes no mundo diário,
onde as pessoas efetivamente se distinguem por meio de cadeias
hierárquicas que indicam e revelam sua importância na reprodução
da ordem social conhecida. Desse modo, se uma pessoa é
presidente, governador, senador, deputado, secretário, juiz ou
professor, é exatamente assim que deve aparecer nos ritos da ordem.
Pela mesma lógica e seguindo o mesmo princípio do reforço e da
ampliação, se a pessoa não tem qualquer autoridade ou posição
social e faz parte daquilo a que chamamos genericamente “povo”,
é deste lado que deve ficar. Entre autoridades e povo, nessas
ocasiões solenes e formais, há uma clara divisão. Seja uma cerca, seja
um espaço vazio, seja um palanquim ou outra construção qualquer
que permita imediatamente saber quem é quem, pois os ritos da
ordem não admitem a confusão de papéis ou posições. Tais
distinções ocorrem até mesmo nas grandes procissões, onde uma
grossa corda separa o santo (ou santa) e as autoridades eclesiásticas,
civis e militares que estão em sua volta, geralmente carregando juntas
o andor, do povo em geral, que está ao redor e que forma um
oceano generalizado de devotos que se misturam. Foi por perceber
esse centro tão ordenado e esse “resto” tão carnavalescamente
desordenado, que eu já afirmei anteriormente que aqui tínhamos
uma estrutura de “tipo cometa”. Algo que possuía um centro
voltado para a ligação formal entre o céu e a terra, mas por meio
das autoridades constituídas, que, por sua vez, se ligavam ao povo
em geral na forma de uma bela, se não contundente, dramatização
da hierarquia e da autoridade. Daí por que, nas procissões, o povo
força a corda para passar para o lado das autoridades e para perto
do santo. De fato, “pular a corda” ou passar por ela significa, nesse
contexto simbólico, uma mudança significativa de posição social.
Se os ri tos da desordem promovem temporárias
desconstruções ou re-arrumações sociais, os ritos da ordem marcam
de forma taxativa quem é ator e quem é espectador. Aqui não há a
menor possibilidade de trocar de lugar, exceto — é claro — pela
quebra do protocolo. E realmente a palavra protocolo revela esse
código rígido que todos devem seguir para que o cerimonial possa
“dar certo”. Ou seja: para que o ritual possa ser um momento
coerente de ordem perfeita e sem aquelas dissonâncias que o
mundo diário é mestre em nos apresentar. É, justamente, esse resgate
da ordem que tais rituais pretendem realizar por meio dessas
dramatizações.
Daí, certamente, a associação entre cerimonial e poder. É que
o ritual reveste o poder, dando-lhe uma forma exterior solene e
legítima. De modo que todos os rituais sempre assumem a forma
básica de um desfile, procissão ou parada militar — formas de
apresentação social desinibida e exuberante, onde as corporações
que passam e se apresentam revelam-se em todo o seu esplendor ou
miséria. No Brasil, significativamente, usamos a palavra desfile para o
caso do carnaval, parada para as comemorações cívicas ligadas à
nossa Independência e procissão para as festividades religiosas. Todas
elas têm sempre um ponto de partida formalizado e preestabelecido
e um ponto de chegada igualmente fixado. Nas procissões, como
nas paradas militares, a partida é um centro físico e social de
autoridade e poder religioso ou militar: uma igreja ou quartel. Seu
roteiro, por outro lado, marca uma área onde se sacraliza um dado
espaço da cidade que, por isso mesmo, acaba se tornando nobre ou
sagrado. É um espaço que deve ficar aberto ao ritual e, em
conseqüência, fechado às atividades de rotina do mundo diário. No
caso do Rio de Janeiro, cidade que vou tomar como exemplo, as
paradas militares quase sempre se realizam em frente ao Panteão do
Exército Nacional, local situado em frente ao Ministério da Guerra,
onde estão sepultados os restos mortais do Duque de Caxias, patrono
do Exército Brasileiro e das Forças Armadas em geral. Não poderia
existir local mais sagrado que esse, em termos da nossa História. Além
disso, o desfile militar apresenta uma dramatização da guerra — do
mesmo modo que a procissão dramatiza as hierarquias celestes. De
fato, no desfile, os soldados se apresentam com suas armas,
comandados por seus superiores, mas de modo rigorosamente
ordeiro. Dão uma demonstração de obediência, disciplina e ordem,
como a revelar a sua disposição de cumprir seu dever de defender
a Pátria a qualquer custo, se isso for realmente necessário. Todos os
Estados nacionais modernos têm essas formas de desfile, embora
apresentem importantes variações que denunciam diversidades
políticas e sociais significativas. Por exemplo, o dia da pátria nos Estados
Unidos é uma festa pública, sem dúvida, mas que raramente é
comemorada com um desfile ou parada militar. Lá, sua forma mais
comum de celebração são os piqueniques realizados por famílias que,
juntas, vão para os parques e jardins das cidades acenar bandeiras,
disparar foguetes ou simplesmente comer e calmamente conversar.
No caso brasileiro, as paradas militares são ponto importante
daquilo que denominei "triângulo ritual". De fato, na nossa sociedade
temos o desfile militar para as autoridades, ou melhor, como rito
destinado a celebrar a relação do Estado com o povo. Temos as
procissões que focalizam as relações dos homens com Deus através da
Igreja. E temos, finalmente, o desfile do carnaval, que faz o povo ser ao
mesmo tempo espectador e ator. Em todos os casos, a sociedade
celebra aquilo que certamente considera fundamental para a sua
estrutura social e — o que é interessante apontar no caso brasileiro —,
para cada instituição importante, há um lugar e uma forma dramática
de apresentação ritual. Temos, então, numa fórmula muito simplificada:
o Estado com seu poder visitando o povo; Deus e os seus santos saindo
da esfera sagrada para também visitarem o mundo profano das
cidades; e, finalmente, o povo apresentando-se a si mesmo como
alegre, forte, galante, elegante e luxuoso nos desfiles carnavalescos.
Nada me parece mais funcional que essa forma de vivenciar os valores.
Mas os rituais da ordem não se esgotam nessas festas grandiosas
em que o mundo social é reafirmado e englobado pelo Estado e pela
Igreja. Eles também estão presentes em situações muito mais familiares
a todos nós, como as festas de formatura e os ritos de posse em cargos
públicos, em que uma mesa geralmente separa as pessoas que são o
foco do cerimonial e os seus convidados; e em todas as crises de vida e
ritos de passagem em geral, como nascimentos, batizados, crismas,
casamentos e funerais. Nessas ocasiões, que também são solenes, a
troca de discursos, o uso de roupas especiais, a existência de
representantes duplos (como ocorre nas festas de formatura) permitem
descobrir esses mesmos elementos que exageram a ordem social
constituída e aparente e, também, a contenção dos gestos e do
comportamento em geral. Também aqui há um idioma especial,
facilmente aprendido nos lugares-comuns de uma retórica que todo
adulto pode repetir sem esforço. E há também os gestos típicos e os
objetos indispensáveis, como o anel de grau no caso das formaturas, as
alianças no caso dos casamentos e o bolo de aniversário no caso da
passagem de idade.
Em geral, todas essas festas comemoram ou celebram alguma
coisa que, supomos, realmente aconteceu. A vida de um santo é uma
história exemplar a ser imitada pelos homens, e a procissão que ao
santo se dedica diz um pouco dessa caminhada terrena para o Céu,
reproduzindo-a numa espécie de teatro cristão que é o ritual religioso.
Do mesmo modo, em formaturas e aniversários, casamentos e funerais,
resgata-se sempre algum tipo de exemplo, alguma forma de modelo,
seja para o aniversariante ou formando seguir, seja para que seus
parentes e amigos possam ser consolados. O homem é um animal que
busca o sentido em tudo — esta é sua sina. E tais ocasiões são situações
privilegiadas em que os grupos se comprazem na busca de um sentido
profundo para suas vidas. Sentido que assegura, de certo modo, a
continuidade da vida coletiva, mesmo quando ameaçada pela
extinção, como é o caso dos rituais funerários.
As festas patrocinadas pelo Estado, como as comemorações da
Independência, também celebram uma ocorrência real, o nascimento
de uma nação, e por isso são eventos paradigmáticos que justificam a
importância da data. Aqui estamos diante de um rito de calendário
coletivo, um aniversário (e uma formatura) nacional. Evento que
congrega simultaneamente, numa espécie de síntese, uma série de ritos
de passagem. É morte de uma relação (o elo colonial), é nascimento de
outra vida (o país que se torna independente). È também carnaval
libertador, cerimonial instaurador e inaugurador. É solenidade profana
ligada ao poder e à vontade dos homens, e igualmente rito sagrado onde
se agradece a ajuda de Deus pelo desfecho favorável de um movimento
de ruptura que geralmente é marcado pela violência.
Tudo isso permite notar que os ritos da ordem têm um centro. Seja
um evento, seja um personagem, seja um objeto; neles existe, como centro,
uma cena básica que deve estruturar o rito como um todo, além de ações
e cenários periféricos. Isso fica muito claro em aniversários, formaturas e
funerais, onde há um centro e um momento culminante, sem o qual não
se tem nem mesmo a necessidade de proceder ao drama. O caso da festa
de aniversário é um bom exemplo disso, pois a mesa e o bolo são aqui
personagens centrais, sendo parte de seu ponto culminante que tem a ver
com a forma ritualizada como se ingere um produto profundamente
identificado com o aniversariante, sendo seu representante simbólico.
Desse modo, o bolo do aniversariante e o número de velas que o
enfeitam e que queimam correspondem ao número de anos que foram
“queimados” na própria vida de quem está sendo homenageado. Bolo e
pessoa, assim, são uma só pessoa moral. E essa pessoa é “comida”
simbolicamente por todos, num ato pleno de comunhão e de divisão física
que vem cimentar ritualmente os elos sociais entre aniversariante e
convidados.
De interesse aqui é indicar que as pessoas estão todas distribuídas ao
longo desse centro que, ao contrário do carnaval (onde o mundo é
fragmentado e descentralizado, e muita coisa ocorre ao mesmo tempo),
possui um sincronismo, uma coordenação com o evento central. Isto é,
tudo acontece de modo orquestrado e em equilíbrio com o evento
centralizador de todas as atenções. Assim, enquanto não se pode jamais
chegar atrasado a uma festa carnavalesca, pois o evento começa
quando se chega, nos ritos da ordem se corre sempre o risco dessa
perda. Isso prova que tais solenidades talvez sejam mais legitimadoras
do que simplesmente comemorativas, donde a importância da
presença e da atenção de todos a seus eventos centrais.
Tudo isso nos fala de um ritmo social, um movimento que
indica algo como um oscilar entre forma e conteúdo, centro e
periferia, continência física e excesso. Como o tique-taque de um
relógio, ou a batida de um coração, ou o bumbo de carnaval, ou as
máscaras que são postas e tiradas na revelação de que os homens
vivem entre as coisas. Eternos ritualizados, sempre passageiros...


Capítulo 7

O modo de navegação social: a malandragem e o “jeitinho”

Entre a desordem carnavalesca, que permite e estimula o
excesso, e a ordem, que requer a continência e a disciplina pela
obediência estrita às leis, como é que nós, brasileiros, ficamos? Qual a
nossa relação e a nossa atitude para com e diante de uma lei
universal que teoricamente deve valer para todos? Como
procedemos diante da norma geral, se fomos criados numa casa
onde, desde a mais tenra idade, aprendemos que há sempre um
modo de satisfazer nossas vontades e desejos, mesmo que isso vá de
encontro às normas do bom senso e da coletividade em geral?
Num livro que escrevi — Carnavais, malandros e heróis —,
lancei a tese de que o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação
entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o
indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava
como podia, utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais.
Haveria assim, nessa colocação, um verdadeiro combate entre leis
que devem valer para todos e relações que evidentemente só
podem funcionar para quem as tem. O resultado é um sistema social
dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas:
o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade)
e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao pólo
tradicional do sistema) Entre os dois, o coração dos brasileiros
balança. E no meio dos dois, a malandragem, o “jeitinho” e o famoso
e antipático “sabe com quem está falando?” seriam modos de
enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente
brasileiro. Ou seja: fazendo uma mediação também pessoal entre a
lei, a situação onde ela deveria aplicar-se e as pessoas nela
implicadas, de tal sorte que nada se modifique, apenas ficando a lei
um pouco desmoralizada — mas, como ela é insensível e não é gente
como nós, todo mundo fica, como se diz, numa boa, e a vida retorna
ao seu normal...
De fato, como é que reagimos diante de um “proibido estacionar”,
“proibido fumar”, ou diante de uma fila quilométrica?
Como é que se faz diante de um requerimento que está sempre
errado? Ou diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma
multa automática que não foi divulgada de modo apropriado pela
autoridade pública? Ou de uma taxação injusta e abusiva que o
Governo novamente decidiu instituir de modo drástico e sem
consulta?
Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, somente para
citar três bons exemplos, as regras ou são obedecidas ou não existem.
Nessas sociedades, sabe-se que não há prazer algum em escrever
normas que contrariam e, em alguns casos, aviltam o bom senso e as
regras da própria sociedade, abrindo caminho para a corrupção
burocrática e ampliando a desconfiança no poder público. Assim,
diante dessa enorme coerência entre a regra jurídica e as práticas
da vida diária, o inglês, o francês e o norte-americano param diante
de uma placa de trânsito que ordena parar, o que — para nós —
parece um absurdo lógico e social, pelas razões já indicadas. Ficamos,
pois, sempre confundidos e, ao mesmo tempo, fascinados com a
chamada disciplina existente nesses países. Aliás, é curioso que a
nossa percepção dessa obediência às leis universais seja traduzida em
termos de civilização e disciplina, educação e ordem, quando na
realidade ela é decorrente de uma simples e direta adequação
entre a prática social e o mundo constitucional e jurídico. É isso que
faz a obediência que tanto admiramos e, também, engendra aquela
confiança de que tanto sentimos falta. Porque, nessas sociedades, a
lei não é feita para explorar ou submeter o cidadão, ou como
instrumento para corrigir e reinventar a sociedade. Lá, a lei é um
instrumento que faz a sociedade funcionar bem e isso — começamos
a enxergar — já é um bocado! Claro está que um dos resultados
dessa confiança é uma aplicação segura da lei que, por ser norma
universal, não pode pactuar com o privilégio ou com a lei privada,
aquela norma que se aplica diferencialmente se o crime ou a falta foi
cometida por pessoas diferencialmente situadas na escala social. Isso
que ocorre diariamente no Brasil, quando, digamos, um bacharel
comete um assassinato e tem direito a prisão especial e um
operário, diante da mesma lei, não tem tal direito porque não é,
obviamente, bacharel... A destruição do privilégio engendrou uma
justiça ágil e operativa na base do certo ou errado. Uma justiça que
não aceita o mais-ou-menos e as indefectíveis gradações e
hierarquias que normalmente acompanham a ritualização legal
brasileira, que para todos os delitos estabelece virtualmente um peso
e uma escala. Assim, aqui, todos podem ser primários ou não; e os
crimes admitem graus de execução, estando de acordo com o
princípio hierárquico que governa a sociedade. Sustento que é
precisamente essa possibilidade de gradação que permite a
interferência das relações pessoais com a lei universal, dando-lhe —
em cada caso — uma espécie de curvatura específica que impede
sua aplicabilidade universal que tanto clamamos e reclamamos.
Por tudo isso, somos um país onde a lei sempre significa o “não
pode!” formal, capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos
os projetos e iniciativas. De fato, é alarmante constatar que a
legislação diária do Brasil é uma regulamentação do “não pode”, a
palavra “não” que submete o cidadão ao Estado sendo usada de
forma geral e constante. Ora, é precisamente por tudo isso que
conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um estilo de
navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses
peremptórios e autoritários “não pode!”. Assim, entre o “pode” e o
“não pode”, escolhemos, de modo chocantemente antilógico, mas
singularmente brasileiro, a junção do “pode” com o “não pode”. Pois
bem, é essa junção que produz todos os tipos de “jeitinhos” e
arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que
quase sempre nada tem a ver com a realidade social.
O “jeito” é um modo e um estilo de realizar. Mas que modo é
esse? É lógico que ele indica algo importante. É, sobretudo, um modo
simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o
pessoal; nos casos — ou no caso — de permitir juntar um problema
pessoal (atraso, falta de dinheiro, ignorância das leis por falta de
divulgação, confusão legal, ambigüidade do texto da lei, má vontade
do agente da norma ou do usuário, injustiça da própria lei, feita para
uma dada situação, mas aplicada universalmente etc.) com um
problema impessoal. Em geral, o jeito é um modo pacífico e até
mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção
inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando O
processo é simples e até mesmo tocante. Consta de um drama em
três atos que todos conhecem:
1o Ato: Uma pessoa que não é vista por ninguém, ignorada em
razão de sua aparência e modo de apresentação, chega a um local
para ser atendida por um servidor público que é uma autoridade e
dela está imbuído. A autoridade não sabe quem é a pessoa que
chegou e nem quer saber. Essa distinção entre a humildade de quem
chega e a superioridade de quem está protegido pelo balcão da
instituição é, aliás, um elemento forte na hierarquização das posições
sociais. Pois bem, o humilde cidadão chega e pede o que deseja...
2o Ato: O funcionário custa a atender a solicitação. Diz que
não pode ser assim e ainda complica mais as coisas, indicando as
confusões do solicitante e as penalidades legais a que poderá estar
sujeito. Cria-se, então, um impasse. Diante de um usuário honesto, há
a opinião do funcionário que representa a lei e, por isso mesmo, não
enxerga qualquer razão pessoal ou humana para tratar o
solicitante de modo agradável. De fato, a lei, e o fato de ele ser o
seu representante, cega-o completamente para essas razões
humanitárias que decerto estabeleceriam e seriam parte e parcela
de uma concepção de cidadania positiva, isto é, uma cidadania
na qual os indivíduos têm os seus direitos assegurados e respeitados
em todas as situações. Nessa situação, o solicitante não é nada. Ê
apenas um indivíduo qualquer que, como um número, um caso
complicado, um estorvo ou um requerimento, solicita algo. Temos
aqui um alguém que é ninguém. Ele, obviamente, representa o
humano e o pessoal numa situação impessoal e geral...
3o Ato: Diante do impasse — pois o funcionário diz que não
pode e o cidadão deseja resolver o seu caso —, há a solução que
denuncia e ajuda a ver o mapa de navegação social. Nos países
igualitários, não há muita discussão: ou se pode fazer ou não se pode.
No Brasil, porém, entre o “pode” e o “não pode”, encontramos um
“jeito”. Na forma clássica do “jeitinho”, solicita-se precisamente isso:
um jeitinho que possa conciliar todos os interesses, criando uma
relação aceitável entre o solicitante, o funcionário-autoridade e a lei
universal. Geralmente, isso se dá quando as motivações profundas
de ambas as partes são conhecidas; ou imediatamente, quando
ambos descobrem um elo em comum. Tal elo pode ser banal (torcer
pelo mesmo time) ou especial (um amigo comum, ou uma
instituição pela qual ambos passaram ou, ainda, o fato de se ter
nascido na mesma cidade...). A verdade é que a invocação da
relação pessoal, da regionalidade, do gosto, da religião e de outros
fatores externos àquela situação poderá provocar uma resolução
satisfatória ou menos injusta. Essa é a forma típica do “jeitinho”, e há
pessoas especialistas nela. Uma de suas primeiras regras é não usar o
argumento igualmente autoritário, o que também pode ocorrer, mas
que leva a um reforço da má vontade do funcionário. De fato,
quando se deseja utilizar o argumento (ou melhor, contra-argumento)
da autoridade contra o funcionário, o jeitinho é um ato de força que
no Brasil é conhecido como o famoso e escondido “sabe com
quem está falando?” Aqui, ao contrário do jeitinho e quase como o
seu simétrico e inverso, não se busca uma igualdade simpática ou
uma relação contínua com o agente da lei que está por trás do
balcão. Mas, isso sim, busca-se uma hierarquização inapelável entre
o usuário e o atendente. De tal modo que, diante do “não pode” do
funcionário, encontra-se um “não pode do não pode” feito pela
invocação do “sabe com quem está falando? Sou filho do Ministro!”,
e pronto!, gera-se logo um tremendo impasse autoritário que
dependerá, para a sua solução, dos devidos trunfos de quem está
implicado no drama.
De qualquer modo, um “jeito” foi dado. Uma forma de
resolução foi obtida. E a ligação entre a lei e o caso concreto fica
realizada satisfatoriamente para ambas as partes. “Jeitinho.” e “você
sabe com quem está falando?” são, pois, os dois pólos de uma
mesma situação. Um é um modo harmonioso de resolver a disputa; o
outro é um modo conflituoso e um tanto direto de realizar a mesma
coisa. O “jeito” tem muito de cantada, de harmonização de interesses
aparentemente opostos, tal como ocorre quando uma mulher
encontra um homem e ambos, interessados num encontro
romântico, devem discutir a forma que esse encontro deverá
assumir. O “sabe com quem está falando?”, por seu lado, afirma um
estilo diferente, onde a autoridade é reafirmada, mas com a
indicação de que o sistema é escalonado e não tem uma finalidade
muito certa ou precisa. Há sempre outra autoridade, ainda mais alta,
a quem se poderá recorrer. E assim as cartas são lançadas...
A malandragem, como outro nome para a forma de
navegação social nacional, faz precisamente o mesmo. O malandro,
portanto, seria um profissional do “jeitinho” e da arte de sobreviver
nas situações mais difíceis. Aqui, também, temos esse relacionamento
complexo e criativo entre o talento pessoal e as leis que engendram
— no caso da malandragem — o uso de “expedientes”, de
“histórias” e de “contos-do-vigário”, artifícios pessoais que nada mais
são que modos engenhosos de tirar partido de certas situações,
igualmente usando o argumento da lei ou da norma que vale para
todos, como ocorre no conto da venda do bilhete de loteria
premiado. Aqui, o malandro deseja vender um bilhete premiado pela
quarta parte do seu preço justo e arma uma situação onde será
fatalmente a vítima. Mas o fato é que o comprador é que será
roubado. A situação se arma precisamente pelo uso abusivo e
desonesto das listas oficiais da loteria (que legitimam o prêmio) e
pelos deveres de parentesco, que obrigam, na história do malandro,
a uma viagem inesperada donde a necessidade de vender um
bilhete premiado. Nessa estrutura típica de um conto-do-vigário,
nota-se a mesma contradição entre a impessoalidade da loteria e da
sorte e a pessoalidade das relações pessoais que se dão em vários
níveis. O drama reside precisamente no modo especial de conjugar o
pessoa com o impessoal.
Do lado do malandro, e como o seu oposto social, temos a
figura do despachante, esse especialista em entrar em contato com
as repartições oficiais para a obtenção de documentos que
normalmente implicam as confusões que mencionei linhas antes, ao
descrever detalhadamente o “jeitinho”. O despachante, como figura
sociológica, só pode ser visto em sua enorme importância quando
novamente nos damos conta dessa enorme dificuldade brasileira de
juntar a lei com a realidade social diária. Assim, o despachante parece
mais um padrinho. Tal como o padrinho, ele é um mediador entre a lei
e uma pessoa. Do mesmo modo que um patrão deve dar emprego e
boas condições de trabalho a seus empregados, o despachante
deve guiar seus clientes pelos estreitos e perigosos meandros das
repartições oficiais, fazendo com que sigam o caminho certo. Só que
o despachante é um padrinho para baixo. Digo para baixo porque as
classes média e alta do Brasil têm verdadeira aversão a tudo que a
faça sentir-se como pessoa comum, indivíduo sujeito a rejeições e
desagradáveis encontros com autoridades sem o menor traço de
boa vontade. Assim, se não se tem um amigo ou uma relação que
possa imediatamente facultar o “jeitinho”, contrata-se um
despachante, que realiza precisamente essa tarefa.
Por tudo isso, não há no Brasil quem não conheça a
malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada entre
a lei e a plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma
possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente
brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de
conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações
específicas, e — também — um modo ambíguo de burlar as leis e as
normas sociais mais gerais.
A possibilidade de agir como malandro se dá em todos os
lugares. Mas há uma área onde certamente ela é privilegiada. Quero
referir-me à região do prazer e da sensualidade, zona onde o
malandro é o concretizador da boêmia e o sujeito especial da boa
vida. Aquela existência que permite desejar o máximo de prazer e
bem-estar, com um mínimo de trabalho e esforço. O malandro,
então, conforme tenho acentuado em meus estudos, é uma
personagem nacional. É um papel social que está à nossa disposição
para ser vivido no momento em que acharmos que a lei pode ser
esquecida ou até mesmo burlada com certa classe ou jeito. No Brasil,
então, podemos ser caxias ou autoritários, como personagens típicos
do mundo das leis e da ordem; podemos ser renunciadores e beatos
que querem estar fora deste mundo, quando somos religiosos e
pretendemos fundar um modo de existência paralelo; e podemos
também ser malandros e jeitosos, políticos hábeis e sagazes, quando
não enfrentamos a lei com a sua modificação ou rejeição frontal,
mas apenas a dobramos ou simplesmente passamos por cima dela.
Quer dizer, tal como acontece com o seu modo de andar, o
malandro é aquele que — como todos nós — sempre escolhe ficar
no meio do caminho, juntando, de modo quase sempre humano, a
lei, impessoal e impossível, com a amizade e a relação pessoal, que
dizem que cada homem é um caso e cada caso deve ser tratado de
modo especial.
Mas não ficamos somente nisso. Temos grandes arquétipos da
malandragem, figuras que desenharam como ninguém o papel e o
tipo. Gente como Pedro Malasartes, que foi capaz de realizar uma
série de transformações impossíveis ao homem comum. Assim, ele
superou a exploração econômica e política do seu trabalho,
condenando o fazendeiro que o espoliava. Conseguiu também
transformar a imobilidade da miséria numa venturosa vida de
viajante sem pouso ou casa, situação de onde pode sempre enxergar
tudo e ganhar novas experiências. Pedro Malasartes foi também
capaz de proezas incríveis, como explorar os ricos, vender merda
como se fosse riqueza e levar a honestidade ao meio de pessoas
desonestas. Suas aventuras nos indicam que a vida contém sempre o
bom e o mau, o lado humano e o desumano estando misturados de
modo irremediável em todos e tudo. Assim, Pedro Malasartes, como
todos os malandros, talvez nos diga que é preciso tomar consciência
desses dois lados para poder escolher uma vida humanamente digna.
A malandragem, assim, não é simplesmente uma singularidade
inconseqüente de todos nós, brasileiros. Ou uma revelação de cinismo
e gosto pelo grosseiro e pelo desonesto. É muito mais que isso. De fato,
trata-se mesmo de um modo — jeito ou estilo — profundamente
original e brasileiro de viver, e às vezes sobreviver, num sistema em
que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida
pública nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira
que governam a nossa honra, o respeito e, sobretudo, a lealdade
que devemos aos amigos, aos parentes e aos compadres. Num
mundo tão profundamente dividido, a malandragem e o “jeitinho”
promovem uma esperança de tudo juntar numa totalidade
harmoniosa e concreta. Essa é a sua importância, esse é o seu aceno.
Aí está a sua razão de existir como valor social.
Antes de ser um acidente ou mero aspecto da vida social
brasileira, coisa sem conseqüência, a malandragem é um modo
possível de ser. Algo muito sério, contendo suas regras, espaços e
paradoxos...
Isso está bem de acordo com o que nos disse Pero Vaz de
Caminha, no finalzinho de sua carta histórica, fundadora do nosso
modo de ser, depois de dar ao rei as maravilhosas notícias da terra
brasileira. Ali, naquele pedaço terminal e naquela hora de arremate,
Caminha arrisca, malandramente, o seguinte: “E nesta maneira,
Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se
algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de
tudo vos dizer, mo fez por assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo
que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que
de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem
servida, a Ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da
Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro — o que dela
receberei em muita mercê.”
E conclui Caminha, como até hoje manda o nosso figurino de
malandragem: “Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro de
Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.”
Será que é preciso dizer mais alguma coisa?

Capítulo 8

Os caminhos para Deus

Nós, brasileiros, marcamos certos espaços como referências
especiais da nossa sociedade. A casa, onde moramos, comemos e
dormimos — vivemos, enfim... A rua, onde trabalhamos e ganhamos a
luta pela vida. A cada um desses espaços, onde convivemos com
parentes, amigos e colegas de trabalho, devemos somar um outro,
não menos referencial e crítico. Quero referir-me ao espaço do
outro mundo, essa área demarcada por igrejas, capelas, ermidas,
terreiros, centros espíritas, sinagogas, templos, cemitérios e tudo
aquilo que faz parte e sinaliza as fronteiras entre o mundo em que
vivemos e esse “outro mundo” onde, um dia, também iremos
habitar. Esse mundo habitado por mortos, fantasmas, almas, santos,
anjos, orixás, deuses, Deus, a Virgem Maria e Jesus Cristo, para onde
todos vão e de onde ninguém retorna... ou pelo menos retorna com
facilidade.
Se na casa e na rua utilizamos o idioma do dinheiro e a
linguagem das cifras, dos números, dos salários, dos cálculos e das
coisas práticas deste mundo, no universo da religião estamos muito
mais interessados em conversar com Deus, com os santos, com a
Virgem Maria e Jesus Cristo, e com toda a legião de entidades que ali
habitam. Nosso modo de relacionamento aqui é diferente. Em vez de
discursar, rezamos; em vez de ordenar, pedimos; em vez de
simplesmente falar, como fazemos habitualmente, conjugamos a
forma da mensagem com seu conteúdo, suplicamos. O modo de
comunicação com o além e seus habitantes, assim, é formalizado e
suplicante. Feito de preces, rezas e discursos onde se acentuam a
cândida sinceridade, a honesta súplica, a nobre humildade e,
naturalmente, a formidável promessa de renunciar ao mundo, com
suas pompas e honras.
Existem formas de falar com o mundo de Deus que são solitárias
e outras que são coletivas. Coletivamente, o modo mais comum é
através da cantoria, onde a prece faz com que se juntem todos os
pedidos num só, que deve “subir” aos céus levado pelas harmonias
das vozes que o entoam. De fato, no nosso modo de conceber o
espaço religioso, a linha vertical e hierarquizada, que relaciona o céu
com a terra e o alto com o baixo, é algo dominante e crítico. O
“alto”, conforme sabemos muito bem, é tudo que é superior, tudo que
deve ser mais nobre e mais forte, tudo que tem mais poder. É lá nessa
esfera situada em cima que moram os anjos, os santos e todas as
entidades que nos podem proteger e guiar os destinos. O “baixo” é a
terra em que vivemos: vale de lágrimas onde sofremos, trabalhamos e
finalmente morremos. A reza, a festividade religiosa e o canto
propiciatório coletivo são meios de se chegar até essas regiões
superiores, ligando o aqui e agora com o além e o infinito.
Seria até mesmo possível, nesta linha de abordagem, dizer que
certas rezas — ou formas de comunicação com o sobrenatural —
seriam mais fortes ou mais fracas que outras, tudo dentro da nossa
lógica de gradação dominante. Assim, as formas que implicam o
envolvimento da maioria dos sentidos seriam provavelmente mais
fortes e irresistíveis aos santos, deuses e espíritos do que as
modalidades em que apenas um sentido está envolvido. As formas
individuais, por sua vez, seriam normalmente as mais fracas, embora a
fé, a esperança e a caridade de cada um sejam também elementos
importantes no atendimento de suas súplicas ou preces. Do mesmo
modo, as súplicas acompanhadas de objetos, na forma de
promessas, oferendas e sacrifícios, são naturalmente mais fortes que
um simples pedido verbal, pois que elas implicam um ato de
cometimento muito mais denso e dramático, às vezes exigindo o
gasto de parcelas de dinheiro que são críticas em termos da
economia doméstica e pessoal do ofertante. Além disso, a promessa é
um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido
de resolver o problema apresentado. Se eu, assim, peço uma graça e
logo em seguida me sacrifico com a oferta de algo precioso para o
santo (ou santa) de minha devoção, a lógica social faz com que ele
(ou ela) também se obrigue a resolver meu problema, atendendo
cortesmente a minha súplica.
Tudo indica que o santo atende melhor e reconhece mais
claramente o esforço dos mortais quando o pedido se faz de modo
solene e respeitoso, com algum formalismo. As rezas e os pedidos,
assim, “sobem” melhor quando há um sinal visível de comunicação
com o alto; algo que cristalize essa ligação, como a fumaça do
incenso ou as luzes das velas queimando...
Mas por que se fala com Deus? As respostas são muito variadas.
Um fator sociológico básico, porém, é que existe a necessidade de
construir esse grande espelho a que chamamos religião para dar a
todos e a cada um de nós um sentimento de comunhão com o
universo como um todo. A religião, assim, seria um modo de permitir
uma relação globalizada não só com os deuses, mas também com
todos os homens e com os seres vivos que formam o nosso mundo.
Também pensamos na religião como um meio de explicação para
os infortúnios — as coincidências negativas (como acidentes e
doenças) —, pois a religião pode explicar por que uma pessoa ligada
a nós ficou doente, sofreu um acidente fatal ou é vítima indefesa e
gratuita de desesperadora aflição. A religião, nesse sentido,
apresentaria a possibilidade de resgatar a indiferença do mundo, e
das coisas do mundo, relativamente à nossa consciência e à sua
necessidade de dar um sentido preciso a tudo, ordenando a vida e as
relações entre as coisas da vida. Falamos também de religião quando
estamos pensando no modo pelo qual a sociedade precisa legitimar
ou justificar a sua organização, a sua maneira de ser e os seus estilos
de fazer. Assim, a religião pode explicar também por que existem
ricos e pobres, fortes e fracos, doentes e sãos, dando sentido pleno às
diferenciações de poder que percebemos como parte do nosso
mundo social. Assim como há uma diferenciação no Céu, haveria
também uma diferenciação na terra, muito embora, aos olhos do
Criador, todos sejam singulares e amados igualmente. Nesse sentido,
ou melhor, em todos esses sentidos, a religião serve para explicar — e
certamente o faz de modo mais satisfatório que a filosofia ou a
ciência, pois há sofrimento, doença, calamidade, injustiça e aflição
neste mundo. E mais: ela pode até mesmo dizer por que certa
pessoa está sofrendo o que sofre, o que não deixa de ser enorme
consolo para quem vive e acompanha a aflição. Num certo sentido,
portanto, a religião oferece respostas a perguntas que,
rigorosamente, não podem ser respondidas pela ciência ou pela
tecnologia.
Mas, além disso, a religião marca e ajuda a fixar momentos
importantes na vida de todos nós. Desse modo, nascimentos,
batizados, crismas, comunhões, casamentos e funerais — todos os
momentos que assinalam dramaticamente uma crise de vida e uma
passagem na escala da existência social — são marcados pela
presença da religião, que legitima com o aval divino ou sobrenatural
uma passagem que se deseja necessária; algo que esteja inscrito, não
apenas numa convenção inventada pelos homens, mas no próprio
projeto.
Essas formas de marcar entradas e saídas do universo religioso são
em geral dramáticas, exigindo ritos especiais e trabalhados que
operam como mediadores. Tal como acontece no nosso conhecido
ritual do batismo, em que a criança entra na Igreja Católica e, ao
mesmo tempo, na sociedade, ganhando simultaneamente “pais
adotivos” que reforçam, como padrinhos, suas obrigações como ser
social. Assim, embora a pessoa seja concebida por genitores (os seus
pais biológicos), há uma exigência de padrinhos (ou pais sociais) para
que ela possa penetrar no cerne da vida social, o que, no mundo
católico, se realiza através da Igreja e do ritual apropriado do
batismo. O mesmo ocorre num casamento, onde também existem
padrinhos — mediadores — marcando e indicando que a cerimônia
é algo público, algo definitivamente social.
Todos esses aspectos formam aquilo a que chamamos religião
num sentido amplo. A palavra, como se sabe, vem do latim e tem, no
sentido original, a idéia de laço, aliança, pacto, contrato e relação
que deve nortear os elos entre deuses e homens e, por isso mesmo, dos
homens entre si. Mas, além desses aspectos, a religião é um modo de
ordenar o mundo, facultando nossa compreensão para coisas muito
complexas, como a idéia de tempo, a idéia de eterno e a idéia de
perda e desaparecimento, esses mistérios perenes da existência humana.
Pode-se dizer, nessa perspectiva, que o homem é o único ser
que tem consciência de sua própria morte e, por isso mesmo, tem
enorme e definitiva necessidade de domesticar o tempo e de
problematizar a eternidade.
Mas como se chega a Deus no Brasil?

Aqui, como em outros lugares, temos uma religião dominante e
que até bem pouco tempo (até 1890, para ser preciso) foi oficial.
Trata-se, conforme sabemos, do Catolicismo Romano, denominação
religiosa formadora da própria sociedade brasileira e, naturalmente, de
um conjunto de valores que são essenciais no Brasil. Naturalmente
que tal forma de denominação religiosa é acompanhada de outras
que a ela estão referidas, mas que dela se diferenciam por meio do
culto, da teologia, do tipo de sacerdócio e de atitudes gerais. A
variedade de experiências religiosas brasileiras é, assim, ao mesmo
tempo, ampla e limitada. É ampla porque, ao Catolicismo Romano e
às várias denominações Protestantes, somam-se outras variedades de
religiões Ocidentais e Orientais, além das variedades brasileiras de
cultos de possessão cuja tradição é uma constelação variada de
valores e concepções. De um lado, existe incontestavelmente a
África dos escravos, com seus terreiros, tambores, idiomas secretos,
orixás e ritos de sacrifício, onde as coisas pertencem ao mundo do
sensível. Do outro, há o Espiritismo kardecista, em que o culto dos
mortos é uma forma dominante e o ritual se faz sem cantos nem
tambores. Se nas chamadas religiões Afro-Brasileiras e no Espiritismo,
a relação e o culto dos mortos, o contato com os deuses (orixás) é
algo rotineiro, se entre a Umbanda e o Kardecismo existem também
crenças em encarnação e na teoria do Karma (que vem da Índia),
há igualmente diferenças entre todas essas formas, já que na
Umbanda o contato é muito mais com os deuses do que com os
espíritos desencarnados dos mortos. Por outro lado, o Espiritismo
considera-se codificado, ao passo que a Umbanda é uma religião sem
codificação e com uma teologia aberta a muitas variações.
Mas, apesar de todas essas diferenças, a variedade é limitada,
porque essas formas mais diversas coexistem tendo como ponto focal
a idéia de relação e a possibilidade de comunicação entre homens
e deuses, homens e espíritos, homens e ancestrais. Ou seja: em todas
as formas de religiosidade brasileiras, há uma enorme e densa ênfase
na relação entre este mundo e o outro, de modo que a
domesticação da morte e do tempo é elemento fundamental em
todas essas variedades ou jeitos de se chegar a Deus.
Por outro lado, a forma pela qual essa comunicação se realiza
é sempre através de um elo pessoal. Nós, brasileiros, temos intimidade
com certos santos que são nossos protetores e padroeiros, nossos
santos patrões; do mesmo modo que temos como guias certos orixás
ou espíritos do além, que são nossos protetores. A relação pode ter
forma diferenciada, mas a sua lógica estrutural é a mesma. Em todos
os casos, a relação existe e é pessoal, isto é, fundada na simpatia e na
lealdade dos representantes deste mundo e do outro. Somos fiéis
devotos de santos e também cavalos de santo de orixás, e com cada
um deles nos entendemos muito bem pela linguagem direta da
patronagem ou do patrocínio místico — por meio de preces,
promessas, oferendas, despachos, súplicas e obrigações que, a
despeito de diferenças aparentes, constituem uma linguagem ou
código de comunicação com o além que é obviamente comum e
brasileira.
Do mesmo modo que temos pais, padrinhos e patrões, temos
também entidades sobrenaturais que nos protegem. E elas podem ser
de duas tradições religiosas aparentemente divergentes. Isso
realmente não importa. O que para um norte-americano calvinista,
um inglês puritano ou um francês católico seria sinal de superstição
e até mesmo de cinismo ou ignorância, para nós é modo de ampliar
as nossas possibilidades de proteção. É também, penso, um modo de
enfatizar essa enorme e comovente fé que todos nós temos no
sentido e na eternidade da vida. Assim, essas experiências religiosas
são todas complementares entre si, nunca mutuamente excludentes.
O que uma delas fornece em excesso, a outra nega. E o que uma
permite, a outra pode proibir. O que uma intelectualiza, a outra
traduz num código de sensual devoção. Aqui também nós, brasileiros,
buscamos o ambíguo e a relação entre esse mundo e o outro.
O que pode parecer singular no caso brasileiro, então, é que
cada uma dessas formas de religiosidade seja suplementar às outras,
mantendo com elas uma relação de plena complementaridade.
Assim, a Igreja Romana costura e dá sentido ao mundo e às
experiências humanas pelo seu ângulo externo e formal, sendo
acionada para legitimar importantes crises de vida, como o
casamento, o batizado, o nascimento e a morte. A Igreja, assim, é
uma forma básica de religião, marcando talvez o lado impessoal de
nossas relações com Deus. Um lado, de fato, onde a intimidade
eventualmente pode ceder lugar às regras fixas que conduzem a uma
impessoalidade, sobretudo nos cultos que legitimam de qualquer
modo as crises de vida.
Mas, ao lado dessas formas impessoais e mais politizadas e
socialmente aceitas de comportamento religioso, existem formas
pessoais de ligação com o outro mundo. Formas e estilos, vale
destacar, que são tão populares como o milagre.
Realmente, que é o milagre senão uma resposta dos deuses a
uma súplica desesperada dos homens, na forma de um atendimento
pessoal e intransferível? O milagre é prova de um ciclo de troca que
envolve pessoas e entidades sobrenaturais na forma de desejos,
motivações, sentimentos e vários objetos, alguns inclusive com a
forma da parte que foi curada — prova cabal da realização do
milagre ou da graça, finalmente, obtida. Essa pessoalidade existente
no catolicismo popular, como vemos, é singular. Ela parece produzir,
no plano religioso, essa enorme ênfase nas relações pessoais que dão
um sentido profundo ao nosso mundo social.
Tudo isso revela que é clara essa forma de comunicação
familiar e íntima, direta e pessoal entre homens e deuses no caso
brasileiro. Assim, em vez de opor a religião popular à religião oficial, ou
erudita, será melhor entender que suas relações são
complementares. Como as vertentes de um mesmo rio ou as duas
faces de uma mesma moeda. Desse modo, o oficiai contém tudo o
que pode legalizar, atuando a partir de fora. Mas o popular contém
todas as formas que lidam com as emoções em estado vivo,
atuando por dentro. Nessa modalidade, sentimentos e idéias ligam-se
em dramas visíveis e concretos, muito diferentes das formas eruditas
de religiosidade, onde o culto salienta uma comunicação
disciplinada e oficial com a divindade. Num caso, a relação com
Deus é, por assim dizer, “limpa”: trata-se de uma comunicação
educada. No outro, a comunicação é sensível, concreta e
dramática. O milagre, para nós, brasileiros, é a não-exclusão de
qualquer dessas formas como necessárias à vida religiosa. Mas a
adoção de ambas como modos legítimos de se chegar a Deus.
Assim, se no Natal vamos sempre à Missa do Galo, no dia 31
de dezembro vamos todos à praia vestidos de branco, festejar o
nosso orixá ou receber os bons fluidos da atmosfera de esperança que
lá se forma. Somos todos mentirosos? Claro que não! Somos, isso sim,
profundamente religiosos.
Realmente, se o mundo real exige um comportamento
coerente e uma conduta marcada pela exclusividade (não posso
ter dois sexos, nem duas mulheres, nem duas cidadanias, nem dois
partidos políticos ao mesmo tempo...), no caminho para Deus, e na
relação com o outro mundo, posso juntar muita coisa. Nele, posso ser
católico e umbandista, devoto de Ogum e de São Jorge. Posso
juntar, somar, relacionar coisas que tradicional e oficialmente as
autoridades apresentam como diferenciadas ao extremo. Tudo aqui
se junta e se torna sincrético, revelando talvez que, no sobrenatural,
nada é impossível. A linguagem religiosa do nosso país é, pois, uma
linguagem da relação e da ligação. Um idioma que busca o meiotermo,
o meio caminho, a possibilidade de salvar todo o mundo e de
em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna. Uma
linguagem, de fato, que permite a um povo destituído de tudo, que
não consegue comunicar-se com seus representantes legais, falar, ser
ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo.
Somos um povo que acredita profundamente num outro
mundo. E o outro mundo brasileiro é um plano onde tudo pode,
finalmente, fazer sentido. Lá, não haveria mais sofrimento, miséria,
poder e impessoalidades desumanas. Todos seriam reconhecidos
como pessoas e, ao mesmo tempo, leis universais — como a lei da
generosidade e a do eterno retorno: quem dá recebe e quem faz
algum mal recebe de volta esse mal — seriam válidas para todos.
Todos teriam valor, porque o valor não seria dado na formalidade ou
no sexo, mas na fé e na sinceridade de cada um e de todos. O outro
mundo tem muitas formas e são vários os caminhos de se chegar até
ele no Brasil. Mas, por detrás de todas as diferenças, sabemos que lá,
nesse céu à brasileira, é possível uma relação perfeita de todos os
espaços. Essa, pelo menos, é a esperança que se imprime nas formas
mais populares de religiosidade...

Palavras finais

Seria possível concluir um livro cuja motivação maior foi sugerir
uma certa leitura do Brasil? Claro que não. Seria possível, por outro
lado, alinhavar certas lições que o caso brasileiro ensina? Algo como
a busca de uma ética para essa história que contamos brevemente
nas páginas anteriores? Claro que sim.
Ao longo deste pequeno ensaio, demonstramos que a
sociedade brasileira não poderia ser entendida de modo unitário,
na base de uma só causa ou de um só princípio social. Ao contrário,
dos domínios que tomamos para estudo e investigação, todos se
revelaram como que possuídos por uma lógica comum. Uma lógica
que chamei de relacional e que na política aparece com o nome
de negociação e conciliação. Que no mundo econômico surge na
curiosa combinação de uma economia altamente estatizada com
uma iniciativa privada vigorosa e ainda importante. Que na religião
aparece com a intrigante mistura de catolicismo com religiões afropopulares.
E que na cosmologia em geral — e aqui estou pensando na
literatura popular e erudita do Brasil — aparece sob uma certa ânsia
de criar personagens intermediários, gente que pode permitir a
conciliação de tudo o que a sociedade mantém irremediavelmente
dividido por um movimento inconsciente.
Por que isso é assim? Minha resposta indica que o Brasil é uma
sociedade interessante. Ela é moderna e tradicional. Combinou, no
seu curso histórico e social, o indivíduo e a pessoa, a família e a classe
social, a religião e as formas econômicas mais modernas. Tudo isso faz
surgir um sistema com espaços internos muito bem divididos e que, por
isso mesmo, não permitem qualquer código hegemônico ou
dominante. Assim, conforme tive que repetir inúmeras vezes, somos
uma pessoa em casa, outra na rua e ainda outra no outro mundo.
Mudamos nesses espaços de modo obrigatório porque em cada um
deles somos submetidos a valores e visões de mundo diferenciados
que permitem uma leitura especial do Brasil como um todo. A esfera
de casa inventa uma leitura pessoal; a da rua, uma leitura universal.
Já a visão pelo outro mundo é um discurso conciliador e
fundamentalmente moralista e esperançoso. Entre essas três esferas,
colocamos um mundo de relações e situações formais. São as nossas
festas e a nossa moralidade, que, como disse, se fundam na
verdadeira obsessão pela ligação. E não poderia deixar de ser assim
numa sociedade tão tematizada pela divisão interna.
Mas qual é, afinal, a moral desta história? Não será preciso ir
muito longe para apreciá-la. A História do Brasil tem mostrado como
sempre insistimos em “ler” e interpretar o país pela via exclusiva da
linguagem oficial que se forma no espaço generalizado da rua,
espaço das nossas instituições públicas e que sempre apresenta um
discurso politicamente sedutor, pois que sistematicamente
normativo. Ou seja: desse ponto de vista, a fala sempre diz o que fazer
para resolver a questão. Mas não é precisamente isso que temos feito
em toda a nossa História moderna, a partir da Independência e da
República? E por que as coisas não dão certo?
Só Deus pode saber isso precisamente. Mas a visão antropológica,
da qual este ensaio é um pequeno exemplo, permite
que se discutam algumas coisas importantes para uma resposta
sugestiva a essa pergunta. É possível, por exemplo, argumentar que
nada pode dar certo se a crítica social e política é sempre
incompleta, pois só leva em consideração um dado da questão. De
fato, como se pode corrigir o mundo público brasileiro por meio de leis
impessoais, se não se faz simultaneamente uma série crítica das redes
de amizade e compadrio que embebem toda a nossa vida política,
institucional e jurídica? Nosso resultado, então, é que, à crítica
prática que fala com o idioma da economia e da política pelo
mundo da rua, seria preciso somar a linguagem da casa e da família
e, com ela, o idioma dos valores religiosos que também operam e,
por isso, determinam grande parte do comportamento profundo do
nosso povo. Tudo isso, diria eu, no sentido de somar um pouco mais a
casa, a rua e o outro mundo, aproximando um pouco mais essas
esferas.
Junto com isso, que certamente importaria corrigir, seria
necessário resgatar como coisa altamente positiva, como patrimônio
realmente invejável, toda essa nossa capacidade de sintetizar,
relacionar e conciliar, criando com isso zonas e valores ligados à
alegria, ao futuro e à esperança. Num mundo que cada vez mais se
desencanta consigo mesmo e institui um individualismo sem limites,
que reduz os valores coletivos a mero apêndice da felicidade pessoal,
a capacidade de ainda deslumbrar-se com a sociedade é algo muito
importante, algo positivo. E aqui, sem dúvida, podemos novamente
sintetizar, de modo criativo e relacional, o indivíduo com as suas
exigências e direitos fundamentais, com a sociedade, com a sua ordem,
seus valores e necessidades. Talvez a sociedade brasileira seja
missionária dessa possibilidade que já se está esgotando no mundo
ocidental. E por quê? Simplesmente porque conseguimos, até
agora, manter nossa fé no indivíduo, com os seus espaços internos e
também na sociedade, com as suas leis de complementaridade e
reciprocidade. Descobrimos também que o indivíduo, relações,
família e partido político, instituições econômicas e esferas de
produção e consumo, tudo pode ter o seu espaço. Se hoje eles estão
muito separados entre si, isso não significa a impossibilidade de se
juntarem mais no futuro, na síntese positiva que atualmente só
realizamos no mundo das festas, sobretudo no carnaval.
Seria preciso carnavalizar um pouco mais a sociedade como
um todo, introduzindo os valores dessa festa relacional em outras
esferas de nossa vida social. Com isso, poderíamos finalmente
aprofundar as possibilidades de mediação de que, estou seguro, o
mundo contemporâneo tanto precisa. Nem tanto o desencanto
crítico que conduz a um primado cego do individualismo como valor
absoluto; e nem tanto o primado igualmente cego da sociedade e
do coletivo, que esmaga a criatividade humana e sufoca o conflito e
a chama das contribuições pessoais. Talvez algo no meio. Algo que
permita ter um pouco mais da casa na rua e da rua na casa. Algo que
permita ter aqui, neste mundo, as esperanças que temos no outro.
Algo que permita fazer do mundo diário, com seu trabalho duro e
sua falta de recursos, uma espécie de carnaval que inventa a
esperança de dias melhores.
Acho que é um pouco desse tipo de reflexão que nos falta. E,
para que ela possa ser ampliada, discutida, corrigida e finalmente
implementada como mecanismo social, precisamos realizar a crítica
destemida de nós mesmos, por meio de instrumentos suficientemente
agudos e capazes. Para tanto, será preciso começar sempre com a
pergunta: o que faz o brasil, Brasil? E, em seguida, promover sua
resposta, ainda que tímida, imprecisa e certamente discutível. Pois
não foi outra coisa que quisemos realizar aqui.
Jardim Ubá, junho de 1984
Roberto DaMatta por ele mesmo
Meu nome completo é Roberto Augusto da Matta e tive muito
encabulamento com essa marca de família porque na escola eu
sempre virava o “roberto mata” e todo mundo queria saber quem
eram as vítimas. Tímido e calado, reprimido por autoprojeto de
perfeição e santidade, cheguei até mesmo a pensar em ser padre.
Esse plano durou até nossa saída de Juiz de Fora para São João
Nepomuceno, onde conheci o esporte, os bailes da primavera, os
amigos do peito e as primeiras namoradas. Nasci, porém, em Niterói,
em 1936, onde moro até hoje, pensando que Niterói é uma cidade
especial que confere a alguns dos seus moradores esse mistério de
uma associação periférica com o Rio de Janeiro dos grandes
acontecimentos, mas que situa a todos numa espécie de meiadistância
crítica de tudo. Essa é uma posição antropológica por
excelência que, suponho, seja também a marca de outros
niteroienses sensíveis, gente como Sergio Mendes e Walter Lima Jr...
Em Niterói enterrei meu coração e o renovei quando conheci minha
mulher, Celeste, numa tarde bonita de vestibular num pátio
sombreado da, então, Faculdade Fluminense de Filosofia, onde
ambos cursamos um bacharelato de História. Em Niterói também fiz
minha casa, nasceram meus filhos e foi onde me descobri professorpesquisador.
É desta base que saio todos os anos para lecionar em
outros centros do Brasil e do exterior.
Minhas primeiras aspirações intelectuais foram na área das artes.
Queria ser pintor e desenhista; depois, escritor. Aprendendo
seriamente as Ciências Sociais, descobri que seria possível conciliar o
desejo de inventar com o comentário realístico e inteligente das
motivações e relações humanas. Fiquei interessado em Antropologia
Cultural ou Social porque estava sempre fascinado com a
semelhança e a diferenças entre os homens e as sociedades. Logo
em 1959, quando tinha 23 anos, iniciei um estágio profissional no
Departamento de Antropologia do Museu Nacional, na Quinta da
Boa Vista, de onde jamais saí. De estagiário passei a bolsista e, de pois,
a pesquisador e professor, tendo contribuído naquela instituição com
um bocado do meu sangue, suor e lágrimas para a fixação
definitiva do seu hoje conhecido Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do qual fui Coordenador durante alguns anos,
aqueles anos duros da repressão dos novecentos e setenta. Fui também,
nesta mesma época, Chefe do Departamento, papel que me deixou
muitas vezes a matutar no meu pendor inusitado a um certo masoquismo.
Mas mesmo envolvido na mais densa e cruel selva administrativa, não
deixei de lado minhas fontes de serenidade e inspiração e continuei
realizando pesquisas e publicando livros. Neste Museu Nacional tenho
orientado inúmeras teses de mestrado e doutorado e dado aulas, cursos e
seminários.
Sempre li entre fascinado e respeitoso os clássicos do pensa mento
sociológico francês, alemão e inglês. No início dos anos 60, já iniciando os
meus primeiros passos como profissional de antropologia, tive dois
encontros importantes. Um deles com a América do Norte, via
Universidade de Harvard. O outro, com a Antropologia Social na sua
prática de campo, por meio dos índios Gaviões e Apinayé do Brasil
Central. Por meio desta associação, realizei pesquisas acadêmicas e
teóricas, imaginando por um momento um futuro trancado na “ciência” e
no “saber”. Mas a distância do Brasil a que a experiência norteamericana
me conduziu fez-me um observador critico da sociedade
brasileira e seus costumes, iniciando me como pesquisador e comentador
de minha própria sociedade Assim é que meu primeiro livro individual,
Ensaios de Antropologia Social (Vozes), é marcado pela diversidade de
interesses de quem estava como que buscando um objeto definitivo de
trabalho. Ali, naquele pequeno volume de ensaios, eu falo de mitologia
indígena, encaro uma crítica literária a nada menos que Edgar Alan Poe,
discuto o problema da má-sorte na Amazônia e pela primeira vez abordo o
carnaval dentro de uma perspectiva antropológica. Isso é muito diverso
do meu primeiro livro, Índios e castanheiros (Paz e Terra), escrito a quatro
mãos com Roque Laraia, que é relato descritivo de uma situação de
contato intercultural onde os índios, conforme se sabe, têm levado
sistematicamente a pior. Se ali eu tinha um objeto apaixonado de
discurso, no outro livro eu estava buscando o Brasil. Meu terceiro livro é o
resultado do trabalho acadêmico desenvolvido durante dez anos no
Museu e em Harvard. É o livro Um mundo dividido: a estrutura social dos
índios Apinayé (Vozes),que também foi traduzido e publicado em inglês
pela Harvard Univ. Press. Meu quarto livro é o ensaio Carnavais, malandros
e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro (Zahar) — traduzido
para o francês —, onde decidi retomar o ensaio como instrumento de
interpretação do Brasil. Em seguida a ele, publiquei Universo do carnaval:
imagens e reflexões (Pinakhoteke); organizei Universo do futebol
(Pinakhoteke) e E.R. Leach (Ática); e escrevi uma introdução à
Antropologia Social chamada Relativizando (Vozes), que tem tido uma
acolhida generosa entre estudiosos e estudantes de Antropologia no
Brasil e no exterior. Ao lado destes livros, tenho feito muitos artigos e
ensaios que vão da violência à sexualidade no Brasil. Hoje fico cada
dia mais certo de que a Antropologia Social é também um código
literário e que só nos faltam a ousadia temática e aquela
capacidade de observação e articulação que, de resto, os grandes
mestres da Etnologia do passado tinham. Afinal, o prêmio não é
somente pela prática da “ciência”, mas pela perseverança em
praticá-la, sempre, mesmo vivendo num mundo que nos leva para
todos os lugares...
Recentemente iniciei uma experiência na televisão escrevendo
e apresentando a série Os brasileiros.
R. DaMatta
Niterói, Jardim Ubá, Agosto de 1984.
A propósito do ilustrador
Jimmy Scott nasceu em 5 de janeiro de 1936, em Santiago do
Chile. Prepara-se para ser técnico industrial. Muda rumos e ingressa
na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Chile, onde estuda
Artes Plásticas. Seu começo profissional na ilustração foi em 1958, ao
publicar seus primeiros trabalhos na revista infantil El Peneca e, logo
depois, na revista de humor político Topaze, duas publicações
tradicionais do Chile, hoje desaparecidas, que divulgaram
largamente seu traço. Os convites sucederam-se e em pouco tempo
suas charges e caricaturas apareciam em diversos jornais e revistas de
Santiago e Concepción. Ilustrou textos didáticos para a Librairie
Française e Editorial Universitaria de Santiago. Chega ao Brasil em
1970. Até 1979 é contratado pela AGGS Indústrias Gráficas. Hoje
divide seu tempo entre algumas editoras, o jornal O Globo, e a
publicidade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário