O que fez o Brasil Brasil cap. 1,2,3 e 4



O que faz o brasil, Brasil?

Capítulos 1, 2, 3 e 4


Capítulo 1

A questão da identidade

Devo começar explicando o meu enigmático título. É que será
preciso estabelecer uma distinção radical entre um “brasil” escrito
com letra minúscula, nome de um tipo de madeira de lei ou de uma
feitoria interessada em explorar uma terra como outra qualquer, e o
Brasil que designa um povo, uma nação, um conjunto de valores,
escolhas e ideais de vida. O “brasil” com o b minúsculo é apenas um
objeto sem vida, autoconsciência ou pulsação interior, pedaço de
coisa que morre e não tem a menor condição de se reproduzir como
sistema; como, aliás, queriam alguns teóricos sociais do século XIX,
que viam na terra — um pedaço perdido de Portugal e da Europa —
um conjunto doentio e condenado de raças que, misturando-se ao
sabor de uma natureza exuberante e de um clima tropical, estariam
fadadas à degeneração e à morte biológica, psicológica e social.
Mas o Brasil com B maiúsculo é algo muito mais complexo. É país,
cultura, local geográfico, fronteira e território reconhecidos
internacionalmente, e também casa, pedaço de chão calçado com
o calor de nossos corpos, lar, memória e consciência de um lugar com
o qual se tem uma ligação especial, única, totalmente sagrada. É
igualmente um tempo singular cujos eventos são exclusivamente
seus, e também temporalidade que pode ser acelerada na festa do
carnaval; que pode ser detida na morte e na memória e que pode ser
trazida de volta na boa recordação da saudade. Tempo e
temporalidade de ritmos localizados e, assim, insubstituíveis.
Sociedade onde pessoas seguem certos valores e julgam as ações
humanas dentro de um padrão somente seu. Não se trata mais de
algo inerte, mas de uma entidade viva, cheia de auto-reflexão e
consciência: algo que se soma e se alarga para o futuro e para o
passado, num movimento próprio que se chama História. Aqui, o
Brasil é um ser parte conhecido e parte misterioso, como um grande
e poderoso espírito. Como um Deus que está em todos os lugares e
em nenhum, mas que também precisa dos homens para que possa se
saber superior e onipotente. Onde quer que haja um brasileiro adulto,
existe com ele o Brasil e, no entanto — tal como acontece com as
divindades —, será preciso produzir e provocar a sua manifestação para
que se possa sentir sua concretude e seu poder. Caso contrário, sua
presença é tão inefável como a do ar que se respira, e dela não se
teria consciência a não ser pela comparação, pelo contraste e pela
percepção de algumas de suas manifestações mais contundentes. Os
deuses, conforme sabemos, existem somente para serem vistos em
certos momentos e dentro de certas molduras. O mesmo ocorre com
as sociedades. Geralmente, estamos habituados a tomar
conhecimento das sociedades — e, sobretudo, da nossa sociedade
— por meio de suas manifestações mais oficiais e mais nobres. Tal
como ocorre às divindades, que só são encontradas nas igrejas,
também as sociedades só são normalmente percebidas quando
surgem nas suas vozes mais “cultas”. Para os tradicionalistas, aqueles
que têm olhos e não vêem, os deuses se acham nos sacrários, nas
capelas e nos livros sagrados de reza e devoção. Para os
observadores menos imaginativos e sensíveis, uma sociedade está nas
suas ciências, letras e artes. A visão oficial contradiz a voz, a visão do
povo e, ainda, a experiência da condição humana que,
generosamente, enxerga Deus em toda parte: no rito pomposo e
solene da catedral e na visão tresloucada do místico, nu e faminto em
sua cela de preocupações com o destino dos homens e
sobrecarregado pelo peso fantástico dos múltiplos sentidos desta
vida.
Neste livro, com ajuda de uma Antropologia Social praticada
com destemor e que proporciona uma visão da sociedade aberta e
relativizada pela comparação, queremos examinar alguns aspectos
da sociedade brasileira que o povo encara e certamente ama como
uma divindade. Porque aqui, como tá, o Brasil está em toda parte.
Nas leis e nas nobres artes da política e da economia, das quais temos
que falar sempre num idioma oficial e dobrando a língua; mas
também na comida que comemos, na roupa que vestimos, na casa
onde moramos e na mulher que amamos e adoramos. Para essa
perspectiva, o Brasil deve ser procurado nos rituais nobres dos
palácios de justiça, dos fóruns, das câmaras e das pretorias — onde a
letra clara da lei define suas instituições mais importantes; mas
também no jeitinho malandro que soma a lei com a pessoa na sua
vontade escusa de ganhar, embora a regra fria e dura como o
mármore da Justiça não a tenha tomado em consideração. Aqui,
portanto, o Brasil está em toda parte: ou melhor, pode ser
encontrado em toda parte. O erro foi procurá-lo onde ele não
gostava de estar, ou simplesmente não podia nem devia estar.
Como se uma sociedade pudesse ser definida como uma máquina: a
partir de uma planta de engenharia dada de fora.
Na certeza de que as visões do Brasil a partir de suas coisas
oficiais, sagradas, sérias e legais são as mais correntes e familiares,
quero aqui revelá-lo por meio de outros ângulos e de outras questões.
Não se trata mais da visão exclusivamente oficial e bem-comportada
dos manuais de história social que se vendem em todas as livrarias, e
os professores discutem nas escolas. Mas de uma leitura do Brasil que
deseja ser maiúsculo por inteiro: o BRASIL do povo e das suas coisas.
Da comida, da mulher, da religião que não precisa de teologia
complicada nem de padres estudados. Das leis da amizade e do
parentesco, que atuam pelas lágrimas, pelas emoções do dar e do
receber, e dentro das sombras acolhedoras das casas e quartos onde
vivemos o nosso quotidiano. Dos jogos espertos e vivos da
malandragem e do carnaval, onde podemos vadiar sem sermos
criminosos e, assim fazendo, experimentamos a sublime
marginalidade que tem hora para começar e terminar. Deste Brasil
que de algum modo se recusa a viver de forma totalmente
planificada e hegemonicamente padronizada pelo dinheiro das
contas bancárias ou pelos planos qüinqüenais dos ministérios
encantados pelos vários tecnocratas e ideólogos que aí estão à
espera de um chamado. BRASIL com maiúsculas, que sabe tão bem
conjugar lei com grei, indivíduo com pessoa, evento com estrutura,
comida farta com pobreza estrutural, hino sagrado com samba
apócrifo e relativizador de todos os valores, carnaval com comício
político, homem com mulher e até mesmo Deus com o Diabo. Por
tudo isso é que estamos interessados em responder, nas páginas que
seguem, esta pergunta que embarga e que emociona: afinal de
contas, o que faz o brasil, BRASIL?
Note-se que se trata de uma pergunta relacional que, tal como
faz a própria sociedade brasileira, quer juntar e não dividir. Não
queremos ver um Brasil pequeno e outro grande, já feito. Não!
Queremos, isto sim, descobrir como é que eles se ligam entre si; como
é que cada um depende do outro, e como os dois formam uma
realidade única que existe concretamente naquilo que chamamos
de “pátria”. Numa linguagem mais precisa e, mais sociológica, dir-seia
que o primeiro “brasil” é dado nas possibilidades humanas, mas
que o segundo Brasil é feito de uma combinação especial dessas
possibilidades universais. O mistério dessa escolha é imenso, mas a
relação é importante. Porque ela define um estilo, um modo de ser,
um “jeito” de existir que, não obstante estar fundado em coisas
universais, é exclusivamente brasileiro. Assim, o ponto de partida deste
ensaio é o seguinte: tanto os homens como as sociedades se definem
por seus estilos, seus modos de fazer as coisas. Se a condição humana
determina que todos os homens devem comer, dormir, trabalhar,
reproduzir-se e rezar, essa determinação não chega ao ponto de
especificar também que comida ingerir, de que modo produzir, com
que mulher (ou homem) acasalar-se e para quantos deuses ou
espíritos rezar. É precisamente aqui, nessa espécie de zona
indeterminada, mas necessária, que nascem as diferenças e, nelas, os
estilos, os modos de ser e estar, os “jeitos” de cada qual. Porque cada
grupo humano, cada coletividade concreta, só pode pôr em prática
algumas dessas possibilidades de atualizar o que a condição humana
apresenta como universal. As restantes ficam como uma espécie de
fantasma a nos recriminar pelo fato de as termos deixado nos
bastidores, como figuras banidas de nosso palco, embora estejam
de algum modo presentes na peça e no teatro.
No fundo, essa questão do relacionamento dos universais de
qualquer sistema com um sistema específico é das mais
apaixonantes de quantas existem no panorama das Ciências
Humanas. Trata-se, sempre, da questão da identidade. De saber quem
somos e como somos; de saber por que somos. Sobretudo quando
nos damos conta de que o homem se distingue dos animais por ter a
capacidade de se identificar, justificar e singularizar: de saber quem
ele é. De fato, a identidade social é algo tão importante que o
conhecer-se a si mesmo através dos outros deixou os livros de filosofia
para se constituir numa busca antropologicamente orientada. Mas o
mistério, como se pode adivinhar, não fica na questão do saber
quem somos. Pois será necessário descobrir como construímos nossas
identidades. Sei que sou José da Silva, brasileiro, casado, funcionário
público, torcedor do Flamengo, carnavalesco da Mangueira,
apreciador incondicional das mulatas, católico e umbandista;
jogador esperançoso e inveterado da loto, porque acredito em
destino — e não outra pessoa qualquer. Em sendo José, não sou
Napoleão ou William Smith, cidadão americano de Nova York; ou
Ivan Ivanovich, patriota soviético. Posso distinguir-me assim porque me
associo intensamente a uma série de atributos especiais e porque
com eles e através deles formo uma história: a minha história. Mas
como é que sei o que sou? Como posso discutir a passagem do ser
humano que nasci para o brasileiro que sou?
Como se constrói uma identidade social? Como um povo se
transforma em Brasil? A pergunta, na sua discreta singeleza, permite
descobrir algo muito importante. É que no meio de uma multidão
de experiências dadas a todos os homens e sociedades, algumas
necessárias à própria sobrevivência, como comer, dormir, morrer,
reproduzir-se etc, outras acidentais ou superficiais: históricas, para ser
mais preciso — o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses,
a geografia do Brasil tem certas características como as
montanhas na costa do Centro-Sul, sofremos pressão de certas
potências européias e não de outras, falamos português e não
francês, a família real transferiu-se para o Brasil no início do século XIX
etc. Cada sociedade (e cada ser humano) apenas se utiliza de um
número limitado de “coisas” (e de experiências) para construir-se
como algo único, maravilhoso, divino e “legal”...
Sei, então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque
gosto de comer feijoada e não hambúrguer; porque sou menos
receptivo a coisas de outros países, sobretudo costumes e idéias;
porque tenho um agudo sentido de ridículo para roupas, gestos e
relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York;
porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música popular,
sei distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque futebol
para mim é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos;
porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as
mulheres e tomar sol, jamais para praticar um esporte; porque sei que
no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei
que não existe jamais um “não” diante de situações formais e que
todas admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela amizade;
porque entendo que ficar malandramente “em cima do muro” é algo
honesto, necessário e prático no caso do meu sistema; porque
acredito em santos católicos e também nos orixás africanos; porque
sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo, na instrução
e no futuro do Brasil; porque sou leal a meus amigos e nada posso
negar a minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações
pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como
fazem os meus amigos americanos, que sempre se vêem e existem
como indivíduos!
Pois bem: somando esses traços, forma-se uma seqüência que
permite dizer quem sou, em contraste com o que seria um americano,
aqui definido pelas ausências ou negativas que a mesma lista
efetivamente comporta. A construção de uma identidade social,
então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e
de negativas diante de certas questões. Tome uma lista de tudo o
que você considera importante — leis, idéias relativas a família,
casamento e sexualidade; dinheiro; poder político; religião e
moralidade; artes; comida e prazer em geral — e com ela você
poderá saber quem é quem. Não é de outro modo que se realizam
as pesquisas antropológicas e sociológicas. Descobrindo como as
pessoas se posicionam e atualizam as “coisas” desta lista, você fará
um “inventário” de identidades sociais e de sociedades. Isso lhe
permitirá descobrir o estilo e o “jeito” de cada sistema. Ou, como se
diz em linguagem antropológica, a cultura ou ideologia de cada
sociedade. Porque, para mim, a palavra cultura exprime
precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer coisas.
Mas é preciso não esquecer que essas escolhas seguem uma
ordem. É certo que eu inventei um “brasileiro” e um “americano” que
o acompanhava por contraste linhas atrás, mas quem me garante
que aquilo que disse é convincente para definir um brasileiro foi a
própria sociedade brasileira. Ou seja: quando eu defini o “brasileiro”
como sendo amante do futebol, da música popular, do carnaval, da
comida misturada, dos amigos e parentes, dos santos e orixás etc,
usei uma fórmula que me foi fornecida pelo Brasil. O que faz um ser
humano realizar-se concretamente como brasileiro é a sua
disponibilidade de ser assim. Caso eu falasse em elegância no vestir e
no falar, no gosto pelas artes plásticas, na visita sistemática a museus,
no amor pela música clássica, na falta de riso nas anedotas, no
horror ao carnaval e ao futebol etc, certamente estaria definindo
outro povo e outro homem. Isso indica claramente que é a sociedade
que nos dá a fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela
fazemos desenhos mais ou menos exatos.
Tudo isso nos leva a descobrir que existem dois modos básicos
de construir a identidade brasileira: o de fazer o brasil, Brasil...
Num deles, utilizamos dados precisos: as estatísticas
demográficas e econômicas, os dados do PIB, PNB e os números da
renda per capita e da inflação, que sempre nos assusta e apavora.
Falamos também dos dados relativos ao sistema político e
educacional do país, apenas para constatar que o Brasil não é aquele
país que gostaríamos que fosse. Essa classificação permite construir
uma identidade social moderna, de acordo com os critérios
estabelecidos pelo Ocidente europeu a partir da Revolução Francesa
e da Revolução Industrial. Aqui, somos definidos por meio de critérios
“objetivos”, quantitativos e claros. Ê assim, sabemos e descobrimos
com surpresa, que algumas sociedades se definem. Realmente, a
Inglaterra, a França, a Alemanha e, sobretudo, os Estados Unidos são
quase exclusivamente definidos por meio deste eixo classificatório
que é, ele mesmo, invenção sua. Mas, no caso do Brasil e de outras
sociedades, o problema é que existe outro modo de classificação. A
identidade se constrói duplamente. Por meio dos dados
quantitativos, onde somos sempre uma coletividade que deixa a
desejar; e por meio de dados sensíveis e qualitativos, onde nos
podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena. Aqui, o que
faz o brasil, Brasil não é mais a vergonha do regime ou a inflação
galopante e “sem vergonha”, mas a comida deliciosa, a música
envolvente, a saudade que humaniza o tempo e a morte, e os amigos
que permitem resistir a tudo...
É uma descoberta importante, creio, dizer que nós temos dado
muito mais atenção a um só desses eixos classificatórios, querendo
discutir o Brasil apenas como uma questão de modernidade e de
economia e política; ou, ao contrário, reduzindo sua realidade a
um problema de família, de relações pessoais e de cordialidade. Para
mim, não se trata nem de uma coisa nem de outra, mas das duas que
são dadas de modo simultâneo e complexo. Nessa perspectiva, que
é a deste pequeno livro, a chave para entender a sociedade brasileira
é uma chave dupla. De um lado, ela é moderna e eletrônica, mas de
outro é uma chave antiga e trabalhada pelos anos. É típica de nosso
sistema essa capacidade de misturar e acasalar as coisas que tenho
discutido no meu trabalho como uma atividade relacional, de ligar
e descobrir um ponto central. Conhecemos e convivemos com suas
manifestações políticas (a negociação e a conciliação) e
econômicas (uma economia que é estatizante e ao mesmo tempo
segue as linhas mestras do capitalismo clássico), mas de certo modo
não discutimos as suas implicações sociológicas mais profundas. E,
para mim, essas implicações se escondem nesta ligação — ou
capacidade relacional — do antigo com o moderno, que tipifica e
singulariza a sociedade brasileira. Assim, conforme tentarei mostrar
nas páginas que seguem — e com a ajuda do talento gráfico de
Jimmy Scott —, o que faz o brasil, Brasil é uma imensa, uma inesgotável
criatividade acasaladora. Sustento que, enquanto não formos
capazes de discernir essas duas faces de uma mesma nação e
sociedade, estaremos fadados a um jogo cujo resultado já se sabe de
antemão. Pois, como ocorre com as moedas, ou teremos como
jogada um “brasil”, pequeno e defasado das potências mundiais,
Brasil que nos leva a uma autoflagelação desanimadora; ou teremos
como, jogada o Brasil dos milagres e dos autoritarismos políticos e
econômicos, que periodicamente entra numa crise.
Será preciso, portanto, discutir o Brasil como uma moeda. Como
algo que tem dois lados. E mais: como uma realidade que nos tem
iludido, precisamente porque nunca lhe propusemos esta questão
relacional e reveladora: afinal de contas, como se ligam as duas
faces de uma mesma moeda? O que faz o brasil, Brasil?
É o que veremos a seguir...

Capítulo 2

 Observe-se uma cidade brasileira. Nela, há um nítido movimento
rotineiro. Do trabalho para casa, de casa para o trabalho. A casa e a
rua interagem e se complementam num ciclo que é cumprido
diariamente por homens e mulheres, velhos e crianças. Pelos que
ganham razoavelmente e até mesmo pelos que ganham muito bem.
Uns fazem o percurso casa-rua-casa a pé; outros seguem de
bicicleta. Muitos andam de trens, ônibus e automóveis, mas todos
fazem e refazem essa viagem que constitui, de certo modo, o
esqueleto da nossa rotina diária. Há uma divisão clara entre dois
espaços sociais fundamentais que dividem a vida social brasileira: o
mundo da casa e o mundo da rua — onde estão, teoricamente, o
trabalho, o movimento, a surpresa e a tentação.
É claro que a rua serve também como o espaço típico do lazer.
Mas ela, como um conceito inclusivo e básico da vida social —
como “rua” —, é o lugar do movimento, em contraste com a calma
e a tranqüilidade da casa, o lar e a morada.
De fato, na casa ou em casa, somos membros de uma família e
de um grupo fechado com fronteiras e limites bem-definidos. Seu
núcleo é constituído de pessoas que possuem a mesma substância —
a mesma carne, o mesmo sangue e, conseqüentemente, as mesmas
tendências. Tal substância física se projeta em propriedades e muitas
outras coisas comuns. A idéia de um destino em conjunto e de
objetos, relações, valores (as chamadas “tradições de família”) que
todos do grupo sabem que importa resguardar e preservar. Disse que
isso se chamava “tradição”, e é assim que normalmente falamos
desses símbolos coletivos que distinguem uma residência, dando-lhe
certo estilo e certa maneira de ser e estar. Mas tais valores podem
também ser chamados de “honra” e “vergonha”, pois as famílias
bem-definidas e com alto sentido de casa e grupo são coletividades
que atuam com uma personalidade coletiva bem-definida. De tal
ordem que elas são uma “pessoa moral”, algo que age unitária e
corporativamente, como um indivíduo entre outros. Daí a idéia tão
corrente, mesmo no nosso Brasil urbano e moderno, da proteção das
fronteiras da casa, seja de suas soleiras materiais (quem não está
preocupado com o fechamento de suas portas e janelas todas as
noites?), seja — principalmente — de suas entradas e saídas morais. Por
tudo isso, o grupo que ocupa uma casa tem alto sentido de defesa
de seus bens móveis e imóveis, e, junto com isso, da proteção de
seus membros mais frágeis, como as crianças, as mulheres e seus
servidores. Pois, diferentemente de outros países modernos, aqui no
Brasil as casas possuem serviçais que, em certo sentido, lhes
pertencem. E cuida-se de seu bem-estar porque a idéia de residência
é um fato social totalizante, conforme diria Márcel Mauss. Ou seja:
quando falamos da “casa”, não estamos nos referindo simplesmente
a um local onde dormimos, comemos ou que usamos para estar
abrigados do vento, do frio ou da chuva. Mas — isto sim — estamos nos
referindo a um espaço profundamente totalizado numa forte moral.
Uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades
múltiplas. Coisas que vêm do passado e objetos que estão no presente,
pessoas que estão saindo deste mundo e pessoas que a ele estão
chegando, gente que está relacionada ao lar desde muito tempo e
gente que se conhece de agora. Não se trata de um lugar físico, mas
de um lugar moral: esfera onde nos realizamos basicamente como
seres humanos que têm um corpo físico, e também uma dimensão
moral e social. Assim, na casa, somos únicos e insubstituíveis. Temos
um lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas
dimensões sociais importantes, como a divisão de sexo e de idade.
Mas se em casa somos classificados pela idade e pelo sexo
como, respectivamente, mais velhos ou mais moços e como homens
e mulheres — e aqui temos dimensões sociais que são
provavelmente as primeiras que aprendemos na sociedade brasileira
—, nela somos também determinados por tudo o que a “honra”, a
“vergonha” e o “respeito”, esses valores grupais, acabam
determinando. Quero referir-me ao amor filial e familial que se deve
estender pelos compadres e pelos amigos, para quem as portas de
nossas casas estão sempre abertas e nossa mesa está sempre posta e
farta.
A conjunção de tudo isso faz com que nós, brasileiros, tenhamos
uma percepção de nossas moradas como lugares singulares, espaços
exclusivos. Pois cada casa, embora tenha os mesmos espaços e
basicamente os mesmos objetos de todas as outras, é diferente delas.
Todas são únicas, se não como espaço físico de morada, pelo menos
como domínio onde se realiza uma convivialidade social profunda.
Daí a possibilidade de diferenciar profundamente a casa ou a morada
— o prédio — do lar. Mesmo quando são residências baratas ou casas
de vila, construídas de modo idêntico, algo marca e revela sua
identidade e, com isso, a identidade do grupo que a ocupa: um
pedaço de azulejo estrategicamente colocado próximo de uma
janela; um nome singelo na parte de cima da soleira da porta; flores e
jardins; a cor de suas janelas e portas.
Por ser um espaço assim inclusivo e, simultaneamente, exclusivo,
a casa pode ter também seus agregados. Pessoas que vivem no
domicílio, mas que não são parte da família. Um parente que veio do
Norte em busca de médico ou segurança psicológica; um amigo em
dificuldade financeira ou crise matrimonial; um velho empregado que
não tem para onde ir nem lugar para ficar; um compadre que precisa
de emprego e necessita falar com uma autoridade da grande cidade;
um amigo que precisa de um santuário para evitar a prisão motivada
por idéias e convicções políticas; uma mulher que temporariamente
foge do pai ou irmão para acertar definitivamente sua nova filiação
social. Até mesmo os animais domésticos podem incluir-se nessa
definição, pois de fato participam do espaço positivo da residência,
ajudando a conceituá-la de modo socialmente positivo ou negativo.
Não é à toa que falamos que nosso cachorro é mais manso e mais
esperto; que nosso gato tem o pêlo mais luzidio e a preguiça mais
bonita e gostosa, e que nosso passarinho canta mais bonito e mais
alto...
Tudo, afinal de contas, que está no espaço da nossa casa é
bom, é belo e é, sobretudo, decente. Até mesmo as nossas plantas
são mais viçosas que as dos vizinhos e amigos. E como não podemos,
por causa de uma proibição extremamente moral (aquilo que nós,
antropólogos, chamamos de tabu), comer nossos animais domésticos
(noto que entre os astecas os cães eram comidos e vendidos no
mercado), nem nossas plantas caseiras, eles cumprem uma função
estritamente simbólica. De fato, são criados para diferenciar e não
para cumprir qualquer função prática. Assim, são como nós e nos
ajudam a estabelecer nossa mais profunda identidade social, como
membros indiferenciados de um mundo anônimo e asfaltado onde
ninguém conhece ninguém — esse mundo tenebroso da selva de
pedra; e como membros diferenciados que residem numa dada parte
da cidade e que podem transformar esse local onde moram em algo
único, especial, singular e “legal”. Tudo isso, repito, que nós
diferenciamos como o espaço do lar. Algo que contrasta
terrivelmente com a morada coletiva das prisões, dormitórios,
alojamentos e hotéis e motéis, onde não se pode efetivamente
projetar nas paredes,, nas portas, no chão e nas janelas a nossa
identidade social.
Como espaço moral importante e diferenciado, a casa se
exprime numa rede complexa e fascinante de símbolos que são
parte da cosmologia brasileira, isto é, de sua ordem mais profunda e
perene. Assim, a casa demarca um espaço definitivamente amoroso
onde a harmonia deve reinar sobre a confusão, a competição e a
desordem. Em casa, sabemos todos — como bons brasileiros que
somos —, não devemos comprar, vender ou trocar. O comércio está
excluído da casa corno o Diabo se exclui do bom Deus. Do mesmo
modo, as discussões políticas, que revelam e indicam posições
individualizadas e quase sempre discordantes dos membros de uma
família, estão banidas da mesa e das salas íntimas, sobretudo dos
quartos. Se elas são inevitáveis, transcorrem certamente nas varandas
e quintais, locais marginais da casa, posto que situados entre o seu
interior (cujo calor revela a igualdade de substância e de opiniões das
pessoas que ali residem) e a rua: o mundo exterior que se mede pela
“luta”, pela competição e pelo anonimato cruel de individualidades
e individualismos. Dai por que, em casa e no código da família
brasileira, existe uma tendência de produzir sempre um discurso
conservador, onde os valores morais tradicionais são defendidos pelos
mais velhos e pelos homens. Daí também por que na casa podemos
ter de tudo, como se ali o espaço fosse marcado por um supremo
reconhecimento pessoal: uma espécie de supercidadania que
contrasta terrivelmente com a ausência total de reconhecimento que
existe na rua. Em casa, portanto, tenho tudo e sou reconhecido nos
meus mais ínfimos desejos e vontades. Sou membro perpétuo de uma
corporação (a família brasileira) que não morre e que, com sua rede
de compadres, empregados, servidores e amigos, tem muito mais
vitalidade e permanência do que o governo e a administração
pública, que sempre competem com ela pelo respeito do cidadão.
Digo que a casa, por tudo isso, provê uma leitura especial do mundo
brasileiro. É certo que toda sociedade moderna tem casa e rua. Mas
o meu argumento aqui é no sentido de salientar que a casa, entre nós,
ordena um mundo à parte. Universo onde o tempo não é histórico,
mas cíclico, tempo que vive de durações que não se medem por
relógios, mas por retratos amarelados e corroídos pelas traças, como
naquela poesia de Drummond. Um tempo que é medido pela morte
dos mais velhos e pelo batizado dos mais novos. Um tempo cuja
duração e experiência podem ser revertidas pela doce saudade dos
dias em que a família estava toda reunida em torno de alguma figura
importante para a sua unidade e sobrevivência, enquanto grupo
uno e integrado. Quer dizer, quando observa mos que a casa
contém todas essas dimensões, temos que nos dar conta de que
vivemos numa sociedade onde casa e rua são mais que meros
espaços geográficos. São modos de ler, explicar e falar do mundo.
Mas como é o espaço da rua? Bem, já sabemos que ela é local
de “movimento”. Como um rio, a rua se move sempre num fluxo de
pessoas indiferenciadas e desconhecidas que nós chamamos de
“povo” e de “massa”. As palavras são reveladoras. Em casa, temos as
“pessoas”, e todos lá são “gente”: “nossa gente”. Mas na rua temos
apenas grupos desarticulados de indivíduos — a “massa” humana
que povoa as nossas cidades e que remete sempre à exploração e a
uma concepção de cidadania e de trabalho que é nitidamente
negativa. De fato, falamos da “rua” como um lugar de “luta”, de
“batalha”, espaço cuja crueldade se dá no fato de contrariar
frontalmente todas as nossas vontades. Daí por que dizemos que a rua
é equivalente à “dura realidade da vida”. O fluxo da vida, com suas
contradições, durezas e surpresas, está certamente na rua, onde o
tempo é medido pelo relógio e a história se faz acrescentando
evento a evento numa cadeia complexa e infinita. Na rua, então, o
tempo corre, voa e passa. Muito mais que no lar, onde ele está
suspenso entre as relações prazerosas e amorosas de todos com todos.
Mas aqui, no negro do asfalto, no calor da caminhada para se chegar
a algum lugar, no nervosismo do confronto com o policial imbuído
de sua autoridade legal, que nos trata como coisas e como
indivíduos sem nome nem face, o reino é sinônimo de luta e sangue.
Na rua não há, teoricamente, nem amor, nem consideração, nem
respeito, nem amizade. È local perigoso, conforme atesta o ritual
aflitivo e complexo que realizamos quando um filho nosso sai sozinho,
pela primeira vez, para ir ao cinema, ao baile ou à escola. Que
insegurança nos possui quando um pedaço de nosso sangue e de
nossa casa vai ao encontro desse oceano de maldade e insegurança
que é a rua brasileira. Não é, pois, ao léu que damos conselhos
quando alguém se aventura nesta selva. Lá, falamos sempre, e nosso
próprio comportamento na rua acaba confirmando nossas piores e
mais sombrias profecias, estamos no reino do engano, da confusão e
do logro. Local onde ninguém nos respeita como “gente” ou
“pessoa”, como entidade moral dotada de rosto e vontade. A rua
compensa a casa e a casa equilibra a rua. No Brasil, casa e rua são
como os dois lados de uma mesma moeda. O que se perde de um
lado, ganha-se do outro O que é negado em casa — como o sexo e o
trabalho —, tem-se na rua. Não creio ser necessário chamar a atenção
para o fato significativo de que, em nossa classificação de eventos,
relações e pessoas, a casa e a rua entram como um eixo dos mais
fundamentais. Assim, se a mulher é da rua, ela deve ser vista e tratada
de um modo. Trata-se, para ser mais preciso, das chamadas mulheres
da “vida”, pois rua e vida formam uma equação importante no nosso
sistema de valores. Do mesmo modo, se a discussão foi na rua, então
é quase certo que pode degenerar em conflito. Em casa, pode
promover um alto entendimento. Também falamos que comida de
rua é ruim ou venenosa, enquanto a comida caseira é boa (ou deve
ser assim) por definição. Até mesmo objetos e pessoas, como crianças,
podem ser diferentemente interpretados caso sejam da rua ou de
casa.
Por tudo isso, o universo da rua — tal como ocorre com o
mundo da casa — é mais que um espaço físico demarcado e
universalmente reconhecido. Pois para nós, brasileiros, a rua forma
uma espécie de perspectiva pela qual o mundo pode ser lido e
interpretado. Uma perspectiva, repito, oposta — mas complementar
— à da casa, e onde predominam a desconfiança e a insegurança.
Aqui, quem governa não é mais o pai, o irmão, o marido, a mulher e
as redes de parentesco e amizade que nos têm como uma pessoa e
um amigo. Ao contrário, o comando é dado à autoridade que
governa com a lei, a qual torna todo mundo igual no propósito de
desautorizar e até mesmo explorar de forma impiedosa. Todos
sabemos, por experiência respeitável e profunda, que na rua não se
deve brincar com quem representa a ordem, pois naquele espaço se
corre o grave risco de ser confundido com quem é “ninguém”. E
entre ser alguém e ser ninguém há um mundo no caso brasileiro. Um
universo ou abismo que passa pela construção do espaço da casa,
com seu aconchego e sua rede imperativa de relações calorosas, e o
espaço da rua, com seu anonimato e sua insegurança, suas leis e sua
polícia. Daí por que, na rua, tendemos a ser todos revolucionários e
revoltados, membros destituídos de uma massa de anônimos
trabalhadores.
Mas, além disso tudo, a rua é espaço que permite a mediação
pelo trabalho — o famoso “batente”, nome já indicativo de um
obstáculo que temos que cruzar, ultrapassar ou tropeçar. Trabalho
que no nosso sistema é concebido como castigo. E o nome diz tudo,
pois a palavra deriva do latim tripaliare, que significa castigar com o
tripaliu, instrumento que, na Roma Antiga, era um objeto de tortura,
consistindo numa espécie de canga usada para supliciar escravos.
Entre a casa (onde não deve haver trabalho e, curiosa e
erroneamente, não tomamos o trabalho doméstico como tal, mas
como “serviço” ou até mesmo prazer ou favor...) e a rua, o trabalho
duro é visto no Brasil como algo bíblico. Muito diferente da
concepção anglo-saxã que equaciona trabalho (work) com agir e
fazer, de acordo com sua concepção original. Entre nós, porém,
perdura a tradição católica romana e não a tradição reformadora
de Calvino, que transformou o trabalho como castigo numa ação
destinada à salvação. Mas nós, brasileiros, que não nos formamos
nessa tradição calvinista, achamos que o trabalho é um horror. Não
é à toa que o nosso panteão de heróis oscila entre uma imagem
deificada do malandro (aquele que vive na rua sem trabalhar e
ganha o máximo com um mínimo de esforço), o renunciador ou o
santo (aquele que abandona o trabalho neste e deste mundo e vai
trabalhar para o outro, como fazem os santos e líderes religiosos) e o
caxias, que talvez não seja o trabalhador, mas o cumpridor de leis que
devem obrigar os outros a trabalhar... O fato é que não temos a
glorificação do trabalhador, nem a idéia de que a rua e o trabalho
são locais onde se pode honestamente enriquecer e ganhar
dignidade. Para nós, esses espaços e essa mediação entre casa e rua
pelo trabalho são algo muito complexo.
Mas poderia ser de outro jeito numa sociedade em que até
outro dia havia escravos e onde as pessoas decentes não saíam à rua
nem podiam trabalhar com as mãos? É claro que não... No nosso
sistema, tão fortemente marcado pelo trabalho escravo, as relações
entre patrões e empregados ficaram definitivamente confundidas.
Não era algo apenas econômico, mas também uma relação moral
onde não só um tirava o trabalho do outro, mas era seu
representante e dono perante a sociedade como um todo. O
patrão, num sistema escravocrata, é mais que um explorador de
trabalho, sendo dono e até mesmo responsável moral pelo escravo.
Essas relações são complicadas e, dizem os especialistas, muito
difíceis de serem mantidas em nível produtivo. Pois aqui a relação vai
do econômico ao moral, totalizando-se em muitas dimensões e
atingindo diversas camadas sociais. Creio que isso embebeu de tal
modo as nossas concepções de trabalho e suas relações que até hoje
misturamos uma relação puramente econômica com laços pessoais
de simpatia e amizade, o que confunde o empregado e permite ao
patrão exercer duplo controle da situação. Ele assim pode governar o
trabalho, pois é quem oferece o emprego, e pode controlar as
reivindicações dos empregados, pois apela para a moralidade das
relações pessoais que, em muitos casos, e sobretudo nas pequenas
empresas e no comércio, tende a ofuscar a relação patrãoempregado.
O caso mais típico e mais claro dessa problemática —
muito complexa e a meu ver ainda pouco estudada — é o das
chamadas “empregadas domésticas”, as quais são pessoas que,
vivendo nas casas dos seus patrões, realizam aquilo que, em casa,
está banido por definição: o trabalho. Nessa situação, elas repetem a
mesma situação dos escravos da casa de antigamente, permitindo
confundir relações morais de intimidade e simpatia com uma relação
puramente econômica, quase sempre criando um conjunto de
dramas que estão associados a esse tipo de relação de trabalho onde
o econômico está subordinado ao político e ao moral, ou neles
embebido. Tal como deve ocorrer quando a casa se mistura com a
rua...
O fato, porém, é que a concepção de trabalho fica
confundida num sistema onde as mediações entre casa e rua são tão
complexas. E onde, como vimos, casa e rua são mais que locais físicos.
São também espaços de onde se pode julgar, classificar, medir, avaliar
e decidir sobre ações, pessoas, relações e imoralidades.
Compensando-se mutuamente e sendo ambas complementadas
pelo espaço do “outro mundo”, onde residem deuses e espíritos,
casa e rua formam os espaços básicos através dos quais circulamos
na nossa sociabilidade. Sobretudo porque o que falta na rua existe em
abundância na casa. E ainda porque eles não podem ser confundidos
sob pena de grandes confusões e desordens.


Capíulo 3

A ilusão das relações raciais


No século XVIII, Antonil percebeu algo interessante numa
sociedade dividida entre senhores e escravos, e escreveu: “O Brasil é
um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um
paraíso para os mulatos”. A frase foi, como sempre acontece com as
coisas profundas que são faladas com simplicidade, mal entendida. É
que quase todos os seus intérpretes viram nela uma afirmativa ao pé
da letra, algo que se referia exclusivamente a um fenômeno biológico
e racial, quando de fato ela diz muito mais de fatos sociológicos
básicos. Na verdade, penso que, caso se queira ter uma
compreensão mais profunda e original das relações raciais que
existem no Brasil, será necessário tomar essa expressão nos seus
sentidos velados, considerando todas as suas implicações morais e
políticas. E elas, conforme veremos a seguir, nos levam muito longe de
uma mera questão fisiológica de raças.
Digo que a frase de Antonil tem um sentido sociológico e
simbólico profundo porque, no contexto das teorias raciais do
momento, ela é no mínimo contraditória. Realmente, não custa
relembrar que as teorias racistas européias e norte-americanas
não eram tanto contra o negro ou o amarelo (o índio,
genericamente falando, também discriminado como inferior), que
eram nítida e injustamente inferiorizados relativamente ao branco,
mas que também eram vistos como donos de poucas qualidades
positivas enquanto “raça”. O problema maior dessas doutrinas, o
horror que declaravam, era, isso sim, contra a mistura ou
miscigenação das “raças”. É certo, diziam elas, que havia uma
nítida ordem natural que graduava, escalonava e hierarquizava as
“raças humanas”, conforme ocorria com as espécies de animais e as
plantas; é certo também, afirmavam tais teorias, que o branco se
situava no alto da escala, com o branco da Europa Ocidental
assumindo indiscutível posição de liderança na criação animal e
humana do planeta. Mas era também seguro que amarelos e negros
tinham qualidades que a mistura denegria e levava ao extermínio.
Saber por que tais teorias tinham esse horror à miscigenação é
conduzir a curiosidade intelectual para um dos pontos-chaves que
distinguem e esclarecem o “racismo à européia” ou “à americana” e
o nosso conhecido, dissimulado e disseminado “racismo à brasileira”.
Tome-se o exemplo mais famoso dessas idéias, o Conde de
Gobineau, que, inclusive, residiu no Rio de Janeiro como cônsul da
França e se tornou amigo e interlocutor intelectual de nosso
Imperador, D. Pedro II. Ele diz claramente, num livro célebre pelas
idéias racistas e pelos erros no que diz respeito à Antropologia das
diferenciações humanas, que é possível dividir as “raças” de acordo
com três critérios fundamentais: o intelecto, as propensões animais e
as manifestações morais. No curso dessa obra, significativamente
intitulada A diversidade moral e intelectual das raças (publicada em
1856), Gobineau, entretanto, não realiza um exercício simplista, no
sentido de dizer que a “raça” branca era superior em tudo. Há
muita inteligência nos preconceitos e nos autoritarismos. Muito ao
contrário, ao comparar, por exemplo, brancos e amarelos no que diz
respeito às suas “propensões animais”, ele situa os primeiros abaixo
dos segundos. Quem não se salva, porém, como infelizmente
acontece até hoje na nossa sociedade, são os negros, sempre e em
tudo situados abaixo de brancos e amarelos.
Mas onde Gobineau realmente excedeu a si mesmo e ousou
com confiança inusitada, mesmo para quem estava imbuído de uma
ideologia autoritária de sua própria superioridade, foi na previsão de
que o Brasil levaria menos de 200 anos para se acabar como povo! Por
quê? Ora, simplesmente porque ele via com seus próprios olhos, e
escrevia revoltado a seus amigos franceses, o quanto a nossa
sociedade permitia a mistura insana de raças. Essa miscigenação e
esse acasalamento é que o certificavam do nosso fim como povo e
como processo biológico. Seu problema, conforme estou revelando,
não era a existência de raças diferentes, desde que essas “raças”
obviamente ficassem no seu lugar e naturalmente não se
misturassem. Gobineau, como se vê, foi o pai, ou melhor, o
verdadeiro genitor de um dos valores mais caros ao preconceito
racial de qualquer sociedade hierarquizada. Refiro-me ao fato de
que ele não se colocou contra a hierarquia que governava,
conforme supunha, a diversidade humana no que diz respeito aos
seus traços biológicos, mas foi terminantemente contrário ao contato
social íntimo entre elas. E é precisamente isso, conforme sabe (mas
não expressa) todo racista, que implica a idéia de miscigenação, já
que ela importa contato (e contato íntimo, posto que sexual) entre
pessoas que, na teoria racista, são vistas e classificadas como
pertencendo a espécies diferentes. Daí a palavra “mulato”, que vem
de mulo, o animal ambíguo e híbrido por excelência; aquele que é
incapaz de reproduzir-se enquanto tal, pois é o resultado de um
cruzamento entre tipos genéticos altamente diferenciados.
Mas, no seu horror ao mulatismo e ao contato íntimo e
amoroso entre os tipos humanos, Gobineau não estava só. Outros
teóricos importantes, como Buckle, Couty e Agassiz — para ficarmos
com aqueles que foram influentes entre os teóricos do racismo no
Brasil —, também exprimiram esse medo da mistura e trataram a
nossa população como um todo potencialmente degenerado de
híbridos incapazes de criarem alguma coisa forte ou positiva. Nesse
contexto, vale a pena citar um trecho escrito por Agassiz, opinando
precisamente sobre a nossa sociedade: “Que qualquer um que
duvida dos males dessa mistura de raças, e se inclina, por malentendida
filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as
separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração
decorrente do amálgama de raças, mais geral aqui do que em
qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as
melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um
tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental.” O
célebre zoólogo de Harvard fecha com Gobineau, postulando um
futuro terrível para o Brasil. Ê que certamente não havia descoberto o
valor positivo do mulatismo e, sobretudo, a capacidade brasileira de
recuperar e trabalhar o ambíguo como dado positivo, na
glorificação da mulata e do mestiço como sendo, no fundo, uma
síntese perfeita do melhor que pode existir no negro, no branco e no
índio. E agora, suponho, estamos em posição para retornarmos à
frase notável de Antonil a fim de entendê-la em toda a sua
profundidade.
Noto, primeiramente, que Antonil não fala de branco, negro e
mulato numa equação biológica. Ao contrário, com eles constrói
uma associação social ou normal, pois que relaciona o branco com o
purgatório, o negro com o inferno e o mulato com o paraíso. Creio ser
a primeira vez que se estabelece um triângulo para o entendimento
da sociedade brasileira e isso, sustento, é significativo e importante.
Significativo porque eu mesmo tenho repetido seguidamente que o
Brasil não é um país dual onde se opera somente com uma lógica do
dentro ou fora; do certo ou errado; do homem ou mulher; do
casado ou separado; de Deus ou Diabo; do preto ou branco. Ao
contrário, no caso de nossa sociedade, a dificuldade parece ser
justamente a de aplicar esse dualismo de caráter exclusivo; ou seja,
uma oposição que determina a inclusão de um termo e a automática
exclusão do outro, como é comum no racismo americano ou sulafricano,
que nós brasileiros consideramos brutal porque no nosso
caso tudo se passa conforme Antonil maravilhosamente intuiu. Isto é,
entre o preto e o branco (que nos sistemas anglo-saxão e sul-africano
são termos exclusivos), nós temos um conjunto infinito e variado de
categorias intermediárias em que o mulato representa uma
cristalização perfeita.
De modo plenamente coerente com essa ordenação
hierarquizada das categorias diferenciais do gênero humano, Antonil
as equaciona simultaneamente a três espaços sagrados, críticos na
cosmologia católica romana: o paraíso, o inferno e o purgatório.
Não será preciso notar que a correlação aqui é igualmente
perfeita. Se o mulato é um ser intermediário e ambíguo, uma espécie
de Dona Flor das relações raciais brasileiras, categoria que existe de
fato e de direito na ideologia social da sociedade e se legitima
precisamente por instituir o intermediário e a síntese dos opostos como
algo positivo, sua associação com o Paraíso nos ajuda a entender a
genial sensibilidade de Antonil para os valores mais profundos da
nossa sociedade. Porque não há dúvida alguma de que ele percebeu
o valor positivo que associamos ao intermediário, a categoria que
fica no meio, ao ser situado entre os extremos e que, por isso mesmo,
permite a sua associação e a negação de suas tendências e
características antagônicas. Quem inventou, ou melhor, percebeu a
positividade da mulata, da mulataria e das categorias intermediárias
em geral foi um jesuíta que, muito acertadamente, equacionou esse
valor altamente positivo, atribuído a tal categoria na nossa
sociedade, ao próprio Paraíso.
Tal associação permite dizer que, no Brasil, ao contrário do que
aconteceu em outros países — e eu penso aqui, sobretudo, nos
Estados Unidos —, não ficamos com uma classificação racial
formalizada em preto e branco (ou talvez, mais precisamente, em
preto ou branco), com aqueles conhecidos refinamentos ideológicos
que, na legislação norte-americana, eram pródigos em descobrir
porções ínfimas daquilo que a lei chamava de “sangue negro” nas
veias de pessoas de cor branca, que assim passavam a ser
consideradas pretas, mesmo que sua fenotipia (ou aparência externa)
fosse inconfundivelmente “branca”. Trata-se, conforme já apontou
um sociólogo brasileiro, Oracy Nogueira, de um tipo de preconceito
racial que considera básicas as “origens” das pessoas, e não
somente a “marca” do tipo racial, como ocorre no caso brasileiro.
Desse modo, o nosso preconceito seria muito mais contextualizado e
sofisticado do que o norte-americano, que é direto e formal. A
conseqüência disso, sabemos bem, é a dificuldade de combater o
nosso preconceito, que em certo sentido tem, pelo fato de ser
variável, enorme e vantajosa invisibilidade. Na realidade, acabamos
por desenvolver o preconceito de ter preconceito, conforme disse
Florestan Fernandes numa frase lapidar.
O fato de existir uma legislação rígida, racista e dualística nos
Estados Unidos — um conjunto de leis que até bem pouco tempo
impediam o movimento de quem era considerado negro em certas
áreas urbanas, escolas, restaurantes, hotéis, bares e muitas outras
instituições sociais — revela esse dualismo claro que indica sem
maiores embaraços quem está dentro ou fora; quem tem direitos e
quem não tem; quem é branco ou é preto! Mas aqui, conforme
sabemos, há uma radicai exclusão de todas as categorias
intermediárias, que são absorvidas, com todos os riscos e penalidades,
às duas categorias principais, em franca oposição e em aberta
distinção Aqui, o mulato não está no paraíso de Antonil, mas no
inferno. E os motivos dessa equação são exatamente opostos. É que
numa sociedade igualitária e protestante, como são os Estados
Unidos, o intermediário representa tudo o que deve ser excluído da
realidade social. Dentro de uma sociedade que tentou eliminar a
tradição imemorial das leis implícitas, aquelas que podiam ser
aplicadas ou não, que podiam ser lembradas ou não, que podiam
variar de acordo com quem praticava o crime ou não, o mulato, o
intermediário, representava a negação viva de tudo aquilo que a lei
estabelecia positivamente. Ele mostrava o pecado e o perigo da
intimidade entre camadas sociais que deveriam permanecer
diferenciadas, mesmo que fossem teoricamente consideradas iguais.
Além disso, ele indicava a presença objetiva de uma relação entre
camadas que não podiam comunicar-se sexual ou afetivamente.
Do mesmo modo que as leis de uma sociedade igualitária e liberal
não admitem o “jeitinho” ou o “mais-ou-menos”, as relações entre
grupos sociais não podem admitir a intermediação. E o mulato é
precisamente essa possibilidade que, nesses sistemas, é definida
como imoralidade. Lá, então, diferentemente daqui, o negativo é
aquele que está entre as coisas e as pessoas. O que se busca eliminar
é a relação, pois a ênfase da ideologia social e dos valores é sempre
no papel do indivíduo como o centro e a razão de ser da sociedade.
A igualdade jurídica e constitucional dos membros da sociedade
americana forma uma poderosa tradição que chegou àquele país
com os Puritanos ingleses e se consolidou nas doutrinas liberais que
marcaram o nascimento e a expansão da sociedade americana
como nação. Nesse sistema de indivíduos teoricamente “iguais”, a
experiência da escravidão e das hierarquias que ela certamente
determina por sua própria natureza enquanto sistema — pois há
escravos da casa e do eito, escravos educados e sem instrução,
escravos que ficam mais perto ou mais longe dos seus senhores, e isso
engendra uma gradação que atua de modo informal,
contrabalançando a rigidez das categorias jurídicas que tudo
separam entre senhor e escravo — foi certamente muito mais
problemática do que no caso do Brasil.
Porquê?
Primeiro, conforme estou revelando, pela existência da
tradição igualitária, que no universo social anglo-saxão era muito
mais forte que em Portugal ou no Brasil. Noto que foi a Inglaterra que
deu forma moderna à idéia econômica de mercado e de
capitalismo. E com isso veio a prática de equacionar todos como
iguais perante as leis. Foi ali também que variantes radicais do
protestantismo — como o puritanismo e o calvinismo — ganharam
amplo terreno. Isso tudo conduziu a um individualismo radical —
“possessivo”, no dizer de um teórico dessas questões, o cientista
político C. B. Macpherson. Tal ideologia social nega as relações
sociais e, com isso, a presença das redes imperativas de amizade e de
parentesco que sustentavam a chamada moral tradicional; ou seja:
aquela moralidade que afirma a importância do todo (ou da
sociedade) sobre o indivíduo. Dentro dela, a pessoa é importante
porque pertence a uma família e tem compadres e amigos. È a
relação que ajuda a defini-la como ser humano e como entidade
social significativa. Na moralidade individualista moderna, porém,
inaugurada com a Reforma e com a Revolução Industrial, a família e a
sociedade é que eram constituídas de indivíduos, tal como os clubes,
as paróquias e os partidos políticos. Aqui, o indivíduo não é
possuído (ou englobado) por sua família ou por seus pais, confessores
ou patrões. Ao contrário, é dono de si mesmo e pode, em
conseqüência, dispor de sua força de trabalho individualmente num
mercado de homens livres, mercado esse que desvincula
moralmente quem oferece de quem faz o trabalho.
Pois bem, todos esses fatores tornavam difícil a convivência da
escravidão com essa ideologia que, no caso dos Estados Unidos, é
dominante. É certamente isso que explica a localização geográfica
da economia escravocrata nos Estados do Sul. De fato, até o
advento da Guerra Civil (que começa em 1861 e vai até 1865,
fazendo mais de 617 mil mortes), os Estados Unidos são como se
fossem duas sociedades distintas em política, economia e,
sobretudo, ideologia e valores. Há um Norte igualitário e
individualista, que não pode admitir a escravidão; e um Sul
hierarquizado, aristocrático e relacional, onde existe uma sociedade
cheia de nuances, parecido nisso tudo com o Brasil. A diferença é
que, nos Estados Unidos, o Sul perdeu e o Norte estabeleceu por todo
o país sua hegemonia moral e política. A contradição gerada pelo
negro livre numa sociedade que pregava uma igualdade de todos
com todos foi o preconceito racial radical, sustentado não somente
por costumes e atitudes veladas e muitas vezes secretas de brancos ou
de mulatos, mas por uma série de leis que explicitamente impediam a
competição econômica de negros e brancos como iguais num
mercado de trabalhadores livres.
Tudo isso nos conduz a algumas correlações interessantes que
permitem elucidar o caso do “racismo à brasileira” e do nosso
famoso triângulo racial. É que primeiramente devemos ressaltar como
as sociedades igualitárias engendraram formas de preconceito muito
claras, porque sua ideologia negava o intermediário, a gradação e a
relação entre grupos que deveriam permanecer separados, embora
pudessem ser considerados teoricamente iguais. Tal fato não existiu na
sociedade brasileira e até hoje tem débil aceitação social. Realmente,
estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu
como sistema altamente hierarquizado, onde a posição de negros,
índios e brancos está ainda tragicamente de acordo com a
hierarquia das raças. Numa sociedade onde não há igualdade entre
as pessoas, o preconceito velado é forma muito mais eficiente de
discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e
“saibam” qual é ele.
Finalmente, ao lado disso, temos um “triângulo racial” que
impede uma visão histórica e social da nossa formação como
sociedade. É que, quando acreditamos que o Brasil foi feito de
negros, brancos e índios, estamos aceitando sem muita crítica a
idéia de que esses contingentes humanos se encontraram de modo
espontâneo, numa espécie de carnaval social e biológico. Mas nada
disso é verdade. O fato contundente de nossa história é que somos
um país feito por portugueses brancos e aristocráticos, uma
sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro
rígido de valores discriminatórios. Os portugueses já tinham uma
legislação discriminatória contra judeus, mouros e negros, muito antes
de terem chegado ao Brasil; e quando aqui chegaram apenas
ampliaram essas formas de preconceito. A mistura de raças foi um
modo de esconder a profunda injustiça social contra negros, índios e
mulatos, pois, situando no biológico uma questão profundamente
social, econômica e política, deixava-se de lado a problemática
mais básica da sociedade. De fato, é mais fácil dizer que o Brasil foi
formado por um triângulo de raças, o que nos conduz ao mito da
democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade
hierarquizada, que opera por meio de gradações e que, por isso
mesmo, pode admitir, entre o branco superior e o negro pobre e
inferior, uma série de critérios de classificação. Assim, podemos situar
as pessoas pela cor da pele ou pelo dinheiro. Pelo poder que detêm
ou pela feiúra de seus rostos. Pelos seus pais e nome de família, ou
por sua conta bancária. As possibilidades são ilimitadas, e isso apenas
nos diz de um sistema com enorme e até agora inabalável confiança
no credo segundo o qual, dentro dele, “cada um sabe muito bem o
seu lugar”.
É claro que podemos ter uma democracia racial no Brasil. Mas
ela, conforme sabemos, terá que estar fundada primeiro numa
positividade jurídica que assegure a todos os brasileiros o direito
básico de toda a igualdade: o direito de ser igual perante a lei!
Enquanto isso não for descoberto, ficaremos sempre usando a nossa
mulataria e os nossos mestiços como modo de falar de um processo
social marcado pela desigualdade, como se tudo pudesse ser
transcrito no plano do biológico e do racial. Na nossa ideologia
nacional, temos um mito de três raças formadoras. Não se pode
negar o mito. Mas o que se pode indicar é que o mito é precisamente
isso: uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda não se
sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de
classificação. Assim, o “racismo à brasileira”, paradoxalmente, torna
a injustiça algo tolerável, e a diferença , uma questão de tempo e
amor. Eis, numa cápsula, o segredo da fábula das três raças...


Capítulo 4

Sobre comidas e mulheres...

A sociedade manifesta-se por meio de muitos espelhos e vários
idiomas. Um dos mais importantes no caso do Brasil é, sem dúvida, o
código da comida, em seus desdobramentos morais que acabam
ajudando a situar também a mulher e o feminino no seu sentido talvez
mais tradicional. Comidas e mulheres, assim, exprimem teoricamente
a sociedade, tanto quanto a política, a economia, a família, o
espaço e o tempo, em suas preocupações e, certamente, em suas
contradições.
Creio que foi o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss quem
chamou a atenção para dois processos naturais — o cru e o cozido —,
não somente como dois estados pelos quais passam todos os
alimentos, mas como modalidades pelas quais se pode falar de
transformações sociais importantíssimas. De fato, o cru e o cozido, o
alimento e a comida, o doce e o salgado ajudam a classificar coisas,
pessoas e até mesmo ações morais importantes no nosso mundo
Assim é que equacionamos simbolicamente a mulher com a
comida e o doce com o feminino, deixando o salgado e o indigesto
para estarem associados a tudo o que nos “cheira” a coisas duras e
cruéis. Ao mundo difícil da “vida”, da “rua” e do trabalho em geral,
esses universos que são profundamente masculinos e, por conseguinte,
estão longe das cozinhas, dos temperos e das boas mesas e camas,
onde se pode exercer uma comensalidade enriquecedora. Num
plano mais filosófico e universal, sabemos que cru se liga a um estado
de selvageria (a um estado de natureza), ao passo que o cozido se
relaciona ao universo socialmente elaborado que toda sociedade
humana define como sendo o de sua cultura e ideologia. Sabendo
que o cru e o cozido exprimem mais que dois processos “naturais”,
podemos agora entender por que falamos que “o apressado come
cru...”. É que, com tal metáfora (ou associação entre o cru e a
pressa), estamos nos referindo a esse elo entre a selvageria ou
sofreguidão da pressa e o lado selvagem, ruim ou cru das coisas e da
vida. O calmo, pode-se dizer, complementando o provérbio
revelador, come sempre cozido, pois quem tem calma possui um
elemento da civilização e a civilização funda-se precisamente num
saber esperar...
Mas o que é também interessante na oposição entre o cru e o
cozido é descobrir que o universo da comida permite pensar o
mundo integrando o intelectual com o sensível. Quer dizer: qualquer
refeição mais bem preparada ou mais “caprichada”, conforme
falamos coloquialmente, pode (e deve) promover essa união ou
casamento entre o olhar — que remete ao intelecto — e,
naturalmente, o gosto e o cheiro, que indicam o caminho do nariz,
da boca e do estômago. Tudo que leva ao corpo, à sensualidade e à
pança ou barriga, conforme falamos no Brasil. Assim, “encher a
barriga” ou “encher a pança” é um ato concreto destinado à
saciedade do corpo, mas é também um modo de se referir a uma
ação simbólica. A tudo que foi capaz de satisfazer plenamente uma
pessoa...
Mas é básico continuar enfatizando que a comida (com suas
possibilidades simbólicas) permite realizar uma importante mediação
entre cabeça e barriga, entre corpo e alma, permitindo operar
simultaneamente com uma série de códigos culturais que
normalmente estão separados, como o gustativo (que distingue o
salgado do doce e do amargo; o gostoso do péssimo; o quente do
frio), o código de odores (que permite separar dos outros o
alimento que tem bom cheiro e está sadio e bom), o código visual
(que nos faz comer ou não algum aumento com os olhos, ou recusá-lo
por sua aparência, tendo ou não “olho maior do que a barriga”) e,
ainda, um código digestivo, posto que no Brasil também
classificamos os alimentos por sua capacidade de permitir ou não
uma digestão fácil e agradável. Ora, é precisamente essa possibilidade
de síntese e de equilíbrio entre o olho e a barriga — a parte de
cima do corpo e sua parte de baixo — que a relação entre o cru e o
cozido ajuda e consegue, entre nós, realizar.
Mas esses estados e suas concepções variam. Para europeus e
norte-americanos, cru e cozido, alimento e comida, são categorias
científicas, nem sempre levadas em conta no próprio ato de comer,
conforme nos revelam as imensas saladas e as “comidas naturais” que
são digeridas em países como Estados Unidos e Inglaterra como
pratos principais, algo bem recente no Brasil.
Para nós, o cru e o cozido podem significar com muito mais
facilidade um universo complexo, uma área do nosso sistema onde
podemos nos enxergar como formidáveis e nos levar finalmente,
muito a sério. Aqui, contamos uma história para nós mesmos, e essa é
uma narrativa que admiramos e que nos permite que admiremos a nós
mesmos, para usarmos a fórmula de Clifford Geertz, um sofisticado
antropólogo americano. Sabemos que somos tão bons em comida
quanto em mulher ou futebol. Aqui, afirmamos entre sorrisos, somos os
melhores do mundo... E, como não poderia deixar de ser, o mundo
das comidas nos leva para casa, para os nossos parentes e amigos,
para os nossos companheiros de teto e de mesa. Essas pessoas que
compartilham intensamente de nossa vida e intimidade. Intimidade
que se faz na casa e na mesa, onde somos sempre e
necessariamente tratados como alguém e temos direitos perpétuos
de cidadania.
Nesse sentido, o cru seria tudo que está fora dessa área da casa
onde somos vistos e tratados com amor, carinho e consideração,
podendo — conseqüentemente — escolher a comida. Ou seja: o cru é
tudo aquilo que está fora do controle da casa. Tudo que pode até
mesmo estar oposto ao mundo da casa, como uma área cruel e dura
do mundo social. Um espaço repleto de movimento contraditório,
onde as pessoas não se harmonizam entre si, mas disputam na
competição uma espécie de batalha que se revela sobretudo no
trabalho.
Já o cozido é algo social por definição. Não é somente o nome
de um processo físico — o cozimento das coisas pelo fogo —, mas,
sobretudo, o nome de um prato sagrado dentro da nossa culinária.
Prato, aliás, que diz tudo dessas metáforas que as comidas permitem
realizar e que fazem desta sociedade o Brasil. De fato, no cozido
temos o alimento que junta vegetais, legumes e carnes variadas num
prato que tem peso social muito importante, pois que inventa a sua
própria ocasião social. Quando se come um cozido, não se come um
prato qualquer. È que há, no Brasil, certos alimentos ou pratos que
abrem uma brecha definitiva no mundo diário, engendrando
ocasiões em que as relações sociais devem ser saboreadas e
prazerosamente desfrutadas como as comidas que elas estão
celebrando. E de modo tão intenso que não se sabe, no fim, se foi a
comida que celebrou as relações sociais, estando a serviço delas, ou
se foram os elos de parentesco, compadrio e amizade que estiveram
a serviço da boa mesa.
Tudo isso revela que a nossa concepção do cozido, em
oposição ao cru, estabelece uma distinção entre coisas que são
separadas e estanques — individualizadas umas das outras — , e tudo
isso é o cru ou faz parte do que é cru... E o cozido é concebido
como algo que permite a relação e a mistura de coisas do mundo
que estavam eventualmente separadas. Voltarei a esse problema
mais adiante. Agora, é importante falar de outra distinção que segue
a mesma estrada do cru e do cozido.
Quero me referir à distinção entre comida e alimento, que é
tão importante no sistema social brasileiro. Realmente, para nós,
saber comer é algo muito mais refinado do que o simples ato de
alimentar-se. Os americanos, sabemos, inventaram a chamada “fast
food” (alimento rápido) e, por causa disso mesmo, podem comer
em pé, sentados, com estranhos ou amigos, sós ou acompanhados.
Comem também misturando o doce com o salgado, e uma de suas
preocupações básicas é, com raras exceções, comer para viver;
comer, entre eles, é um ato que pode ser profundamente individual.
Para nós, brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou
socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento
é comida. Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter
uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer, de acordo
com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade. Em
outras palavras, o alimento é como uma grande moldura; mas a
comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os
alimentos; aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e
depois com a boca, o nariz, a boa companhia e, finalmente, a
barriga...
O alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito
a todos os seres humanos: amigos ou inimigos, gente de perto ou de
longe, da rua ou de casa, do céu ou da terra. Mas a
comida é algo que define um domínio e põe as coisas em foco.
Assim, a comida é correspondente ao famoso e antigo
“de-comer”, expressão equivalente a refeição, como de resto
é a palavra comida. Por outro lado, comida se refere a algo
costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a estabelecer
uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe
ou pessoa.
É por termos essa concepção que nós, brasileiros, podemos dizer
que queijo para nós é alimento, mas é comida de ratos. Logo: rato =
queijo. Falar de queijo, então, é implicar a idéia de rato, já que esse
alimento é algo irresistível para os ratos, marcando sua identidade e
personalidade. Pela mesma lógica, leite é alimento para os seres
humanos, mas é comida para nenéns. E osso é comida de cachorro,
milho, de galinha, e sanduíche, de americano. Do mesmo modo,
sabemos que churrasco é comida de gaúcho, prato que se come
com os amigos e que requer certa intimidade e certo estar-àvontade.
Mas qual é a comida brasileira básica? Certamente que se trata
do feijão-com-arroz, essa comida que é até mesmo usada como
metáfora para a rotina do mundo diário. Mas é preciso notar que,
tanto no arroz quanto no feijão, temos um alimento que é cozinhado.
E que é comido como se come um cozido: misturando-se as duas
porções num só prato, e assim formando uma massa indiferenciada
que assume as propriedades gustativas dos dois elementos. De tal
modo que o feijão, que é preto, deixa de ser preto, e o arroz, que é
branco, deixa também de ser branco. A síntese é uma papa ou pirão
que reúne definitivamente arroz e feijão, construindo algo como um
ser intermediário, desses que a sociedade brasileira tanto admira e
valoriza positivamente. Comer arroz-com-feijão, então, é misturar o
preto e o branco, a cama e a mesa fazendo parte de um mesmo
processo lógico e cultural...
Temos então alimento e temos comida. Comida não é apenas
uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um
jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é
ingerido como também aquele que ingere. De fato, nada mais rico, na
nossa língua, que os vários significados do verbo comer em suas
conotações.
Existem várias metáforas onde se usa a palavra comer ou comida
e onde o ato de alimentar-se tem significados precisos. Assim,
falamos em pão-duro referindo-nos a quem é avarento e, para
economizar, come o pão dormido, que fica, obviamente, duro...
Usamos a imagem do pão, pão, queijo, queijo para separar coisas,
acontecimentos e pessoas, pois não haveria nada mais distinto que o
pão (de origem vegetal e agrícola, que vai ao forno) e o queijo (de
origem animal e que se fabrica por meio de um processo de
fermentação “natural”). Falamos também que alguém pode comer
gato por lebre quando há uma confusão e uma mistura de pessoas,
coisas, eventos. Além disso, podemos ter água na boca quando
desejamos muito alguma coisa; podemos ser apanhados com a
boca na botija e, quando somos vitoriosos, estamos com a faca e o
queijo na mão, imagem que, como aquela outra que fala de quem
está por cima da carne-seca, indica a propriedade de recursos de
poder e força. Ademais, podemos ser convidados para comes e
bebes e, sempre que falamos alguma coisa que não deve ser levada
a sério, falamos da boca pra fora O processo de ingestão,
equivalente lógico a “falar da boca pra dentro”, é tão impossível,
representando uma metáfora de tudo que é inatingível ou absurdo...
O fato é que o comer, a comida e os alimentos formam um código
complexo — uma verdadeira boca rica social — que nos permite
compreender como é que a sociedade brasileira se funde enquanto
tal.
Assim, comer do bom e do melhor denota mais do que
alimentar-se, indicando um passadio de rico, uma vida boa, gostosa,
nobre. Vida de político ou de milionário que vive em palácio e tem
gasolina paga pelo erário público ou pela firma... A comida vale
tanto para indicar uma operação universal — o ato de alimentar-se —
quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais, estilos
regionais e nacionais de ser, fazer, estar e viver. Em nossas casas,
sabemos perfeitamente bem quem gosta do quê e como esse
alguém gosta de comer alguma coisa. Ê ato de amor familial e
conjugal servir o pai, o irmão, a mulher e os filhos, mas também os
subordinados e até mesmo visitantes esporádicos, levando em conta
o modo como gostam de comer os ovos, o bife, o arroz, a salada e
o feijão. E chegando mesmo ao requinte de saber como as pessoas
gostam de ter seus pratos arrumados, arte que a mãe ou a dona-decasa
conduz com precisão, solicitude e enorme paciência. Vovó
adora pimenta, papai gosta de carne no ponto, titio só come com o
arroz em cima do feijão, dona Maria detesta tomate na sua salada...
Os exemplos poderiam ser multiplicados para indicar como a comida
define as pessoas e, também, as relações que as pessoas mantêm
entre si... Nós, brasileiros, sentimos saudade de certas comidas e
poderíamos perfeitamente dizer: dize-me o que comes e dir-te-ei
quem és!
Mas há comida e comidas. Falamos que “mulher oferecida não
é comida”, num trocadilho chulo mas revelador da associação,
intrigante para estrangeiros, entre o ato sexual e o ato de ingerir
alimentos. Entre a mulher da rua, a prostituta, ou a mulher que
controla e é dona de sua capacidade de sedução e sexualidade, e
certos tipos de alimento. Assim, a mulher que põe à disposição do
grupo (da família) seus serviços domésticos, seus favores sexuais e sua
capacidade reprodutiva torna-se a fonte de virtude que, na
sociedade brasileira, se define de modo pastoral e santificado. É a
virgem, a esposa e a mãe que reside nas casas e que jamais é comida
ou poderá virar comida: presa fácil de homens que se definem como
sexualmente vorazes. Ou melhor, tais mulheres podem ser comidas,
mas primeiro são transformadas em noivas e esposas. O bolo do
casamento e o banquete que segue a cerimônia podem muito bem
ser vistos como um símbolo dessa “comida” que será a noiva, algo
elaborado e, sobretudo, socialmente aprovado pelos homens do seu
grupo. Ora, a mulher da rua, essa que é a comida de todos, é algo
muito diferente, conforme já assinalei acima. Em contraste com a
mãe, a virgem e a boa esposa, ela surge como aquela mulher que
pode literalmente causar indigestão nos homens, provocando a sua
perturbação moral. Dessas mulheres deve-se fugir — diz a moral
brasileira tradicional — mas sem elas, reza paradoxalmente essa
mesma ética, o mundo seria insosso como uma comida sem sal. As
mulheres da vida, na nobre metáfora brasileira, estão para as
mulheres da morte assim como as comidas fáceis e potencialmente
indigestas, mas deliciosas na sua ingestão escondida e apaixonada,
estariam para as comidas caseiras que eventualmente podem perder
a capacidade de deleitar, servindo tão-somente para alimentar...

O fato é que as comidas se associam à sexualidade, de tal modo
que o ato sexual pode ser traduzido como um ato de “comer”,
abarcar, englobar, ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é
(ou foi) comido. A comida, como a mulher (ou o homem, em certas
situações), desaparece dentro do comedor — ou do comilão. Essa é a
base da metáfora para o sexo, indicando que o comido é totalmente
abraçado pelo comedor. A relação sexual e o ato de comer,
portanto, aproximam-se num sentido tal que indica de que modo
nós, brasileiros, concebemos a sexualidade e a vemos, não como um
encontro de opostos e iguais (o homem e a mulher que seriam
indivíduos donos de si mesmos), mas como um modo de resolver essa
igualdade pela absorção, simbolicamente consentida em termos
sociais, de um pelo outro. Assim, a relação sexual, na concepção
brasileira, coloca a diferença e a radical heterogeneidade, para logo
em seguida hierarquizá-las no englobamento de um comedor e um
comido. E não se pode deixar de observar, para quem estiver lendo
estas linhas um tanto desavisado, que o englobador tanto pode ser
um homem (esse seria o modelo ideal, a formulação tradicional)
como também uma mulher (se for ela quem atua buscando e
querendo a relação, exercendo com isso um papel ativo). Assim,
pode-se dizer que, nas suas relações com as virgens e esposas — ou
mulheres que assim se definem socialmente —, os homens é que são os
comedores; mas nas suas relações com as mulheres do mundo e da
vida — ou com aquelas que se definem como independentes e
individualizadamente —, eles são comidos. O resultado é algo que
reproduz, em outro nível e outro plano, a dialética da casa e da rua,
deste mundo e do outro, da lei e da pessoa, do malandro e do
caxias, da ordem rígida e do “jeitinho” que tudo resolve...
Num sentido muito geral e culturalmente valorizado, fala-se
sempre que quem come é o homem, a mulher cozinha e dá os
alimentos e a comida. Mas, como sugeri linhas atrás, pode haver
casos contrários, onde o homem cai na panela de comida, tal como
na história de Dom Ratão que caiu na panela de feijão, o conto de
fadas sendo significativo para indicar de que modo a gula (o desejo
incontrolado) pode levar o comedor a tornar-se comida... Mas podese
afirmar, sem correr o risco do exagero, que mesmo hoje, nesta era
de transformação e mudanças rápidas, o homem é o englobador
do mundo da rua, do mercado, do trabalho, da política e das leis, ao
passo que a mulher engloba o mundo da casa, da família, das regras
e costumes relativos à mesa e à hospitalidade. E isso se faz no
simbolismo da cozinha, espaço da casa teoricamente vedado aos
homens e onde eles não devem entrar porque, como diz a música
popular, “é lugar só de mulher...”.
Não é, pois, por acaso que muitas figuras de nosso panteão
mitológico são mulheres cozinheiras ou que sabiam usar as artes da
culinária para conseguir uma posição social importante. Gabriela e
Dona Flor são cozinheiras de rara capacidade e estilo; também Xica
da Silva, na criação cinematográfica de Cacá Diegues, foi genial
articuladora de temperos (que usava como arma e requinte) e
sexualidade para transformar em dominado o dominante-brancocomedor.
Gabriela, cravo e canela. O nome é suficiente para inspirar
essas formas de fazer e esses estilos de preparar que os poderosos
ignoram e só os “fracos” podem conhecer. São segredos que
permitem uma inversão do mundo, fazendo com que a cabeça seja
trocada pelo estômago e pelo sexo (onde todos os homens se
igualam e se deleitam...).
Quero sugerir que essa equação de dois processos tão
valorizados na sociedade brasileira com as mulheres é algo a ser
pensado com muito cuidado. Porque, entre nós, como em muitas
outras sociedades, a sexualidade e a arte de comer (sobretudo a
comensalidade que deve acompanhar a ação de ingerir o alimento)
ainda não se transformaram em assuntos inteiramente individuais.
São, ao contrário, coisas fundamentalmente coletivas — atos críticos
de relacionamento e reprodução social. Como verdadeiras
comunhões onde o encontro transforma as pessoas nele engajadas
porque faz com que todos participem de uma mesma substância
comum, o prato comido ou a pessoa amada que, sabemos, vira
“comida” em nossa sociedade. E as mulheres desempenham,
conforme sabemos, um papel básico nesses dois processos.
Sobretudo nas nobres artes de comer, nas quais aprendemos a
exercer um gosto que nos vai acompanhar o resto da vida. E comer é
gostar, e comer é também viver...
Daí a nossa forma especial de comer. Nosso jeito brasileiro de
apreciar a mesa grande, farta, alegre e harmoniosa. Mesa que
congrega liberdade, respeito e satisfação. Momento que permite
orquestrar todas as diferenças e cancelar as mais drásticas oposições.
Na mesa, realmente, e através da comida comum, comungamos uns
com os outros num ato festivo e certamente sagrado. Ato que
celebra as nossas relações mais que nossas individualidades. Daí por
que ligamos intensamente a comida com os amigos. Pois quem nos
ampara quando “comemos da banda podre” e quem nos pode
conseguir uma “boca” ou uma “comilança no Estado ou no
Governo”? Certamente que são os amigos, esses nossos eternos
companheiros de bródio, gosto e mesa...
Companheiros. O nome é rico para o que falamos. Pois há quem
diga que a palavra deriva do latim com pão: quer dizer, aqueles que
juntos comem o pão. E por isso estão relacionados.
Do mesmo modo, será preciso indicar como é que nós,
brasileiros, sempre privilegiamos comidas nacionais e preferimos
sempre os alimentos cozidos. Do cozido à peixada e à feijoada. Da
farofa ao pirão e aos molhos, guisados e mexidos, às dobradinhas e
papas. Parece que temos especial predileção pelo alimento que fica
entre o líquido e sólido, evitando — nessas grandes refeições onde se
celebram as amizades . — o assado, alimento que não permite a
mistura. Daí, também, por que temos sempre que usar a farinha de
mandioca em sua forma simples ou como farofa em todas as
refeições. De fato, a farinha serve como o cimento a ligar todos os
pratos e todas as comidas. Enquanto ingleses e franceses usam molhos
para pratos específicos, nós temos comidas que são múltiplas com
seus caldos, molhos e sucos. Mas é importante acentuar que a comida
misturada é uma espécie de imagem perfeita da própria situação
que ela mesma engendra e ajuda a saborear. E isso é desses traços
mais importantes a transformar o ato de comer num gesto brasileiro.
Assim, entre o sólido (que caracteriza o prato principal das
comidas européias e americanas) e o líquido, preferimos uma forma
intermediária. O cozido é sólido e líquido. Entre a carne e a verdura —
que entram nos pratos europeus como comidas principais e
secundárias —, somos muito mais dados a uma ligação entre os dois. E
o cozido e a feijoada certamente realizam isso de modo perfeito,
junto com a moqueca e a peixada, onde também se pode reunir de
tudo. É claro que isso nos foi legado pelo mundo Ibérico, que de fato
enquadra toda a nossa cena culinária. Mas também é claro que essa
preferência denota uma forma evidente de escolha. Tal como somos
ligados à idéia de sermos um país de três raças, um país mestiço e
mulato, onde tudo que é contrário lá fora aqui dentro fica
combinado, nossa comida revela essa mesma lógica. Temos, então,
uma culinária relacional que expressa de modo privilegiado uma
sociedade igualmente relacional. Isto é, um sistema onde as relações
são mais que mero resultado de ações, desejos e encontros
individuais; pois aqui entre nós elas se constituem, em muitas ocasiões,
em verdadeiros sujeitos das situações, trazendo para elas o seu
ponto de vista. Um ponto de vista, claro está, que sintetiza sempre
as posições de quem está engajado na própria relação. No nosso
mundo culinário, o que privilegiamos não é o prato separado (como
na China ou no Japão) nem a combinação de pratos separados que
são fortes e descontínuos (como na França e na Inglaterra), mas, isto
sim, a possibilidade de estabelecer, também pela comida, gradações
e hierarquias, permitindo escolhas entre uma comida (ou prato) que é
central e dada de uma vez por todas — a comida principal — e seus
coadjuvantes ou ingredientes periféricos, que servem para juntar e
misturar. Temos, então, na nossa cozinha, na nossa comida e no nosso
modo de comer, uma obsessão pelo código culinário relacional e
intermediário. Um código marcado pela ligação.
Do mesmo modo que na vida e na sociedade, somos
obcecados pelo amigo único, certo e seguro nas horas em que
precisamos de amparo, e que jamais nos pode decepcionar
“cuspindo no prato em que comeu”...
O carnaval, ou o mundo
como teatro e prazer
Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos,
trabalho e festa, corpo e alma, coisas dos homens e assunto dos
deuses, períodos ordinários — onde a vida transcorre sem problemas
— e as festas, os rituais, as comemorações, os milagres e as ocasiões
extraordinárias, onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma,
posição, perspectiva, ângulo...
Vivemos sempre entre esses momentos, como passageiros que
estão saindo de um evento rotineiro para a ocorrência fora do
comum que, por sua vez, logo pode tornar-se novamente rotineira e
fazer parte da paisagem do nosso irreflexivo cotidiano.
A viagem da rotina para o extraordinário, porém, depende de
uma série de fatores. Ela pode variar de sociedade para sociedade e
pode ser realizada tanto coletiva quanto individualmente. Nossa
biografia se faz precisamente pela alternância de situações que foram
esquecidas com situações que “guardamos” como tesouros ou
cicatrizes em nossa cabeça e que formam o que denominamos
“memória”. De fato, tal idéia traduz, de maneira muito precisa,
essa verdadeira dialética entre o que é lembrado com saudade
como maravilhoso, formidável ou poético, ao lado de tudo que foi
vivido como doloroso, trágico e ruim (aquilo que na nossa existência
entra como extraordinário, positiva ou negativamente valorizado), e
os outros eventos que simplesmente não são lembrados, perdendo-se
nas sombras do passado e do tempo vivido e jamais recuperado. Há,
pois, um tempo lembrado, que vira memória e saudade; e um tempo
simplesmente vivido, que se vai e morre na distância do passado.
As sociedades e os grupos fazem coisas parecidas. E a memória
social (isso que vulgarmente se chama “tradição” ou “cultura”),
que é sempre feita de uma história com H maiúsculo, é também
marcada por meio desses momentos que permitem alternâncias
certas entre o que foi concebido e vivido como rotineiro e habitual e
tudo aquilo que foi vivenciado como crise, acidente, festa ou
milagre. Pois o homem é o único animal que se constrói pela
lembrança, pela recordação e pela “saudade”, e se “desconstrói”
pelo esquecimento e pelo modo ativo com que consegue deixar de
lembrar.
No Brasil, como em muitas outras sociedades, o rotineiro é
sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a
obrigações e castigos... a tudo que se é obrigado a realizar; ao passo
que o extra-ordinário, como o próprio nome indica, evoca tudo que
é fora do comum e, exatamente por isso, pode ser inventado e
criado por meio de artifícios e mecanismos. Cada um desses lados
permite “esquecer” o outro, como as duas faces de uma mesma
moeda. E, no entanto, os dois fazem parte e constituem expressões
ou reflexões de uma mesma totalidade, uma mesma coisa. Ou
melhor: tanto a festa quanto a rotina são modos que a sociedade
tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver a
sua “alma” ou o seu coração. Na nossa sociedade, temos grande
consciência dessa alternância, de tal modo que a vida, para a
maioria de nós, se define sempre pela oscilação entre rotinas e festas,
trabalho e feriado, despreocupações e “chateações”, dias felizes e
momentos dolorosos, vida e morte, os dias de “dureza” e “trabalho
duro” do mundo “real” e os dias de alegria e fantasia desse “outro
lado da vida” constituído pela festa, pelo feriado e pela ausência de
trabalho para o outro (o patrão, o Governo, o chefe, o dono do
negócio etc). Realmente, na festa, comemos, rimos e vivemos o mito
ou utopia da ausência de hierarquia, poder, dinheiro e esforço físico.
Aqui, todos se harmonizam por meio de conversas amenas e, na
construção da festa, a música que congrega e iguala no seu ritmo e
na sua melodia é algo absolutamente fundamental no caso brasileiro.
No trabalho, porém, estamos martelando e construindo, batendo
massa ou “batendo perna” para a companhia, para a família, para
a mulher e os filhos, “para a honra da firma” ou de alguma coisa que
efetivamente exige o nosso sacrifício. Para nós, brasileiros, a festa é
sinônimo de alegria, o trabalho é eufemismo de castigo, dureza, suor.
O trabalho sempre indica a idéia (ou ideal) da construção do
homem pelo homem. Um controle da vida e do mundo pela
sociedade. Todas as rotinas produtivas, sobretudo nas sociedades
protestantes e plenamente industrializadas, são marcadas pela
previsão e pela racionalidade. Há um mínimo de interferência de
fatores internos (as emoções de quem trabalha são inteiramente
controladas) e externos (o tempo e o espaço são igualmente
mapeados com grande precisão, de modo que o local de trabalho
fica longe da casa. É algo produzido para o próprio trabalho, como
uma fábrica ou usina...).
Até mesmo no caso da produção agrícola, ocorre essa
diagramação, de modo que a tentativa é sempre de criar uma
seqüência onde o controle é total. Não deve haver surpresas, não
deve haver acidentes, não deve haver coisa alguma de
extraordinário, exceto, obviamente, o aumento da produção.
Quando ocorre algo que não diga respeito a esse fator, então foi
porque um acidente ocorreu. E os acidentes aqui são medidos e
estudados dentro da ideologia de segurança e controle que preside
a todo triunfo da economia no nosso sistema. De fato, dentro dessa
perspectiva, pode-se até mesmo dizer que o grande acidente que
hoje atinge uma fábrica é a greve; ou seja, o extraordinário criado
por um dos fatores de produção, a força de trabalho...
Na sociedade industrial, a ausência de movimento é sintoma de
mal-estar social. O acidente — aquilo que não foi planejado ou
previsto — é também sinal de que algo está indo mal. Apesar de
todas as medidas contra o extra-ordinário, contra o acidente e
contra a coincidência negativa, porém sabemos que ela acontece. A
palavra catástrofe, que tanto usamos para definir tais situações,
significa precisamente “reviravolta”, de modo que é perfeita para
esses casos. Aqui, conforme estamos percebendo, estamos diante
de extraordinários não-planejados e não-previstos pela sociedade.
Escapando do seu controle consciente, esses eventos surgem como
tragédias que nos atingem, como catástrofes que colocam em causa
nossa capacidade de organização e nossa possibilidade de
sobrevivência como coletividade. Furacões, tempestades, enchentes,
terremotos, pestes, inundações e coisas do gênero são situações fora
da rotina, mas são situações não-planejadas. Quando o mundo é
vivido desse modo, ele deixa de fazer o sentido comum, dando a
impressão de que está no fim. É a reviravolta do Dia do Juízo,
podemos pensar. Mas é preciso acentuar que tais situações também
promovem o encontro e a solidariedade entre os homens. De fato,
diante da revolta imensa da natureza, todos podem unir-se fora de
suas posições sociais e políticas rotineiras e, assim fazendo, podem
encontrar-se como irmãos de infortúnio, ou seres humanos fazendo
face à tremenda indiferença da natureza em relação à sociedade, e
não mais como patrões e empregados, ricos e pobres, homens e
mulheres, oprimidos e opressores...
Ao lado, porém, desses extra-ordinários que são acidentais, que
ninguém desejou e que não foram planejados pela sociedade,
existem momentos especiais que o próprio grupo planeja, constrói,
inventa e espera. Ambos, é claro, constroem a memória da
sociedade, mas são os segundos que servem como as verdadeiras
roupagens pelas quais a sociedade cria e recria sua identidade social
e suas tradições. O momento fora do comum que é planejado e tem
tempo marcado para acontecer, portanto, é um espelho muito
importante pelo qual a sociedade se vê a si mesma e pode ser vista
por quem quer que deseje conhecê-la.
Todos os sistemas constroem suas festas de muitos modos. No
caso do Brasil, a maior e mais importante, mais livre e mais criativa,
mais irreverente e mais popular de todas é, sem dúvida, o carnaval.
Aliás, nessa festa, a própria definição já perturba, pois exclui de modo
sistemático todos os elementos que nenhuma festa pode dispensar e
que são importantes para o seu próprio desenrolar. Quero referir-me a
todos os elementos de ordem, de economia e política que o carnaval
certamente implica — como todo evento especial —, mas que ficam
necessariamente excluídos de sua definição. De fato, conforme
sabemos como brasileiros, o carnaval não pode ser sério. Senão não
seria um carnaval...
Mas como definir o carnaval? Não seria exagero dizer, é uma
ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e, por causa
disso, um momento extraordinário é inventado. Ou seja: como toda
festa, o carnaval cria uma situação em que certas coisas são
possíveis e outras devem ser evitadas. Não posso realizar um carnaval
com tristeza, do mesmo modo que não posso ter um funeral com
alegria. Certas ocasiões sociais requerem determinados sentimentos
para que possam ocorrer como tais. Tragédias são definidas como
eventos tristes e tudo que nelas ocorre de cômico deve ser inibido ou
simplesmente ignorado. Carnavais e comédias, ao contrário, são
episódios em que o triste e o trágico é que devem ser banidos do
evento, como as roupas do rei que estava nu e não podia ser visto
como tal...
Mas como é que o povo define e vê o Brasil no carnaval? Qual a
receita para o carnaval brasileiro?
Sabemos que o carnaval é definido como “liberdade” e como
possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria,
trabalho, obrigações, pecado e deveres. Numa palavra, trata-se de
um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e
castigo. É, no fundo, a oportunidade de fazer tudo ao contrário:
viver e ter uma experiência do mundo como excesso — mas agora
como excesso de prazer, de riqueza (ou de “luxo”, como se fala no
Rio de Janeiro), de alegria e de riso; de prazer sensual que fica —
finalmente — ao alcance de todos. A “catástrofe” que o carnaval
brasileiro possibilita é a da distribuição teórica do prazer sensual para
todos. Tal como o desastre distribui o malefício ou a infelicidade para
a sociedade, sem escolher entre ricos e pobres, como acontece
normalmente, o carnaval faz o mesmo, só que ao contrário. O Rei
Momo, Dionísio, o Rei da Inversão, da Antiestrutura e do
Desregramento, coloca agora uma possibilidade curiosa e, por isso
mesmo, carnavalesca e impossível no mundo real das coisas sérias e
planificadas pelo trabalho. E que ele sugere um universo social onde a
regra é praticar sistematicamente todos os excessos!
Entre nós, brasileiros, realizar isso é poder descobrir que o
carnaval é percebido como algo que vem de fora, como uma
onda irresistível que nos domina, controla e, melhor ainda, seduz
inapelavelmente. Algo que chega até nós periodicamente sem que
haja possibilidade de resistir. É também descobrir que, por causa disso
mesmo, todos são iguais — ou podem ser iguais — perante o carnaval.
Desse modo, o carnaval, com suas regras de inversão, fica como que
deslocado da realidade cotidiana, podendo ser vivido como algo de
fora e, daí, como algo que surge como uma regra ou lei natural que
teria validade para todos, independentemente de sua posição na
estrutura social. Ou apesar dela... Ou por causa dela...
Mas que é isso que o carnaval consegue fazer com o Brasil? Que
extraordinário é esse que chamamos coletivamente de carnaval?
Penso que o carnaval é basicamente uma inversão do mundo.
Uma catástrofe. Só que é uma reviravolta positiva, esperada,
planificada e, por tudo isso, vista como desejada e necessária em
nosso mundo social. Nele, conforme sabemos, trocamos a noite pelo
dia; ou, o que é ainda mais inverossímil: fazemos uma noite em pleno
dia, substituindo os movimentos da rotina diária pela dança e pelas
harmonias dos movimentos coletivos que desfilam num conjunto
ritmado, como uma coletividade indestrutível e corporificada na
música e no canto. No carnaval, trocamos o trabalho que castiga o
corpo (o velho tripalium ou canga romana que subjugava escravos)
pelo uso do corpo como instrumento de beleza e de prazer. No
trabalho, estragamos, submetemos e gastamos o corpo. No carnaval,
isso também ocorre, mas de modo inverso. Aqui, o corpo é gasto
pelo prazer. Daí por que falamos que “nos esbaldamos” ou
“liquidamos” no carnaval. Aqui, usamos o corpo para nos dar o
máximo de prazer e alegria...
Pela mesma lógica, o carnaval permite a troca e a substituição
dos uniformes pelas fantasias. Sabemos que o uniforme (como todas
as vestes formais do mundo diário) cria a ordem. O uniforme é uma
roupa que “uniformiza”, isto é, faz com que todos fiquem iguais,
sujeitos a uma mesma ordenação ou princípio de governo. Mas a
fantasia permite a invenção e a troca de posições. Note-se que, no
Brasil, não falamos em máscaras, mas em fantasias. O nosso termo é
mais abrangente em pelo menos dois sentidos muito precisos. Primeiro,
ele diz mais do que algo que serviria apenas para tapar ou disfarçar o
rosto ou o nariz. Depois, porque a palavra “fantasia” tem duplo
sentido. É algo em que se pode pensar acordado, o sonho que se
tem quando a rotina mais nos escraviza e revolta; e também a roupa
que só se usa no carnaval ou para uma situação carnavalizadora.
Assim, ela permite que possamos ser tudo o que queríamos, mas que a
“vida” não permitiu. Com ela — e jamais com o uniforme —,
conseguimos uma espécie de compromisso entre o que realmente
somos e o que gostaríamos de ser. O uniforme achata, ordena e
hierarquiza. A fantasia liberta, des-constrói, abre caminho e promove
a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite e
ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que
o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e
dos preconceitos estabelecidos. Ê a fantasia que permite passar de
ninguém a alguém; de marginal do mercado de trabalho a figura
mitológica de uma história absolutamente essencial para a criação
do momento mágico do carnaval. Se no mundo diário estamos todos
limitados pelo dinheiro que se ganha (ou não se ganha...), pelas leis
da sociedade, do mercado, da casa e da família, no carnaval e na
fantasia temos a possibilidade do disfarce e da liberação. Há a
possibilidade de virar onipotente e ser tudo o que se tem vontade.
Ora, é precisamente por estar vivendo num mundo assim constituído,
onde as regras do mundo diário estão temporariamente de cabeça
para baixo, que posso ganhar e realmente sentir uma incrível
sensação de liberdade. Sensação de liberdade que me parece
fundamental numa sociedade cuja rotina é dominada pelas
hierarquias que sujeitam a todos a uma escala complexa de direitos e
deveres vindos de cima para baixo, dos superiores para os inferiores,
dos “elementos” que entram na fila e das “pessoas” que jamais são
vistas em público como comuns.
Realmente, se no mundo diário somos governados pelo ditado
e pela lógica social que diz “cada macaco no seu galho” e também
“um lugar pra cada coisa, cada coisa em seu lugar”, no carnaval
criamos um cenário e uma atmosfera social onde tudo isso pode ser
trocado de lugar, invertido e subvertido pelas leis que comandam o
reinado de Momo. Não é por simples acaso que chamamos o
carnaval e a cena carnavalesca de “loucura”! O termo loucura aqui
surge porque, no carnaval, tudo estaria fora de lugar —
carnavalizado, como diz Bakhtin, que introduziu esse conceito no
estudo das manifestações do carnaval europeu para exprimir
intelectualmente suas múltiplas vozes e textos. De fato, no caso do
Brasil, andamos pelas ruas do centro comercial de nossas cidades
com a roupa que queremos e em pleno dia, sem a menor
preocupação de sermos atropelados ou vistos por nossos patrões,
pais ou amigos aristocráticos. Muito pelo contrário, ao sermos vistos,
eles é que correm o risco de serem seduzidos pela nossa investida
carnavalesca. Comemos e bebemos nas ruas, trocando a casa pelo
mundo público e ali realizando ações que são banidas do mundo
social aberto. Dormimos no asfalto, em plena rua: local perigoso e
maldito, com seu cotidiano cruel e movimentado, mas
estranhamente pacífico e seguro no carnaval. Podemos até mesmo
fazer amor com proteção oficial e policial, pois Governo e polícia,
que durante todo o ano nos cobrem de impostos e compostura,
agora nos defendem e compreendem com simpatia o nosso desejo e
a nossa humanidade carnavalesca, ou melhor, protegida pelo
carnaval. No carnaval nós cantamos e nos harmonizamos,
movimentando nossos corpos em ritmos acasalados, em vez de
reclamar, discursar ou escrever. Aqui, a mensagem deixa de ser
importante e o que vale é também o canto pelo canto, a música
pela música, a alegria pela alegria. Como os fogos de artifício que
explodem para o deleite dos olhos, o discurso carnavalesco está
também auto-referenciado. Todos podemos, assim, virar poetas. Além
disso, o carnaval obriga a uma grave sinceridade. Não se pode
freqüentar o carnaval sem vontade. De fato, posso ir a uma cerimônia
oficial, como uma formatura, posse ou casamento, sem sentir nada,
até mesmo achando tudo aquilo aborrecido e maçante. Mas não
posso fazer o mesmo se vou a um baile de carnaval, onde corpo e
alma devem estar juntos e serei punido se me mostrar “bemcomportado”.
No carnaval, nós, brasileiros, cantamos e, geralmente,
podemos fazer o que cantamos, o que permite que as pessoas se
olhem e, subitamente, se vejam em sua unidade como “pessoas” e
em sua diversidade como membros de uma comunidade social e
politicamente diferenciada. O diverso, o diferente — o universo da
individualidade —, que é tão temido na vida diária, é moeda corrente
no carnaval, onde todos podem surgir como indivíduos e como
singularidade, exercendo o direito de interpretar o mundo do seu
“jeito” e a seu modo. Igualmente, a crítica social, que pode dar em
prisão e censura, é realizada abertamente, tanto quanto a
competição, que todos temem como algo monstruoso, mas é
também aceita em todos os carnavais brasileiros, feitos de inúmeros
concursos. De fato, essa competição é tão aberta que há
competição para tudo: músicas, fantasias, maior capacidade de
exibir-se e, naturalmente, a disputa dos blocos e escolas de samba,
sobretudo no caso do Rio de Janeiro. Aqui, o mundo fica mesmo de
cabeça para baixo. Não somente porque as “escolas” são de gente
pobre e que vive nos morros e subúrbios do Rio, zonas que
congregam a massa dos subempregados locais, mas talvez por
estarmos aqui para assistira um monumental concurso público, a uma
fantástica competição onde tanto os jurados oficiais quanto o
público em geral conhecem todas as regras e todos os meios de
perder e vencer. Coisa do outro mundo? Algo extraordinário? Claro
que sim. Numa sociedade que jamais vive a si mesma como um jogo
ou concurso em que as pessoas podem mudar de lugar pelo próprio
desempenho, tudo isso é fora do comum. Basta observar que nós,
brasileiros, somos um povo marcado e dividido pelas ordens
tradicionais: o nome de família, o título de doutor, a cor da pele, o
bairro onde moramos, o nome do padrinho, as relações pessoais, o
ser amigo do Rei, Chefe Político ou Presidente. Tudo isso nos classifica
socialmente de modo irremediável. Jamais utilizamos o concurso
público e a competição como algo normal entre nós, daí o trabalho
que é fazer uma eleição honesta e disputada. Ela implica, inclusive,
algo que evitamos: dar opiniões e disputar vontades, revelando
abertamente as nossas mais legítimas (e ocultas) diferenciações
sociais. Mas que coisa milagrosa! Agora, em plena festa
carnavalesca, podemos finalmente nos abrir para as nossas aspirações
e associações, revelando legitimamente os nossos desejos e vontades.
É o que faz esse concurso de escolas de samba que, sabemos, só
pode ser ganho no pé. Na base do desempenho, do élan e da
vontade de vencer. Aqui, os apadrinhamentos são policiados e o
povo age como jamais pode realmente operar: como juiz supremo
que conhece as regras do jogo e as aplica com gana e justiça.
Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade
marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem
horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que permite trocar
efetivamente de posição social. É exibição numa ordem social
marcada pelo falso recato de “quem conhece o seu lugar” — algo
sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as
situações. É feminino num universo social e cosmológico marcado
pelos homens, que controlam tudo o que é externo e jurídico, como
os negócios, a religião oficial e a política. Por tudo isso, o carnaval é a
possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na
estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria,
à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos
perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu
justo e exato oposto...

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